Por Vladimir Aras
Cheguei a Utinga há 18 anos, numa segunda-feira ensolarada, 4 de outubro de 1993, dia da feira livre local. Como em todas as cidadezinhas do interior do Nordeste, a feira semanal ocorria nas ruas do centro, que ficavam apinhadas de gente vinda dos povoados e das localidades vizinhas, com suas frutas, verduras e animais para abate, roupas, tralhas e bugigangas.
Era meu primeiro dia de trabalho como promotor de Justiça. Eu lá com meus 22 anos. J. R., meu pai, me acompanhou na jornada de Salvador até minha comarca de lotação, que ficava a uns 90 km ao norte de Lençóis, na inesquecível e misteriosa Chapada Diamantina. Nunca ouvira falar de Utinga e jamais morara fora de casa. Pior, eu não sabia nada do que era ser Ministério Público.
Para começo de conversa, Utinga era um ovo. Cidadezinha de umas 16 mil almas, contando as deste e as do outro mundo. Assim que saí à rua com meu paletó de viscose e meu vademecum ano/modelo 1993, ouvi logo uma saudação e duas perguntas:
– Pastor, seja bem-vindo! O senhor é missionário novo aqui? De que Igreja? -, perguntou uma mulher de meia idade.
Ela tomara meu vademécum por uma bíblia. Tentei explicar que eu era do Ministério Público, mas aquela senhora simpática disse-me que só conhecia o Ministério Getsêmani. Sorri e continuei meu caminho.
Não era de admirar. Eu seria o primeiro promotor de Justiça da Comarca de Utinga, que acabara de ser criada, por desmembramento de Ruy Barbosa. Sob os meus cuidados, ficariam as cidades de Utinga, a sede, terra de águas claras, grutas inquietantes e fartos canaviais onde se produz a cachaça Cabeceira do Rio; Wagner, vila pacata, colonizada por presbíteros norte-americanos, e torrão onde foram fundados o Instituto Ponte Nova e o Grace Memorial Hospital; e Bonito, terra alta, de grandes fazendas, matas fechadas e belos cafezais.
Ao chegar ao fórum, logo ali na Praça Wilson Peixoto Karaoglan, lá estavam D. Edna, Eduardo, D. Sesília, D. Floracy e Seu Landualdo, o juiz de paz. D. Edna, chefe do cartório, me levou ao gabinete do promotor. Na verdade, era uma salinha, sem ar-condicionado ou ventilador. No meio do ambiente, havia uma mesa de alumínio e uma cadeira. No canto, um armário de duas portas. E só. Em cima da mesa, folhas de papel ofício e uma caneta. Talvez fosse uma bic.
Olhei para o meu pai e perguntei: – E agora, J. R.?
– Sei lá. Sou sociólogo. Você é a autoridade. – respondeu-me ele, sorrindo.
Enquanto eu tentava descobrir qual deveria ser o meu primeiro ato como promotor de Justiça, vi alguém à porta. Era D. Edna. Trazia nas mãos um atemorizante processo judicial, o primeiro que despacharia em minha carreira.
D. Edna pediu licença e deixou os autos na mesa, dizendo-me que estava com vistas ao Ministério Público. E saiu.
Logo vi que era um teste. “Como aquele promotor se sairia?”, pensara a escrivã marota.
Olhei, atônito, para aquela coisa ameaçadora em cima da mesa. Sem saber o que fazer, contei as páginas do processo. Era extremamente volumoso. Um calhamaço. Tinha 9 folhas. Parecia uma esfinge.
Aflito, busquei com o olhar a biblioteca da Promotoria. Nada achei. O armário estava vazio. Vasculhei as gavetas. Zero. Pensei em ligar para alguém mais experiente para me inteirar sobre o que deveria fazer. Não havia telefone na sala. Podia ter usado celular, mas em 1993 era algo que não existia em Utinga. Para piorar, meu pai já havia ido embora. Minha agonia aumentou quando li o despacho no processo:
“Vista ao Dr. Curador de Casamentos”.
Pensei comigo: – “Quem é este cara?”. Como bom baiano, sabia muito bem o que era um “curador”, esses benzedores que fazem rezas e simpatias e curam males do corpo e do espírito. Mas não me pareceu que “este” fosse o “curador de casamentos” chamado de doutor. Não tinha lógica. Demorei alguns minutos até perceber que o tal curador era eu mesmo, o promotor de registros públicos, que dá pareceres em casamentos. Aha!
Como eu ia saber? Nunca fora casado, meu Deus! E nunca vira uma habilitação de casamento na vida. Tampouco tivera obtido esse singelo esclarecimento nas aulas do professor José Abreu ou do rigoroso e ótimo mestre Marques Neto. Se tivesse estagiado num escritório de advocacia, talvez não merecesse perdão minha ignorância. Mas estagiei quase dois anos no setor jurídico do Banco do Nordeste do Brasil. Lá só fazia contencioso contra clientes inadimplentes. Cuidei de tantas execuções que quase virei um pistoleiro!
Depois de umas duas horas, D. Edna voltou à salinha do promotor. Queria saber se eu já despachara o processo. Seu ar de contentamento era evidente. Meio sem graça, disse-lhe que não terminara meu pronunciamento. Fingindo seriedade, afirmei que precisava estudar o caso com mais cuidado.
Saí do fórum ainda cedo e alojei-me no Hotel Farias. Eu ainda não sabia, mas aquele local, mais conhecido como Pensão da Dona Roxa, seria minha casa durante meses. Recolhi-me ao meu confortável quarto sem forro no teto e sem banheiro, e me vali da lampadinha fraquejante, de “30 velas”, para desvendar o insondável processo da minha estréia. No dia seguinte, depois de uma noite de “altos estudos” sobre direito de família e registros públicos, devolvi os autos de habilitação de casamento, com o pronunciamento mais difícil de toda a minha carreira: “Meritíssimo Juiz, Nada a opor.“. Era só isto. Datei e assinei.
Os noivos poderiam casar-se. Se o Código Civil dizia que estava tudo certo, não seria eu a dizer que não. Espero que os dois tenham sido felizes para sempre.
Quanto a mim, depois desse trauma, divorciei-me do direito civil e me apaixonei pelo direito penal.