Por Vladimir Aras
No Peru, o tempo esquentou por causa do indulto que o presidente Pedro Pablo Kuczynski, o PPK, deu ao ditador Alberto Fujimori, condenado por corrupção e por crimes contra a humanidade.
Na Argentina, houve protestos enormes por causa da reforma da previdência social proposta pelo presidente Macri.
Aqui, no Brasil, com problemas semelhantes numa área e na outra, o grande debate nacional é sobre a celulite de Anitta.
– An an, tutudum, an an!
Quase ninguém, nas lajes ou nas mansões, liga para o decreto de indulto de 2017, que vai mandar malandros, malandrinhos e malandrões para as ruas.
Com regras incompatíveis com qualquer boa política criminal de desestímulo a práticas corruptas e a outros crimes graves, o indulto natalino de Temer (Decreto n. 9.246/2017) é um presente natalino mal embrulhado, que vai na contramão dos esforços da sociedade brasileira, do Ministério Público, do Judiciário e de outras instituições nacionais para reduzir a corrupção endêmica – aquela que consome a riqueza nacional e debilita políticas públicas de inclusão social e de desenvolvimento sócio-econômico, nas favelas e no asfalto.
O que é indulto
Indulto é um ato de benevolência ou de clemência estatal, de competência exclusiva do presidente da República. Pode ser total ou parcial. Quanto total, o indulto é uma causa extintiva de punibilidade prevista no art. 109, inciso II, do Código Penal. A pena desaparece e é dada como cumprida. Em sendo parcial, o indulto acarreta a comutação da pena, isto é, sua mitigação. O restante deve ser cumprido.
Sendo um favor libertatis, no indulto está embutida a ideia de predominância do direito de liberdade sobre o direito de punir do Estado, seja na sua feição de presunção de inocência ou noutras manifestações consistentes em tratamentos mais benéficos ao acusado ou ao condenado. Atua o indulto como instrumento para correção de injustiças concretas ou teratologias, tendo sempre em mira a dignidade da pessoa humana.
O indulto, que pode ser individual (art. 188 da Lei 7.210/1984) ou coletivo (art. 193), é tradicionalmente concedido no fim do ano em países como o Brasil e é ferramenta essencial da política penitenciária, sempre que presentes razões humanitárias ou de iniquidade que justifiquem a clemência presidencial.
No entanto, no País, o indulto tem servido ao menos a três propósitos: para a libertação humanitária de condenados com deficiência severa, com grave enfermidade ou muito idosos; para promoção da ressocialização de sentenciados após longos períodos de execução penal; e para a redução da população carcerária. Este último fim é evidentemente incompatível com a razão de ser do indulto, salvo quando presentes as referidas razões humanitárias, vinculadas a superlotação carcerária especificamente demonstrada.
Segundo o art. 84, inciso XII, da Constituição de 1988, compete privativamente ao presidente da República conceder indulto e comutar penas, “com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em Lei.”
Segundo o parágrafo único do art. 84 da Constituição, o Presidente da República pode delegar as atribuições mencionadas no inciso XII aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações. No entanto, desde a promulgação da Constituição vigente, esta delegação nunca ocorreu. Teria sido inteligente fazê-lo.
A cada ano é baixado um decreto presidencial de indulto coletivo a partir de proposta do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), um colegiado vinculado ao Ministério da Justiça. Um dos órgãos da execução penal, conforme o art. 61, inciso I, da Lei 7.210/1984 (LEP), o CNPCP tem 13 membros, oriundos da advocacia, do Judiciário, do Ministério Público, do Executivo, da academia e da sociedade civil, com mandato de 2 anos (art. 63 da LEP).
Apesar de certa polêmica doutrinária, entende-se que, por força do art. 5º, XLIII, da Constituição, não cabe indulto (ali referido como graça) para os crimes de tortura (art. 1º, §6º, da Lei 9.455/1997), terrorismo (art. 17 da Lei 13.260/2016), tráfico de drogas (art. 44 da Lei 11.343/2006) e para os crimes hediondos da Lei 8.072/1990 (art. 2º, I) e os equiparados a hediondos, tais como o genocídio e a posse ou porte de arma de fogo de uso restrito (art. 1º, único).
Crimes militares também apareciam na relação de proibição de delitos não indultáveis coletivamente.
Ocasionalmente, outros crimes são listados como insusceptíveis de indulto coletivo. No passado, talvez por influência do escândalo do Banestado (1996-2002), isto ocorreu com os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, previstos na Lei 7.492/1986, para os quais o indulto era vedado, por exemplo, pelo art. 10, inciso VI, do Decreto 4.011/2001 e pelo art. 7º, inciso V, do Decreto 4.495/2002.
Com o tempo, os crimes contra o SFN – delitos de colarinho branco por natureza – foram deixados de lado e hoje são considerados indultáveis. Mas no decreto de 2017 (art. 3º, incisos IV, V e VI), o presidente Temer rotulou como não elegíveis a indulto outros crimes para os quais não existe proibição constitucional expressa, a saber, os crimes praticados com violência ou grave ameaça contra militares e agentes de segurança pública; os crimes de pedopornografia (arts. 240, 241 e 241-A da Lei 8.069/1990); e os crimes de violação sexual mediante fraude (art. 215, CP), assédio sexual (art. 216-A, CP), corrupção de menores (art. 218, CP) e satisfação da lascívia mediante presença de criança ou adolescente (art. 218-A).
Porém, ficaram de fora do rol de proibições de 2017 crimes como trabalho escravo (art. 149, CP), tráfico de pessoas (art. 149-A, CP) e associação em organização criminosa (art. 2º da Lei 12.850/2013). Desta forma, infrações graves e altamente reprováveis, simplesmente foram ignoradas pelo presidente da República, enquanto outras, de menor gravidade, não são indultáveis.
Visto que outros delitos não hediondos já fizeram parte do rol de proibições, se quisesse, o presidente poderia ter proibido o indulto coletivo para lavagem de dinheiro, tráfico de pessoas, crimes contra a ordem econômica e para os mais graves crimes contra a Administração Pública, já que o fez para infrações punidas de forma mais branda, como assédio sexual, sancionado com pena de detenção de 1 a 2 anos.
A proibição de indulto coletivo para tais infrações penais graves, antes mencionadas, não inviabilizaria o indulto individual (graça) para condenados específicos, sempre que presentes motivos humanitários ou de equidade, verificados na forma prevista na Lei de Execução Penal.
Evolução do tratamento dos crimes contra a Administração Pública nos decretos de indulto
Do ano passado para cá, o presidente Temer resolveu facilitar e muito a vida de quem comete corrupção, peculato e lavagem de dinheiro. Não é por acaso que isso ocorreu nos decretos de indulto de 2016 e 2017, justamente quando recrudesceram as reações do mundo político a grandes causas de criminalidade econômica e de colarinho branco, na esteira dos casos Zelotes, Cui Bono, Lava Jato, entre outras.
São duas as principais inovações do decreto baixado por Temer em 2017.
O tempo de cumprimento da pena, que já caíra em 2016 de um terço para um quarto, caiu de novo este ano para um quinto. Ou seja, o condenado só deverá cumprir vinte por cento da pena final aplicada pelo Poder Judiciário.
Além disso, conforme o decreto de 2017, não há mais limite de pena máxima como condição para o indulto. Antes, exigia-se pena máxima não superior a 12 anos. Na década passada esse limite já foi bem menor, de 6 anos. Agora, Temer eliminou esse teto, e réus condenados nos casos Mensalão, Lava Jato e noutros grandes processos criminais em breve poderão pleitear o benefício. É o caso de Eduardo Cunha, sentenciado a mais de 14 anos de reclusão.
Considerando que o crime de corrupção é punido com pena de 2 a 12 anos de reclusão, na prática um condenado por esse delito, não sendo reincidente, poderia obter indulto e livrar-se da sanção penal em menos de 29 meses, mesmo se fosse condenado à pena máxima.
Também pela regra geral, um réu sentenciado por lavagem de dinheiro (Lei 9.613/1998) a dez anos de prisão seria indultado em dois anos.
Fugindo da alegada finalidade de gestão de vagas no sistema penitenciário e de redução de população carcerária, o decreto de 2017 chega ao cúmulo de indultar condenados que estejam em regime aberto, que estejam cumprindo penas alternativas, que estejam em sursis ou em livramento condicional (art. 8º do Decreto 9.246/2017).
Quem quer que examine a tabela de série histórica a seguir verá que nos últimos vinte anos o Estado brasileiro relaxou o cumprimento de penas, mesmo para condenados por crimes graves, tornando mais fácil alcançar a extinção da punibilidade pela concessão de indulto coletivo.
Nos anos seguintes ao Mensalão e à Lava Jato, as minorações e mitigações de critérios foram drásticas, revelando opção sistemática dos últimos presidentes da República pela facilitação da obtenção de indulto coletivo, mesmo para condenações a penas superiores a 8 anos, com redução paulatina e abissal das frações de cumprimento exigidas.
No tocante ao Mensalão, o PGR Antônio Fernando ofereceu denúncia ao STF em 2006. No ano seguinte, o teto de pena para indulto subiu de 6 para 8 anos. A denúncia foi recebida pelo STF em 2008. Em 2010, o teto para indulto subiu de novo, desta vez para 12 anos, que corresponde à pena máxima para o peculato e a corrupção passiva, crimes de que foram acusados vários dos réus na ação penal 470.
Quanto à Lava Jato, o caso iniciou-se em março de 2014, mas as reações mais fortes do sistema político se fizeram sentir a partir de 2016. A fração de pena a ser cumprida para indulto foi reduzida naquele ano, de 1/3 para 1/4, primeira alteração em décadas neste item. Com a operação Patmos atingindo o próprio presidente da República em 2017, a fração de pena a ser cumprida foi de novo reduzida, para apenas 20% (1/5), tendo sido também eliminado o limite máximo de pena elegível.
Realmente, em 2017, o decote que costumava ficar, pela regra geral, em 66,66% chegou a absurdos 80% da pena original, o que é elemento probatório contrário à percepção de alguns setores doutrinários de que haveria um incremento do punitivismo no Brasil. Neste item, o do indulto, as evidências matemáticas e os critérios legais mostram que não.
nconstitucionalidade do Decreto de indulto de 2017
Há vários problemas no Decreto 9.246/2017. É fácil achá-los.
O art. 10 é absurdamente inconstitucional, por violação da proporcionalidade e da legalidade, porque permite que o indulto alcance a pena de multa aplicada cumulativamente pelo crime (corrupção, por exemplo), ainda que haja inadimplência. Que isto significa? Estímulo à inadimplência, sem mesmo exigir-se um REFIS. A mensagem é: “Não pague”.
Tal como redigido, o decreto de indulto de 2017 não contribui para a prevenção geral dos crimes, servindo de desestímulo aos órgãos estatais de persecução penal e de encorajamento a quem queira livrar-se cedo da responsabilidade penal, mesmo após ser considerado culpado por crime grave, inclusive infrações contra a Administração Pública, lavagem de dinheiro, trabalho escravo e tráfico de pessoas, estas últimas inequivocamente violadoras de direitos fundamentais da pessoa humana.
Neste sentido, o decreto de Temer é inconstitucional porque serve de subterfúgio do Poder Executivo para substituir-se ao Poder Legislativo na cominação abstrata de penas mínimas para tipos penais graves, assim como meio espúrio de contornar, de forma divorciada dos fins e razões do indulto, condenações legitimamente aplicadas pelo Poder Judiciário.
É também imoral o decreto e violador do princípio da impessoalidade, no sentido do art. 37 da Constituição, pois baixado por presidente denunciado por crimes que potencialmente se encaixam na nova tradição que se pretende inaugurar, com regras que poderão ser repetidas pelo próprio Temer no decreto de indulto de dezembro de 2018.
Não se ignora que o presidente tem competência exclusiva para o indulto, mas essa competência não é arbitrária. Está sujeita a limites materiais, decorrentes da separação de poderes, da inafastabilidade do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, CF), do princípio da proporcionalidade das penas em sua dupla face garantista e do dever de proteção à sociedade, que se manifesta no direito à segurança (arts. 5º e 144 da CF) e no direito à Administração Pública proba (art. 37 da CF).
O problema principal está em que, diante da superpopulação carcerária em várias unidades prisionais do País, ao longo dos anos o indulto coletivo banalizou-se, desvirtuou-se e passou a ser usado como ferramenta de esvaziamento de prisões, sem exame de situações humanitárias ou de iniquidade específicas, o que torna essa modalidade de clemência presidencial incompatível com a razão de ser do indulto, pois não autorizada pela Constituição intromissão rotineira (ano a ano) e generalizada desta ordem por um Poder em competências de outro Poder. Não há poderes absolutos enfeixados em mãos do presidente para muda ou perdoar todos os anos penas justas aplicadas pelo Poder Judiciário a pessoas física e mentalmente capazes.
Fora de quadro legal, o indulto coletivo tem sido apartado de sua raiz original, com ampliação de seu alcance à margem da Lei, servindo anualmente como ferramenta de gestão de unidades prisionais, dada a incapacidade do Estado de encontrar alternativas ao processo penal e à pena privativa de liberdade, como seria possível mediante a descriminalização de certas condutas, a adoção em larga medida do princípio da oportunidade da ação penal, de acordos penais, de práticas restaurativas e pela implantação de critérios mais largos para penas alternativas, e a construção de unidades prisionais adequadas.
Essa arbitrariedade e falta de critérios legais, que marcam o indulto coletivo, vem-se revelando ao longo dos últimos vinte anos, como se percebe na tabela acima, com variação (in)explicável, sempre para menos, das frações de pena a cumprir, nos decretos baixados pelos sucessivos presidentes, e com a ampliação do teto de pena máxima admissível para o indulto, que já agora foi simplesmente eliminado. O céu é o limite.
Essa falta de cerimônia para mexer na individualização legislativa e na dosimetria judicial da pena por via transversa e a desproteção de interesses jurídicos relevantes para a sociedade, que disso resulta, tornam inconstitucional o decreto de indulto presidencial de 2017.
Na prática, a reiteração dos decretos de indulto coletivo, ano após ano, cria, sem lei penal específica, mediante simples ato presidencial, uma situação anômala mediante a qual as penas abstratamente cominadas pelo legislador são de fato e de direito reduzidas genérica e generosamente pelo presidente da República, ao seu talante, em um terço, em um quarto ou em um quinto. Por que não um sexto?
Com isso, os decretos de indulto fazem o papel de leis penais gerais, que movem para baixo os limites mínimos de cumprimento de penas no Brasil, o que é absolutamente inconstitucional por violação ao princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX e art. 62, §1º, b, CF) e ao dever estatal de proteção a bens jurídicos fundamentais (art. 5º, CF).
Não por outro motivo, o TRF-4, com sede em Porto Alegre, teve ocasião de decretar a inconstitucionalidade, em controle difuso, do art. 1º do Decreto 8.615/2015, muito menos tosco que o atual indulto natalino:
ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1º, XIV, DO DECRETO 8.615/15. INDULTO NATALINO, PERIÓDICO E GENÉRICO, A TANTOS QUANTOS TENHAM CUMPRIDO 1/4 DAS SUAS PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS. VIOLAÇÃO À SEPARAÇÃO DOS PODERES, À INDIVIDUALIZAÇÃO DAS PENAS, À VEDAÇÃO AO EXECUTIVO PARA LEGISLAR SOBRE MATÉRIA PENAL E À VEDAÇÃO DA PROTEÇÃO INSUFICIENTE
1. O exercício de toda e qualquer competência, por parte de quaisquer autoridades, por mais elevadas que sejam, tem de ser orientado pelos princípios constitucionais, deles não podendo desbordar, sob pena de invalidade.
2. Compete privativamente ao Presidente da República conceder indulto, prerrogativa discricionária, mas não arbitrária, cujo exercício só se justifica em caráter excepcional, sobretudo quando presentes razões humanitárias.
3. Os crimes estão sujeitos às penas cominadas pelo Poder Legislativo e aplicadas pelo Poder Judiciário de modo individualizado, com atenção às circunstâncias específicas relacionadas a cada crime e ao seu agente.
4. A conversão das penas privativas de liberdade em restritivas de direitos evita o desnecessário encarceramento, apresentando maior efeito ressocializador. Consiste, via de regra, na substituição da prisão pela prestação de serviços à comunidade e pagamento de prestação pecuniária.
5. Ao conceder indulto inclusive aos apenados que recém tenham cumprido 1/4 das penas restritivas de direitos a que condenados, dispensando o cumprimento dos 3/4 que ainda tinham a cumprir, o Presidente da República viola o princípio da separação dos poderes e o princípio da individualização das penas, de que cuidam os artigos 2º e 5º, XLVI, da CF.
6. O Presidente da República, ao estabelecer normas redutoras de pena, de cunho geral e abstrato, mediante decretos de indulto editados periodicamente, viola a norma constitucional que lhe proíbe legislar sobre Direito Penal: art. 62, § 1º, b, da CF.
7. O Decreto de indulto que retira a eficácia da resposta penal ao reduzi-la a níveis desproporcionalmente brandos, com a dispensa do cumprimento de mais da metade das penas aplicadas, viola o princípio constitucional da vedação da proteção insuficiente, que é uma garantia da sociedade. (TRF-4, Corte Especial, Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade 5051763-44.2016.4.04.0000/TRFrel. Leandro Paulsen, j. em 25/05/2017).”
Esse é sem dúvida o melhor precedente quanto aos contornos e limites do indulto no Brasil, pela análise histórica e jurídica rigorosa. A decisão da Corte Especial do TRF-4 foi atacada por recurso extraordinário e aguarda decisão do STF (RE 1092375, rel. min. Celso de Melo).
Violação de compromissos internacionais do Brasil
No que diz respeito aos crimes de corrupção, peculato, obstrução da justiça e lavagem de dinheiro, o atual decreto de indulto se afasta drasticamente da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, concluída em Mérida, em 2003 (Decreto 5.687/2006), tornando-se inconvencional, à luz do art. 5º, §§2 e 3.
De fato, segundo o tratado, cada Estado deve “estabelecer e fomentar práticas eficazes encaminhadas a prevenir a corrupção” e “avaliar periodicamente os instrumentos jurídicos e as medidas administrativas pertinentes a fim de determinar se são adequadas para combater a corrupção”. Neste item, em que se verifica, pelo decreto, o fomento ao crime, interessaria muito conhecer a posição da CGU sobre o referido indulto, já que é inegavelmente incompatível com a obrigação convencional do País de combater esse delito.
O art. 30.5 da Convenção de Mérida é ainda mais explícito, neste ponto, pois exige que os Estados Partes tenham em conta a gravidade dos crimes previstos no tratado, antes de conceder “liberdade antecipada” (expressão na qual se encaixa o indulto) ou liberdade condicional a pessoas condenadas por tais crimes. O decreto de Temer não cumpre esse teste, falhando na observância de tal dever convencional. Obrigação semelhante está no art. 11.4 da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado (Decreto 5.015/2004), concluída em Palermo no ano 2000, que engloba os crimes de associação em organização criminosa, lavagem de dinheiro, corrupção e obstrução de Justiça.
A Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, concluída no âmbito da OCDE em Paris em 1997 (Decreto 3.678/2000) segue a mesma linha e exige que os Estados Partes punam a corrupção de funcionários públicos estrangeiros “com penas criminais efetivas, proporcionais e dissuasivas”. Sanções penais drasticamente reduzidas por indulto, mitigadas em até 80% da dosimetria final, não podem ser tomadas como efetivas nem dissuasivas. Falta-lhes deterrence, isto é, capacidade de inibição de comportamentos ofensivos ao bem jurídico protegido.
Tal deficiência legislativa estrutural, promovida pelo decreto de indulto, choca-se também com a Recomendação 35 do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), que integra conjunto de regras destinadas a promover a prevenção e a repressão à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e à disseminação de armas de destruição em massa. Esta recomendação (soft law) insta os Estados Partes a prever penas efetivas, proporcionais e dissuasivas para tais infrações.
Na lição do desembargador Leandro Paulsen, referindo-se ao decreto de indulto de 2015:
“Pode-se dizer, com firmeza, que o legislador comina as penas, o julgador as aplica, mas que, na prática, as penas são divididas por três ou, como se verá do item adiante, por quatro por ato unilateral do executivo. As penas estabelecidas na legislação e dosadas nas sentenças são objeto de um corte substancial e profundíssimo: sua maior parte não é aplicada! Tomemos como exemplo o crime de corrupção passiva, com pena de 2 a 12 anos, e multa. Na prática, a pena cominada vige, é aplicada, mas não é cumprida. É dispositivo sem norma. O efetivamente cumprido são penas 8 meses a 4 anos, na hipótese de o indulto colher quem tenha cumprido 1/3 da penal”. (TRF-4, Corte Especial, Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade 5051763-44.2016.4.04.0000/TRF, rel. Leandro Paulsen, voto do relator).
Penas amputadas prematuramente por decretos de indulto milimetricamente calculados não são nem efetivas nem dissuasivas. Na verdade, decretos de indulto coletivo como o presente desprotegem a sociedade e a coisa pública, violando a proibição de proteção deficiente, e descumprem compromissos internacionais do País.
O indulto, tal como desenhado por Temer, é um insulto, lugar-comum que só se espalhou pelas redes sociais. Não é uma graça, é gracejo do presidente com o que não lhe pertence. Seria um aceno a correligionários em apuros? An, an. Deixa para lá. Vem o Réveillon aí. Depois é Carnaval. Aqui não é o Peru nem a Argentina. Como diria Anitta, solta o som.