Chamou a atenção nos meios jurídicos brasileiros a proposta do presidente eleito da Colômbia de extinguir o Ministério Público do país.
Por aqui, imagino que muita gente tenha gostado da ideia.
Mas a história é outra.
É que, na Colômbia, diferentemente do que se passa no resto da Ibero-América, o Ministério Público (lá encabeçado pela Procuradoria Geral da Nação ou PGN) e a Fiscalía General de la Nación (FGN) são órgãos distintos.
Na América Latina e na Espanha, Ministério Público e Fiscalías são o mesmo órgão. Mas a Colômbia foge a esta regra. Lá o MP é uma coisa; a Fiscalía, outra.
A Fiscalía (Promotoria) colombiana é objeto dos artigos 249 a 253 da Constituição de 1991, no Titulo VIII, sendo integrante do Poder Judiciário (rama judicial). O MP da Colômbia, por sua vez, vem regulado no Título X (arts. 275 a 284) da Constituição de 1991, entre os órgãos de controle, ao lado da Controladoria Geral da República.
Nosso Ministério Público (criminal) corresponde à FGN colombiana, ao passo que a PGN (o MP deles) corresponde à nossa CGU e a um MP custos legis, com funções ainda mais amplas que esses dois órgãos brasileiros.
Então faz sentido para o presidente eleito propor a “extinção” do MP local e a assunção de suas funções por uma Fiscalía ou Promotoria anticorrupção, a vincular-se ao Poder Judiciário.
A proposta de Petro faz ainda mais sentido se lembrarmos que ela tem a ver com o fato de que ele próprio, quando prefeito de Bogotá, foi alvo de arbitrariedades cometidas pelo Ministério Público colombiano (leia-se PGN), o que resultou na sentença de 2020 da Corte IDH, no caso Petro Urrego vs. Colômbia.
Na sentença, a Corte IDH entendeu inconvencionais dispositivos da legislação colombiana que permitem ao MP local destituir diretamente autoridades eleitas.
Destaco o parágrafo pertinente da sentença interamericana, que reconheceu ter havido violação dos direitos políticos de Gustavo Petro, previstos no artigo 23 da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Petro Urrego vs. Colômbia (2020).
Por otro lado, el Código Disciplinario Único prevé en sus artículos 44 y 45 la facultad de la Procuraduría para destituir e inhabilitar funcionarios públicos, y define las implicaciones de dichas sanciones en los siguientes términos: “a) La terminación de la relación del servidor público con la administración, sin que importe que sea de libre nombramiento y remoción, de carrera o elección, o b) La desvinculación del cargo, en los casos previstos en los artículos 110 y 278, numeral 1, de la Constitución, o c) La terminación del contrato de trabajo, y d) En todos los casos anteriores, la imposibilidad de ejercer la función pública en cualquier cargo o función, por el término señalado en el fallo, y la exclusión del escalafón o carrera”. La Corte ya concluyó anteriormente que una sanción de inhabilitación o destitución de un funcionario público democráticamente electo por vía de autoridad administrativa y no por “condena, por juez competente, en proceso penal”, es contraria al artículo 23.2 de la Convención y al objeto y fin de la Convención (supra párr. 100). Por las mismas razones, la Corte concluye que el Estado incumplió con sus obligaciones previstas en el artículo 23 de la Convención, en relación con el artículo 2 del mismo instrumento, por la existencia y aplicación de las normas del Código Disciplinario Único que facultan a la Procuraduría a imponer dichas sanciones a funcionarios públicos democráticamente electos, como fue el caso del señor Petro.”
Conforme a jurisprudência da Corte IDH, a inabilitação ou a destituição de autoridades democraticamente eleitas por meio de ato de órgãos administrativos, e não como consequência de uma condenação criminal pelo juiz competente, contrariam o art. 23.2 da Convenção.
Artigo 23
Direitos Políticos
(…)
A lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades a que se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivos de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal.
No caso Petro Urrego, o juiz Zaffaroni concordou com essa conclusão, mas trouxe um voto parcialmente dissidente noutro ponto. O jurista argentino divergiu do colegiado por considerar ter havido também violação ao artigo 5.1 da Convenção Americana, segundo o qual “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.” Disse
VOTO DISSIDENTE DO JUIZ EUGENIO RAÚL ZAFFARONI QUANTO AO PONTO 5 RESOLUTIVO
Em atenção à gravidade inerente à persecução por via de procedimentos arbitrários e com imputações de corrupção, tendo em conta a extensão, reiteração e crescente frequência da chamada lawfare, deve-se exigir dos Estados o máximo de cuidado, transparência e prudência possíveis quando se trata de pessoas com alto protagonismo político, pois que, do contrário, em lugar da racional luta contra qualquer forma de corrupção, estar-se-ia restabelecendo um marco inquisitorial apto a menoscabar a saudável e democrática luta política.
Quanto ao quadro local colombiano, a proposta do presidente eleito Gustavo Petro consiste, portanto, não no fim do MP. Sua ideia é transformar o MP local num órgão anticorrupção que postulará perante o Poder Judiciário, função semelhante à do MP no Brasil em matéria de improbidade administrativa, por exemplo (esta sim uma atividade quase extinta…). A Fiscalía (Promotoria) colombiana, por sua vez, continuaria com seu desenho atual e suas atribuições criminais.
Na referida sentença, a Corte IDH lembrou que os Estados Partes da CADH têm o dever de legislar para harmonizar ou compatibilizar suas ordens jurídicas ao conjunto convencional interamericano. Esta é mais uma das obrigações estatais positivas.
Siga o Acorda Cidade no Google Notícias e receba os principais destaques do dia. Participe também dos nossos grupos no WhatsApp e Telegram