Por Vladimir Aras
O PLC 123/2018, que moderniza a Lei Orgânica da Justiça Militar da União (JMU), de 1992, foi aprovado no Senado em 6 de dezembro e no mesmo mês foi sancionado pelo presidente Temer, com um veto.
A Lei 13.774/2018, já em vigor desde o dia 20 de dezembro de 2018, alterou vários dispositivos processuais e administrativos da Lei 8.457/1992, que sofreu assim sua quinta reforma, que é a mais ampla desde sua sanção.
Prevista nos arts. 122 a 124 da Constituição de 1988, a JMU tem órgãos compostos por juízes civis e militares, conta com um Ministério Público (MPM) e uma Defensoria Pública (DPU) civis e tem longa tradição histórica no Brasil, não se confundindo com uma corte marcial.
Com a Lei 13.774/2018, os juízes auditores, que atuam na primeira instância da JMU, passaram a chamar-se “juízes federais da Justiça Militar”. São civis aprovados em concurso público para a magistratura da União. A Constituição refere-se a eles como “juízes militares” ou “juízes auditores”.
O projeto de lei tentou mexer na competência do Superior Tribunal Militar (STM). A Corte, que é integrada por 15 ministros (dez militares e cinco civis), teria sua competência originária ampliada. Se o projeto não houvesse sido vetado nesta parte, o mais alto Tribunal Militar teria passado a julgar a legalidade dos atos administrativos praticados pelos oficiais-generais das Forças Armadas em razão da ocorrência de crime militar. Esta seria a nova redação do art. 6º, I, “a” da Lei 8.457/1992:
a) os oficiais-generais das Forças Armadas nos crimes militares definidos em lei e a legalidade dos atos administrativos por eles praticados em razão da ocorrência de crime militar;”
A parte em negrito não passou pelo crivo presidencial. A primeira parte do dispositivo segue inalterada, cabendo ao STM julgar os crimes militares cometidos por oficiais-generais das Três Armas:
Conforme a hierarquia militar do Brasil, os oficiais-generais são:
a) no Exército Brasileiro, os generais de Brigada, os generais de Divisão, os generais de Exército e os marechais.
b) na Marinha do Brasil, os contra-almirantes, os vice-almirantes, os almirantes de Esquadra e os almirantes.
c) na Força Aérea Brasileira, os brigadeiros, os majores-brigadeiros, os tenentes-brigadeiros e os marechais do Ar.
Tais autoridades, quando autoras de crimes militares mencionados no art. 9º do CPM, estão sujeitas a julgamento pelo STM, em competência penal originária. Obviamente, deve-se observar a restrição de foro especial decorrente do precedente geral adotado pelo STF na AP 937/RJ QO (STF, Pleno, rel. min. Luiz Roberto Barroso, j. em 3.5.2018).
Em função dessa questão de ordem, pode-se entender que os crimes militares impróprios cometidos por oficiais-generais das Forças Armadas não são mais de competência originária do STM, devendo ser julgados em primeira instância. É que, segundo o precedente do STF, só têm a prerrogativa de foro as autoridades que cometerem crimes propter officium enquanto estiverem no exercício do cargo ou mandato. Assim, se um deputado federal comete um homicídio (crime que não é propter officium), é julgado pelo júri. Se um oficial-general cometer um crime militar impróprio, deve-se aplicar a mesma solução. O julgamento deverá ocorrer na primeira instância da JMU.
Segundo o STF, “o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas“.
O veto à nova redação da alínea “a” do inciso I do art. 6º da Lei da JMU foi sugerido pela AGU. Conforme a mensagem presidencial, o dispositivo incorreria em “inconstitucionalidade material”, por supostamente violar o art. 124 da CF, segundo o qual compete à JMU julgar os crimes militares. “A redação adotada na alínea comporta interpretação diversa, gerando insegurança jurídica”, diz o veto presidencial.
Outras alterações relevantes vieram com a Lei 13.774/2018.
O cargo de juiz corregedor da JMU passa a ser exercido privativamente pelo vice-presidente do STM (art. 12), com a designação de ministro-corregedor.
A Lei 13.774/2018 revogou a alínea “c” do art. 14, inciso I, da LOJMU, que permitia ao corregedor militar fazer correições em inquéritos policiais militares (IPM) arquivados e, de forma inconstitucional, facultava-lhe representar ao STM, “mediante despacho fundamentado, desde que entenda existentes indícios de crime e de autoria”. Este dispositivo violava o sistema acusatório (art. 129, I, CF) e a garantia do investigado ao promotor natural. Sua revogação veio em boa hora, prestigiando as atribuições do MPM e conferindo maior segurança jurídica a pessoas que foram investigadas em IPMs que acabaram arquivados.
Os juízes togados terão novos papéis com a Lei 13.774/2018. Agora o Conselho Especial de Justiça (CEJ) e o Conselho Permanente de Justiça (CPJ), colegiados judiciais de primeira instância, serão presididos pelo juiz federal militar, e não mais por oficiais-generais ou oficiais superiores das Armas como atualmente.
Conforme o inciso I-A, que foi introduzido no art. 30 da Lei 8.457/1992, compete agora ao “juiz federal da Justiça Militar, monocraticamente presidir os Conselhos de Justiça”, que são os órgãos colegiados de 1º grau da JMU. Na Justiça Militar dos Estados, objeto dos §3º, 4º e 5º do art. 125 da Constituição, o juiz de Direito já preside os conselhos de justiça no julgamento dos crimes militares cometidos por policiais militares e bombeiros militares.
Na JMU, o Conselho Especial de Justiça (CEJ) julga oficiais, salvo os oficiais-generais das Três Forças (os generais no Exército, os almirantes na Marinha e os brigadeiros na Aeronáutica), que, como visto, sujeitam-se ao foro especial do STM, em competência penal originária nos crimes militares próprios. Agora, estes Conselhos serão presididos pelos togados.
Antes da alteração legislativa de 2018, o Conselho Permanente de Justiça (CPJ) da JMU tinha competência para julgar os militares que não fossem oficiais e os civis, mas esta atribuição jurisdicional mudou com a Lei 13.774/2018.
Pelo novo inciso I-B do art. 30, doravante cabe também monocraticamente ao juiz federal militar (togado) “julgar civis nos casos previstos nos incisos I e III do art. 9º do Decreto-lei n. 1.001/1969 (Código Penal Militar), e militares, quando estes forem acusados juntamente com aqueles no mesmo processo”. Ou seja, a competência dos CPJ foi reduzida. Agora tais conselhos julgam apenas militares, quando isoladamente acusados. Os civis denunciados por crimes militares serão julgados pelo juiz federal militar, monocraticamente. Havendo concurso de agentes entre militares e civis, a competência também será do juiz togado.
Note-se que, conforme o art. 125, §4º, da Constituição de 1988, civis não podem ser julgados pela Justiça Militar dos Estados. É de se perceber também que o órgão recursal nos crimes dos militares estaduais (PMs e bombeiros) é o Tribunal de Justiça (TJ) do próprio Estado ou o Tribunal de Justiça Militar (TJM), cortes que existem apenas em Minas Gerais, no Rio Grande do Sul e em São Paulo.
Em razão da Lei 13.774/2018, os juízes federais da JMU também têm nova competência (inciso I-C do art. 30) para julgamento dos habeas corpus, dos habeas data e dos mandados de segurança contra atos de autoridades militares praticados em razão da ocorrência de crimes militares, ressalvada a competência do STM. Se os atos em questão forem praticados por oficiais-generais, essas ações constitucionais de impugnação deveriam sujeitar-se diretamente ao STM, por simetria. No entanto, a nova redação da alínea “a” do inciso I do art. 6º da Lei foi vetada pelo presidente Michel Temer, o que, salvo melhor juízo, causou inconsistência interna na nova lei. Atente para a parte final do inciso I-C do art. 30:
I-C – julgar os habeas corpus, habeas data e mandados de segurança contra ato de autoridade militar praticado em razão da ocorrência de crime militar, exceto o praticado por oficial-general;
Há outras novidades na Lei. Para aclarar a competência extraterritorial da JMU em tempos de paz, foi introduzido parágrafo único no art. 27 da Lei 8.457/1992, para que os crimes militares cometidos fora do território nacional sejam julgados pelos Conselhos de Justiça sediados nas auditorias da JMU na capital federal. Com o incremento da participação das Forças Armadas brasileiras em ações humanitárias ou de pacificação, realizadas no exterior, sob os auspícios da ONU, a exemplo da MINUSTAH, no Haiti, torna-se relevante regular com mais precisão tais situações.
Para concluir, pode-se dizer que as novas competências criminais conferidas aos juízes federais militares pela Lei 13.774/2018 eliminam uma das principais críticas à JMU. Esses magistrados, que são civis togados, doravante julgarão monocraticamente os cidadãos civis acusados pelo MPM da prática de crimes militares e também presidirão as sessões dos Conselhos Permanente e Especial de Justiça.
Todas essas alterações têm vigência imediata, sem vacatio legis.
Quanto ao veto presidencial, a questão é controvertida. Não é de todo desarrazoada a tese de inconstitucionalidade no texto no tocante à ampliação da competência não criminal da JMU, na medida em que o art. 124 da Constituição somente menciona sua jurisdição sobre os crimes militares, não havendo, para a Justiça Militar da União, regra semelhante à contida no §4º do art. 125, que confere à Justiça Militar dos Estados competência para julgar “as ações judiciais contra atos disciplinares militares”. Pode-se objetar, contudo, que a lei poderia ampliar essa competência, pois o que a Constituição determina é a competência mínima da JMU.
Por outro lado, pecou a Lei 13.774/2018 por não ter criado um órgão especial no STM para o julgamento dos recursos criminais em ações penais que tenham civis como réus, o que permitiria guardar a simetria entre a primeira e a segunda instância da Justiça Militar da União. Esse órgão recursal dentro do STM poderia ser formado por seus cinco ministros civis.
Vistos em conjunto, a Lei 13.491/2017, que alterou o art. 9º do Código Penal Militar, e a Lei 13.774/2018 realizaram reforma substancial da Justiça Militar no Brasil e de suas competências.