Artigo

A proteção às vítimas da violência institucional

A lei tem vigência imediata, punindo-se a partir dessa mesma data a revitimização praticada por agentes estatais, conduta que passa a ser descrita no art. 15-A da Lei de Abuso de Autoridade.

Por Vladmir Aras 

Publicada em 1º de abril de 2022, a Lei 14.321/2022 tipifica como abuso de autoridade o crime de violência institucional. A lei tem vigência imediata, punindo-se a partir dessa mesma data a revitimização praticada por agentes estatais, conduta que passa a ser descrita no art. 15-A da Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019).

Sancionado, na forma básica com pena de detenção de 3 meses a 1 ano, e multa, o novo art. 15-A prevê uma infração penal de menor potencial ofensivo, de competência dos Juizados Especiais Criminais, que se consuma quando: (i) a vítima de infração penal ou (ii) a testemunha de crime violento é levada a reviver desnecessariamente situação de violência ou situações de sofrimento ou estigmatização.

Lei 14.321, de 2022

Violência Institucional

Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade:

I – a situação de violência; ou

II – outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.

§ 1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços).

§ 2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro.

O novo crime tem uma forma majorada no §1º do art. 15-A da Lei de Abuso de Autoridade (LAA), com aumento de pena de ⅔ (dois terços) para o agente público que permitir que terceiro intimide a vítima de crime violento, provocando revitimização. Nesta configuração, pode haver concurso com o delito de coação no curso do processo (CP, art. 344), especialmente na forma do seu parágrafo único, pois os bens jurídicos são diversos. Ademais, a parte final do preceito secundário do art. 344 manda aplicar conjuntamente a pena correspondente à violência, o que abrange tanto a violência física quanto a psicológica, agora com maior relevância no ordenamento brasileiro, como se nota das previsões do art. 5º da Convenção de Belém do Pará, do art. 7º da Lei Maria da Penha e do art. 147-B do CP.

Coação no curso do processo

Art. 344 – Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
Parágrafo único. A pena aumenta-se de 1/3 (um terço) até a metade se o processo envolver crime contra a dignidade sexual.

O crime de violência institucional também será majorado, com a pena do tipo básico aplicada em dobro, se o próprio agente público intimidar a vítima de crime violento, disso resultando sua revitimização. É o que prevê o §2º do art. 15-A da Lei de Abuso de Autoridade. Também pode haver concurso com a coação no curso do processo, previsto no art. 344 do CP, cujo parágrafo único foi incluído pela Lei 14.235/201 (Lei Mariana Ferrer).

Normalmente, o crime de violência institucional terá como sujeitos passivos as mulheres vítimas de violência (violência de gênero, crimes sexuais etc), assim como crianças e adolescentes testemunhas ou vítimas de violência, mas não só. Para essas pessoas, há regras específicas contra a revitimização previstas na Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) e na Lei 13.431/2017.

Os arts. 7º a 12 da Lei 13.431/2017 tratam da escuta especializada e do depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Já o art. 10-A, §§1º e 2º, da Lei 11.340/2006 regula o depoimento especial de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar.

Os arts. 400-A e 474-A do CPP e o §1º-A do art. 81 da Lei 9.099/1995, trazidos a lume pela Lei Mariana Ferrer, complementam o quadro pois impedem que, na instrução perante o juízo singular ou o tribunal do júri ou o Juizado Especial Criminal, respectivamente, especialmente nas ações penais que tenham como objeto crimes contra a dignidade sexual (estupro, violação sexual mediante fraude, importunação sexual, assédio sexual, registro não autorizado da intimidade sexual, estupro de vulnerável etc), o juiz, as partes e seus advogados atentem contra a integridade física e psicológica da vítima, sendo vedadas pela lei (i) a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos; e (ii) a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

Também podemos identificar a aplicação desse novo art. 15-A da LAA nos casos de vítimas e testemunhas protegidas nos termos da Lei 9.807/1999, isto é, aquelas inseridas nos programas de proteção similares ao PROVITA, destinado a pessoas ameaçadas.

Para todas essas vítimas de infrações praticadas mediante violência física ou psíquica, a Polícia, o Ministério Público e o juízo criminal deverão adotar rigorosamente os protocolos de depoimento sem dano, agora penalmente tutelados. Devem também evitar atos de instrução desnecessários ou repetitivos que possam causar revitimização. Diante do dever estatal de investigar, processar e, eventualmente, punir violações a direitos humanos, a observância desses protocolos deve se compatibilizar com o cumprimento do dever de diligência devida na persecução criminal, por parte da Polícia e do Ministério Público, para que o cumprimento de um não invalide o cumprimento do outro.

Devem também tais autoridades e a Polícia Científica, responsável pelas perícias notadamente em crimes sexuais, evitar que os atos probatórios e os atos de instrução da investigação ou da ação penal sejam desnecessariamente invasivos, no tocante à intimidade, à vida privada e tratamento dos dados pessoais das vítimas.

Nos depoimentos na Polícia, no Ministério Público ou em juízo devem ser evitadas perguntas vexatórias, discriminatórias, preconceituosas, humilhantes ou com finalidade puramente ofensiva, assim como o emprego de estereótipos. A reconstituição ou reprodução simulada dos fatos com a participação da vítima da violência deve ser evitada, salvo se indispensável. Preferencialmente, suas declarações devem ser colhidas uma só vez, com gravação audiovisual e contraditório antecipado. Os exames físicos, mormente nos casos de violência sexual, não devem ser repetidos sem necessidade, e, quando em meninas ou mulheres, devem ser realizados por peritas ou médicas legistas. As autoridades devem evitar a exposição pública das vítimas, especialmente de sua imagem, dados pessoais e local de trabalho ou residência, para evitar a estigmatização pela mídia.

Quanto à repetição desnecessária de atos processuais em casos de violência sexual, vale considerar a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos, no caso N. Ç vs. Turquia (2021), no qual o tribunal em Estrasburgo afirmou a responsabilidade internacional do Estado turco por não ter garantido proteção judicial a uma criança vítima de exploração sexual, causando-lhe vitimização secundária. Na investigação e no processo, a menor foi submetida a desnecessárias reconstituições dos estupros, a repetidos exames médico-periciais e não lhe foi oferecido um ambiente calmo e seguro nas audiências de inquirição. É justamente este tipo de abuso que a Lei de Violência Institucional pretende evitar.

Note que no caput do art. 15-A da LAA protege-se qualquer vítima de infração penal, inclusive contravenções penais. Nos §§1º e 2º, as majorantes valem quando há vítima de um crime violento. Quanto às testemunhas, estas são apenas protegidas pela forma básica do crime, previsto no caput do art. 15-A da LAA.

Seja como for, tendo em vista a necessidade de um elemento subjetivo especial (art. 1º, §1º, da LAA), o crime do art. 15-A será de difícil constatação na prática, só se consumando “quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”.

Considerando que a violência é inerente ao crime em tela, não é possível celebrar acordo de não persecução penal (ANPP), dada a vedação do caput do art. 28-A do CPP e do seu §2º, inciso IV. Mas, tomando em conta a pena aplicável para o tipo básico e as formas majoradas, são cabíveis a transação penal e a suspensão condicional do processo, previstas nos arts. 76 e 89 da Lei 9.099/1995, salvo se o delito for praticado no contexto de violência contra a mulher, pois, neste caso, a Lei Maria da Penha veda a incidência da Lei dos Juizados Especiais Criminais.

Lei 11.340/2006

Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.

No mesmo sentido é a Súmula 536 do STJ:

SÚMULA 536

A suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha.
(Súmula 536, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 10/06/2015, DJe 15/06/2015)

Como em todos os crimes da Lei de Abuso de Autoridade, a ação penal para o delito do art. 15-A da LAA é pública incondicionada (vide o art. 3º), tendo curso perante o Juizado Especial Criminal. A regra será a competência da Justiça Estadual, mas a competência federal pode ocorrer se o agente público autor for uma autoridade federal no exercício de suas funções (art. 109, IV, CF).

A Lei da Violência Institucional (ou Lei da Revitimização) junta-se a outras leis destinadas à proteção vitimária, como a Lei Mariana Ferrer (Lei 14.245/2021), que introduziu no CPP os art. 400-A e 474-A.

Esta nova lei também dialoga com a jurisprudência da Corte IDH, que, em 2021, condenou o Brasil, entre outras razões, pela adoção de estereótipos de gênero na investigação do homicídio que, em 1998, vitimou Márcia Barbosa de Souza, na Paraíba, e que ficou impune. Tratei deste caso neste texto no Conjur.

É importante ver que o art. 15-A da Lei de Abuso de Autoridade não pune particulares que revitimizem vítimas ou testemunhas. Isto porque, em se tratando de um crime de abuso de autoridade, o sujeito ativo, na forma do art. 2º da LAA, será qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território. A LAA esclarece que agente público é “todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade” de qualquer dos poderes do Estado.

O envolvimento de terceiro (não servidor público ou autoridade) no crime do art. 15-A é admitido pelo seu §1º, mas só quando o responsável pelo ato de instrução policial ou judicial se omitir diante da revitimização e deixar de reprimir tal conduta.

Logo, em regra será um crime praticado por juízes, membros do Ministério Público (inclusive em PICs), policiais civis e militares, policiais federais, peritos, assistentes sociais, psicólogos, servidores da Justiça e, eventualmente, também por defensores públicos, mas não por advogados, salvo os dativos. Melhor teria feito o legislador, se a conduta tivesse sido inserida no Código Penal entre os crimes contra a Administração da Justiça. Na sua falta, a depender do caso, a punição de particulares poderá recair no art. 344 do CP, já mencionado, ou nos crimes contra a honra (vide, porém, o art. 142, inciso I, do CP), ou ainda no delito de violência psicológica (art. 147-B do CP).

A descrição da conduta típica pelo art. 15-A da LAA pode suscitar dúvidas e comprometer a função de garantia da norma penal, que sempre deve ser precisa e clara. Para reduzir o espaço de incerteza, devemos nos nortear pelo art. 5º, inciso I, do Decreto 9.603/2018, que regulamentou a Lei 13.431/2017 e define “violência institucional“.

“Violência institucional” é a violência praticada por agente público no desempenho de função pública, em instituição de qualquer natureza, por meio de atos comissivos ou omissivos que prejudiquem o atendimento à criança ou ao adolescente vítima ou testemunha de violência.

Já a “revitimização”, conforme o art. 5º, II, do mesmo Decreto, é o discurso ou prática institucional que submeta crianças e adolescentes a procedimentos desnecessários, repetitivos, invasivos, que levem as vítimas ou testemunhas a reviver a situação de violência ou outras situações que gerem sofrimento, estigmatização ou exposição de sua imagem”.

Para evitar tais resultados indesejados, o art. 26 do Decreto 9.603/2018 determina que o depoimento especial de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência deve ser conduzido por autoridades capacitadas e realizado em ambiente adequado ao desenvolvimento dessas pessoas.

E conforme o inciso II do §1º do mesmo art. 26 do Decreto 9.603/2018 a condução do depoimento especial deve ser realizada de forma a evitar questionamentos que atentem contra a dignidade da criança ou do adolescente ou, ainda, que possam ser considerados violência institucional.

No tocante às mulheres, tomemos em conta a Resolução 254/2018 do CNJ, que, no seu art. 9º, conceitua a violencia institucional contra as mulheres como toda “ação ou omissão de qualquer órgão ou agente público que fragilize, de qualquer forma, o compromisso de proteção e preservação dos direitos de mulheres.”

Vê-se, portanto, que o novo art. 15-A da Lei de Abuso de Autoridade tem inequívoca relação de subordinação ao conjunto normativo de proteção vitimária acima indicado, devendo ser interpretado de acordo com a Lei Maria da Penha, a Lei Mariana Ferrer e a Lei 13.431/2017.

No direito comparado, devemos lembrar da Diretiva 2012/29/UE, da União Europeia sobre direitos das vítimas de crimes, cujo art. 18 determina que os Estados da UE protejam “as vítimas e os seus familiares contra a vitimização secundária e repetida, a intimidação e a retaliação, nomeadamente contra o risco de danos emocionais ou psicológicos” e que também velem pela “dignidade das vítimas durante os interrogatórios e depoimentos”.

No contexto brasileiro, as autoridades de persecução e julgamento devem ter em conta ainda a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará em 1994 (Decreto 1973/1996), cujo art. 2º, letra “c”, considera que a violência contra a mulher – física, sexual ou psicológica – abrange também aquela “perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra”.

O art. 7º da Convenção de Belém do Pará contém mandados expressos de aperfeiçoamento da ordem jurídica dos Estados Partes, determinando-lhes que se empenhem em “abster-se de qualquer ato ou prática de violência contra a mulher e velar por que as autoridades, seus funcionários e pessoal, bem como agentes e instituições públicos ajam de conformidade com essa obrigação”. Cumpre-lhes também, no cumprimento de suas obrigações processuais positivas “agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher”.

Não custa lembrar que no caso Márcia Barbosa de Souza vs. Brasil, a vítima do homicídio foi achincalhada pela defesa e sua imagem e reputação foram achincalhadas por agentes estatais:

Caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil (2021)

148. De acordo com a perita Soraia Mendes, a repetição de provas testemunhais buscou
construir uma imagem de Márcia Babosa para gerar dúvidas a respeito da responsabilidade penal do então deputado por seu homicídio. A perita Mendes enfatizou que as testemunhas não apenas foram inquiridas sobre os fatos, mas também sobre a conduta social, a personalidade e a sexualidade de Márcia Barbosa, o que indicaria uma “investigação sobre a vítima, seu comportamento, sua reputação. Algo que toma as páginas dos jornais e se projeta para os autos do processo judicial com ainda mais força”.

149. Outrossim, durante a tramitação do processo penal contra Aércio Pereira de Lima
perante o Tribunal do Júri, o advogado de defesa solicitou a incorporação aos autos do processo de mais de 150 páginas de artigos de jornais que se referiam à prostituição, overdose e suposto suicídio (par. 71 supra), para vinculá-los a Márcia Barbosa com a intenção de afetar sua imagem. Adicionalmente, o defensor realizou diversas menções no curso do processo sobre a orientação sexual da vítima, um suposto vício de drogas, comportamentos suicidas e depressão. Igualmente, descreveu a Márcia como uma “prostituta” e a Aércio como “o pai de família” que “se deixou levar pelos encantos de uma jovem” e que, em um momento de raiva, teria “cometido um erro”.

150. Tendo em vista as considerações acima, o Tribunal conclui que a investigação e o
processo penal pelos fatos relacionados ao homicídio de Márcia Barbosa de Souza tiveram um caráter discriminatório por razão de gênero e não foram conduzidos com uma perspectiva de gênero de acordo com as obrigações especiais impostas pela Convenção de Belém do Pará. Portanto, o Estado não adotou medidas dirigidas a garantir a igualdade material no direito de acesso à justiça em relação a casos de violência contra as mulheres, em prejuízo dos familiares de Márcia Barbosa de Souza. Esta situação implica que, no presente caso, não foi garantido o direito de acesso à justiça sem discriminação, assim como o direito à igualdade.

No §172 da referida sentença, a Corte IDH afirmou que “as investigações estiveram permeadas por estereótipos de gênero, os quais não apenas foram revitimizantes para os familiares de Márcia Barbosa de Souza, mas também demonstram a ausência de uma perspectiva de gênero na investigação.”

Este mesmo caso, a Corte IDH reafirmou os deveres estatais de investigar, processar e, se for o caso, punir, o que recomenda um equilíbrio na atividade estatal em torno dos interesses das vítimas, sobretudo quanto à produção de provas periciais na fase investigatória ou em juízo.

No campo da res interpretata interamericana, o caso Gutiérrez Hernández e Outros vs. Guatemala nos oferece um bom parâmetro sobre o processo de revitimização de vítimas de violência no curso da persecução criminal:

Caso Gutiérrez Hernández e Outros vs. Guatemala (2017)

170. A influência de padrões socioculturais discriminatórios pode resultar em uma
desqualificação da credibilidade da vítima durante o processo penal nos casos de violência e a assunção tácita de sua responsabilidade pelos fatos, seja por sua vestimenta, sua ocupação laboral, conduta sexual, relação ou parentesco com o agressor, que se traduz na inércia de promotores, policiais e juízes diante de denúncias de atos violentos. Esta influência também pode afetar negativamente a investigação de casos e a avaliação da prova subsequente, que pode ser marcada por noções estereotipadas sobre qual deve ser o comportamento das mulheres em suas relações interpessoais. É assim que, de acordo com certas diretrizes internacionais sobre violência contra a mulher e violência sexual, provas relacionadas à vida sexual da vítima são, em princípio, inadmissíveis, pelo que a abertura de linhas de investigação sobre o comportamento social ou sexual prévio de vítimas em casos de violência de gênero nada mais é do que a manifestação de políticas ou atitudes baseadas em estereótipos de gênero.

173. A Corte reconhece que os preconceitos pessoais e os estereótipos de gênero afetam a objetividade dos funcionários do Estado encarregados de investigar as denúncias levadas ao seu conhecimento, influenciando sua percepção para determinar se ocorreu ou não um ato de violência, na sua avaliação da credibilidade das testemunhas e da própria vítima. Os estereótipos “distorcem percepções e levam a decisões baseadas em crenças preconcebidas e mitos, ao invés de fatos”, o que por sua vez pode levar a uma denegação de justiça, incluindo a revitimização das denunciantes. Quando os estereótipos são empregados ​​na investigação de violência contra a mulher afeta-se o seu direito a uma vida livre de violência, ainda mais nos casos em que esses estereótipos por parte dos operadores jurídicos impedem a realização de investigações adequadas, negando-se, além disso, o direito de acesso à justiça às mulheres. Por sua vez, quando o Estado não desenvolve ações concretas para erradicá-los, os reforça e os institucionaliza, o que gera e reproduz a violência contra a mulher.

Em suma, embora a Lei 14.321/2022 não seja perfeita, é mais um passo para a consolidação da proteção vitimária no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente das vítimas mais vulneráveis. Espera-se, contudo, que o Congresso Nacional aprove uma legislação mais ampla e sistematizada neste campo, como o Estatuto das Vítimas, que é objeto do PL 3890/2020.

Este artigo foi originalmente publicado no Conjur em 2 de abril de 2022 

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