Tenho tentado aqui no Blog temperar direito criminal com um certo humor. Mas essa história dos três moradores de Pernambuco que teriam esquartejado e comido suas vítimas não é nada saborosa.Tanto que demorei a digeri-la. Então, aviso: não leia este post se não tiver estômago! O relato é intragável.
O caso foi revelado em abril/2012. Tentarei destrinchá-lo aqui. Como diria Jack, vamos por partes. As descobertas feitas pela Polícia Civil pernambucana são nauseantes.
A investigação ficou mais fácil depois que o chef de cuisine em questão registrou em cartório o seu livro de receitas, digo, seu livro de memórias sobre suas andanças, o triângulo amoroso que vivia e os crimes que ele e suas duas mulheres teriam cometido. Nos capítulos intitulados “A Morte do Mal” e “Dividida”, o líder do grupo, um verdadeiro boucher, conta ter matado a adolescente Xis com uma facada na jugular e relata a preparação do cadáver antes de comê-lo. A surreal obra recebeu o título de “Revelações de um esquizofrênico”. Mas cuidado: tudo pode não passar de alucinação.
Algumas semanas depois de esses supostos canibais serem presos em Garanhuns, o jornal “O Estado de São Paulo” comemorou a passagem dos 70 anos de Francisco Costa Rocha, o “Chico Picadinho”, com a matéria “Chico aos pedaços” (clique para ler).
O “picadinho de carne“, essa deliciosa especialidade brasileira, foi estigmatizado durante anos com o rótulo que deram a esse homicida nos anos 1970. “Chico Picadinho” entrou para a história do crime com um apelido “culinário”, mas nunca foi um glutão no sentido canibalesco. Não consta que tenha degustado suas duas vitimas, mortas em 1966 e 1976. Hoje, esse sentenciado quer sair da cadeia. Tem fome de liberdade. Diz já ter cumprido 30 anos de prisão, limite máximo da execução penal no Brasil (artigo 75 do CP). É verdade! Sua pena privativa de liberdade foi cumprida em 1998 e ele está na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, onde é mantido sob internação, imagino, em função do artigo 41 do CP (“Art. 41 – O condenado a quem sobrevém doença mental deve ser recolhido a hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, a outro estabelecimento adequado”), dos arts. 154 e 682 do CPP, dos arts. 108 e 183 da LEP, dos arts. 7º e 10 do Decreto 24.559/1934 e do art. 9º da Lei 10.216/2001. É quase uma prisão perpétua; um abacaxi para o STF descascar.
Mas quem merecia o epíteto de “Chico Picadinho” é esse outro sujeito, o líder dos “famintos de Garanhuns”. Verdade que a história toda precisa ser devidamente apurada, no devido processo legal. Ainda não se viu o exame de corpo de delito que prove que realmente eles comeram as vítimas e que de fato as empadinhas de dona Fulana, a sous-chef, eram mesmo recheadas de carne humana. Quero uma prova. Pensando bem, não quero provar nada. Deixo esta tarefa para os colegas do MP pernambucano, que deverão ter muito apetite para esse júri.
A história desse trio nordestino lembra o filme O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet (Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street, 2007), especialmente as tenebrosas tortas da senhora Lovett, preparadas com carne humana e algumas baratas. Era preciso ter paladar “apurado” para apreciar tal iguaria. Se já é difícil enfrentar um sarapatel ou uma buchada, que dizer deste tipo de acepipe? Nem o âncora do Bizzarre Foods teria coragem de enfrentar este repasto.
Para ficar na ficção, o personagem Hannibal Lecter (da ótima trilogia O Silêncio dos Inocentes, Dragão Vermelho e Hannibal) também vem imediatamente à memória, diante do caso de Garanhuns. A cena em que o Dr. Lecter faz uma de suas vítimas, dopada e com o crânio aberto, comer parte do próprio cérebro é dos banquetes mais macabros do cinema. Por mais refinado que seja o comensal, canibalismo não é gastronomia.
Verdade ou fantasia, alucinação, loucura ou possessão, infelizmente esses três suspeitos de Garanhuns não estão sozinhos. Há casos bem documentados de canibalismo, pelo mundo afora. Primeiramente, poderíamos lembrar dos caetés que viviam ao longo do litoral alagoano. Conta-se que em 1556 alguns deles teriam comido o bispo de Salvador D. Pero Fernandes Sardinha, que chegava à colônia numa nau portuguesa. D. Sardinha, que não era peixe e não sabia nadar, naufragou na costa brasileira e acabou comido. Era um hábito cultural, não um crime.
Em 1972, um avião da Força Aérea Uruguaia caiu na cordilheira dos Andes. Os 16 sobreviventes comeram da carne dos seus companheiros mortos na queda ou derrotados pelo frio. Era uma necessidade vital; não um crime.
Essas histórias não são nada palatáveis, não é? Vai piorar.
O canibal criminoso mais conhecido foi Jeffrey Dahmer. Matou 17 pessoas nos Estados Unidos entre 1978 e 1991. Comeu algumas delas e acabou assassinado na prisão em 1994. Na mesma época, a Rússia descobriu Andrei Chikatilo, o “Açougueiro de Rostov”. Teria assassinado cerca de 50 pessoas entre 1978 e 1991 e comido várias delas. Foi condenado à morte e já passou desta para uma pior.
Depois, em 2001, apareceu o alemão Armin Meiwes, o “canibal de Rotenburgo”,que comeu partes do corpo de sua vítima. Foi condenado a prisão perpétua pela corte de Frankfurt. Por sua vez, Nicolas Cocaign, o “canibal de Rouen”, comeu parte do pulmão de um companheiro de cela em 2007 e pegou 30 anos de prisão. Também em 2007, o México conheceu a história tenebrosa de José Luis Calva Zepeda, que foi preso enquanto cozinhava parte do corpo de uma mulher que ele matara. Calva cometeu suicídio na prisão.
Os homólogos dos três supostos canibais brasileiros foram condenados a penas que variam de 30 anos (o francês), à pena de morte (o russo), passando por prisão perpétua (o alemão). Em tempos de grandes disputas desportivas, não podíamos ficar de fora dessa sadia competição. O que aconteceria aqui?
Os antropófagos de Garanhuns provavelmente negarão a autoria e a materialidade. Se houver indícios destas, é muito provável que aleguem inimputabilidade penal, com base no artigo 26 do CP. Seus advogados dirão que seus clientes são loucos.
Inimputáveis
Art. 26 – É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
A inimputabilidade é, quase sempre, a defesa preferida em casos deste tipo. Ainda que o Ministério Público consiga provar o fato e a autoria, eles serão absolvidos – a chamada “absolvição imprópria” do artigo 97 do CP c/c o artigo 386, parágrafo único, inciso III, do CPP -, e o juiz aplicar-lhes-á uma medida de segurança de internação em Hospital de Custódia e Tratamento (HCT), o antigo manicômio judiciário. Isto se antes os canibais não forem soltos, após pedirem um legítimo habeas corpus.
Abro um parêntese para lembrar que se a única tese da defesa for a inimputabilidade, o juiz pode absolvê-los sumariamente, nos termos do artigo 415, inciso IV, e parágrafo único, do CPP, sem submetê-los a julgamento pelo tribunal do júri. Foi exatamente isto o que aconteceu na ação penal em que apurou a morte do cartunista Glauco Vilasboas, na qual o réu Carlos Eduardo Sundfelf Nunes foi submetido a medida de segurança de internação sem a realização de júri. Veja aqui a sentença proferida pela Justiça Federal de Foz do Iguaçu/PR em maio de 2011 e abaixo seu principal fundamento legal:
Art. 415. O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando:
[…]
IV – demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.
Parágrafo único. Não se aplica o disposto no inciso IV do caput deste artigo ao caso de inimputabilidade prevista no caput do art. 26 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, salvo quando esta for a única tese defensiva.
Os alegados crimes dos supostos canibais de Garanhuns seriam os de homicídio qualificado (art. 121, §2º, CP) e destruição de cadáver (art. 211, CP). O primeiro deles é sempre julgado pelo júri, e arrastaria o segundo para o mesmo foro por conexão (art. 76 do CPP). Caso venham a ser condenados como mentalmente hígidos, os três poderão trabalhar na cadeia para remissão da pena. Talvez na cozinha do estabelecimento prisional, quem sabe. Quando sairem, poderão encontrar ocupação na merenda escolar, num açougue ou num restaurante das redondezas. Já teriam o know-how. Nestas horas, penso comigo: “Como é bom ser vegetariano”. Pena que não sou…
PS – não deu para engolir este post? Desculpe se lhe pareceu de mau gosto. Talvez seja mesmo.