Antes de nascer, o bebê foi direto para o cemitério. O ano de 2012 começou assim para uma família em São Paulo. A morte de uma mãe e de seu filho nascituro em mais um trágico acidente automobilístico comoveu o Brasil. De novo a equação álcool e direção.
Sempre que isto ocorre,
ouvem-se vozes. E a
mesma cantilena:
“Não se
pode obrigar o
motorista a
realizar o
teste do
bafômetro”.
Dizem que isto viola a
garantia contra a
auto-incriminação.
Já escrevi longamente sobre isto (“Lei
na contramão”, clique
aqui) e
não voltarei ao tema agora.
Não me privo, porém, de lamentar essas mortes e de, mais uma vez, apontar as deficiências estruturais de nossas Polícias. Neste caso, aparentemente a investigação começou com uma barbeiragem. No boletim de ocorrência, a Polícia constou que a mulher grávida conduzia um dos veículos acidentados. Depois, surgiu a versão de que o condutor era o seu marido.
Em razão desse erro, a Polícia não colheu elementos indiciários contra o esposo, agora viúvo, como, por exemplo, sua dosimetria alcoólica. Esse dado seria muito importante para o caso, já que o suposto causador do acidente, o motorista do Peugeot, alega que o carro das vítimas invadiu o sinal vermelho.
E agora? Quem causou o acidente? Caberá à perícia dizer. Imagens de circuito de vídeo, se existentes, ajudarão o delegado de Polícia a elucidar o fato. Embora não infalíveis, informes criminalísticos e laudos periciais são melhores testemunhas que as testemunhas de carne e osso. Além das falsas memórias que um depoente pode ter, as pessoas em geral estão sujeitas a dificuldades de captação da realidade (usam óculos, ouvem bem, estavam atentas, quais as condições de luminosidade, estavam sóbrias?), a dificuldades de compreensão do mundo e de fixação do que imaginam ter visto ou ouvido e, por fim, a dificuldades de enunciação dos dados da ocorência que mal ou bem processaram. O cérebro pode nos iludir. E esta ilusão ou má apreensão da realidade pode levar um inocente à cadeia ou um culpado para as ruas.
Vários casos policiais midiáticos têm revelado quão importante é a Polícia Científica, ainda tão mal cuidada no Brasil, especialmente nos Estados. Ficamos babando com os roteiros mirabolantes de CSI na TV e sonhando em ter algo parecido por aqui. Os casos da família Nardoni, do goleiro Bruno e do atacante Adriano são exemplos recentes, nos quais a perícia serviu para implicar o réu ou exonerar o suspeito.
Numa palestra que proferiu em 2010 na Universidade de Cambridge, o criminólogo Lawrence Sherman defendeu o acertado ponto de vista de que uma sociedade democrática mais segura depende da seguinte equação: “menos prisões” e “mais policiamento”. Com isto teríamos “menos crimes”. Se tivéssemos “mais tecnologia”, esse desiderato poderia ser alcançado ainda mais facilmente, numa linha prevencionista.
O caminho é longo. No Brasil, sequer se consegue preservar a cena do crime, providência essencial para o trabalho pericial, que está prevista há mais de 70 anos no art. 6º, inciso I, do CPP. A Polícia Militar, geralmente a primeira a chegar ao local do fato, deveria cuidar disto. Mas normalmente o que se vê é alteração drástica do cenário, com perda irremediável do material probatório. Populares transitam pelo local, repórteres revolvem as provas, policias pisam as evidências.
Só recentemente as Polícias brasileiras passaram a utilizar o AFIS – Automated Fingerprint Identification System, um software que registra, identifica e compara impressões digitais colhidas em cenas de crime e obtidas de investigados. Em casos em que atuei, o AFIS foi fundamental para determinar a autoria de crimes, cujos executores eram desconhecidos.
Entretanto, o uso de um sistema como o CODIS – Combined DNA Index System, para pesquisa de perfis genéticos de suspeitos ainda é uma realidade distante no Brasil. A prova genética é uma das mais confiáveis, embora falível (dia desses conto um causo). Para que algo semelhante ao CODIS funcione no Brasil, primeiramente é necessário criar a base de dados nacional, a partir da coleta de material genético de suspeitos e nas cenas de crimes. Em alguns países, todos os autores de infrações penais graves, especialmente as sexuais, são obrigados a fornecer material biológico para inserção no sistema, não se podendo invocar a garantia contra a auto-incriminação. É o que ocorre no Inglaterra e no País de Gales, com base na Criminal Justice and Public Order Act, de 1994. A base de dados do Reino Unido (United Kingdom National DNA Database) já reúne mais de 3 milhões de registros.
Há problemas? Sim, veja aqui. A adoção de registros genéticos deste tipo tem de ser restrita e devidamente controlada, em nome da privacidade dos cidadãos, a fim de que não se estabeleça uma sociedade de controle nos moldes da retratada em Gattaca (1997), cujas letras correspondem à sequência das substâncias guanina, adenina, timina e citosina, unidades de base do DNA.
Guanina: a serviço da lei
No Brasil, tramita no Congresso Nacional o PLS 93/2011, já aprovado no Senado. A ideia é permitir a coleta compulsória de material genético de condenados por crimes hediondos e delitos violentos contra a pessoa. Já é um começo.
Eis parte do texto proposto:
“Art. 9º-A. Os condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos no art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA (ácido desoxirribonucleico), por técnica adequada e indolor.
§ 1º A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo.
§ 2º A autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético.”
Para além do AFIS e do CODIS, a base de dados biométricos do FBI – Federal Bureau of Investigation está em expansão para a implantação de um sistema de identificação biométrica multimodal. O acervo de impressões digitais da agência americana de investigação criminal remonta a 1924. E sua base de dados genética começou a ser montada nos anos 1980. Agora a nova fronteira é incorporar ao sistema de buscas identificadores como rostos, tatuagens, íris, impressões palmares e vozes de suspeitos. Este sistema se chamará NGIS – Next Generation Identification System e revolucionará a investigação criminal.
O FBI já usa o VISAR – Video Image Stabilization and Registration. Desenvolvido por astrocientistas da NASA, este sistema registra e aperfeiçoa imagens capturadas em vídeo, permitindo a identificação de suspeitos, placas de veículos e outros elementos importantes para uma investigação criminal. Imagens de TV, câmeras de circuito fechado, celulares e vídeo-câmeras são refinadas e se tornam chave para a elucidação de crimes.
Neste campo tecnológico, o FBI sempre inova. Há alguns anos, o órgão passou adotar o modelo de Grid Computing Initiative para processar grandes quantidades de dados. Computadores em stand-by ou máquinas em horas mortas são capturados por una unidade central e formam uma rede de processadores capaz de lidar com terabytes de informação de interesse criminal, especialmente em casos de terrorismo.
Já o sistema ORION – Operational Response and Investigative Online Network é capaz de coletar informações ou pistas passadas aos inúmeros órgãos de persecução criminal dos Estados Unidos, por emails e chamadas telefônicas, processá-las e transformá-las em dados de inteligência prontamente utilizáveis em investigações de casos complexos, que exigem resposta imediata e coordenada.
Outra ferramenta de investigação baseada na tecnologia é o N-DEx – Enforcement National Data Exchange. Embora muito semelhante ao INFOSEG brasileiro, o N-DEx é mais completo, pois reúne informações sobre veículos e antecedentes criminais, dados sobre livramento condicional, entrada e saída de pessoas no sistema prisional, detalhes de crimes não elucidados, entre outros informes, que, vistos em conjunto, proporcionam efiência na identificação de autores de crimes.
Há ainda outros serviços que a tecnologia e a ciência prestam à persecução penal. Uma das muitas agências federais de investigação criminal, a ATF – Bureau of Alcohol, Firearms and Explosives desenvolveu o IBIS – Integrated Ballistic Identification System, que reúne em sistema informático dados sobre projéteis e cartuchos (cápsulas) recuperados em cenas de crime e informes de testes balísticos realizados em armas encontradas em locais de crime ou com suspeitos. Tais elementos servem para microcomparação pericial, possibilitando identificar atiradores ou as armas de fogo a eles vinculadas.
Veículos automotores envolvidos em crimes podem ser identificados por dois sistemas distintos. O PQD – Paint Data Query, mantido pela Real Polícia Montada do Canadá, e o NAPF – National Automotive Paint File, do FBI. Ambos contêm milhares de amostras de tinta automotiva que podem ser utilizadas para comparação computadorizada com veículos relacionados a um crime qualquer ou vestígios por eles deixados no local da infração, permitindo sua identificação pela marca, modelo e ano de fabricação, ou, ao menos, a redução do universo de suspeitos.
Uma das pistas mais tradicionais da criminalística são as pegadas. Rastros deixados na cena do crime podem levar ao autor do delito, ou, ao menos, indicar como se deu o acesso ao local da infração e/ou sua rota de fuga. Com softwares como o TreadMark e o SoleMate, é possível comparar pegadas encontradas nas cenas de crime com as de suspeitos sob investigação. As impressões dos solados no local do fato são obtidas por fotografia forense, uso de moldes de gel ou gesso ou por papel adesivo. Depois de processadas em computador, essas amostras são comparadas aos calçados do suspeito, usando como parâmetros tamanho, modelo, danos e modo de uso, este determinado pelo tipo de pisada da pessoa investigada (se pronador ou supinador ou neutro).
Outro software, o TreadMate, presta-se ao mesmo propósito, mas sua base de dados compara rastros de pneus deixados em cenas de crime, permitindo identificar o fabricante e o modelo, data de distribuição comercial e padrões do pneu cujas trihas foram recuperadas no local do fato.
Já o sistema FISH – Forensic Information System for Handwriting compara padrões de escrita, a partir de elementos grafoscópicos em arquivo e de amostras fornecidas por suspeitos. Quando similitudes são detectadas, começa o trabalho pericial que comprovará se o investigado é o autor do escrito incriminador.
Com finalidade semelhante, a International Ink Library, controlada pelo USSS – United States Secret Service e pelo IRS – Internal Revenue Service – respectivamente o Serviço Secreto e a Receita Federal dos Estados Unidos – reúne amostras de tinta utilizadas em canetas produzidas ou comercializadas naquele país. Tais amostras são destinadas a comparação química com as tintas utilizadas em documentos manuscritos relacionados a um crime.
Embora em menor grau, o Brasil já deu seus primeiros passos para aliar tecnologia ao combate ao crime. No caso Banestado, que mereceu pinceladas superficiais no polêmico “A Privataria Tucana”, foi fundamental o trabalho dos peritos do INC – Instituto Nacional de Criminalística, para a realização de laudos financeiros. A elucidação dos caminhos do dinheiro sujo foi facilitada graças a um software excepcional, o Analyst’s Notebook, capaz de processar e realizar cruzamentos de uma grande massa de dados relacionados a um crime.
No campo balístico, em 2011, a Polícia do Rio de Janeiro começou a implantar um sistema informático muito útil para a geolocalização de disparos de arma de fogo. Chama-se ShotSpotter. É capaz de, em alguns segundos, avisar automaticamente a uma central de controle sobre a realização de disparos em determinada área da cidade e apontar o local do tiroteio e a quantidade de tiros deflagrados, a partir da análise sonora do evento.
O Guardião, equipamento utilizado por várias unidades policiais brasileiras e também pelo Ministério Público, é outro bom exemplo da tecnologia a serviço da persecução criminal. Este programa facilita o trabalho de analistas policiais na interceptação de comunicações telefônicas, com base na Lei 9.296/96.
O SINIVEM – Sistema Integrado Nacional de Identificação de Veículos em Movimento baseia-se em um software de inteligência artificial empregado para rastreamento de veículos automotores furtados, roubados ou em fuga. Desenvolvido inicialmente para prevenir fraudes contra seguradoras, o SINIVEM foi incorporado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) e serve para identificação de veículos a partir de suas placas, mediante a leitura automatizada de caracteres, assim que os automóveis passam pelos postos de controle.
Outras ferramentas forenses extremamente úteis já estão em uso no Brasil para aperfeiçoamento da persecução criminal. É o caso do projeto Tentáculos, mediante o qual a Polícia Federal reúne e processa de forma centralizada informações sobre fraudes bancárias em todo o País, e do SIMBA – Sistema de Informações Bancárias, desenvolvido pelo MPF e aprovado pelo Banco Central e pelo CNJ, para a transmissão rápida, precisa e segura de dados resultantes de quebras de sigilo bancário.
Ainda no campo da criminalidade financeira, o Ministério da Justiçca desenvolveu, como resultado de uma ação da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro – Enccla, o Laboratório de Tecnologia contra a Lavagem de Dinheiro – Lab-LD, um conjunto de softwares para análise de dados bancários e fiscais e elaboração de laudos para inteligência criminal. O Lab-LD cria redes de relacionamentos, gráficos, diagramas e tabelas a partir da análise de contas telefônicas reversas, contas bancárias, dados fiscais da Receita Federal, relatórios de inteligência financeira – RIF do COAF, movimentações de cartão de crédito, etc.
Um dos mais novos personagens neste cenário nacional é o drone, entre nós conhecido como VANT – Veículo Aéreo Não-Tripulado. São aeronaves remotamente controladas, dotadas de câmeras de vídeo capazes de sobrevoar zonas suspeitas para colher dados operacionais ou filmar ações criminosas. Seu uso mais intenso ocorre nas nossas fronteiras pouco ou mal policiadas. No Brasil, são operados pelo Exército e pela Polícia Federal.
Alguns desses equipamentos parecem extraídos de obras de ficção científica. Há microfones direcionais ou parabólicos dotados de amplificadores sonoros, capazes de captar diálogos a distâncias de até 100 metros, e muitos outros equipamentos e programas de computador para uso forense. O Grande Irmão (o do livro 1984, de George Orwell) é real e é fruto da era tecnológica. Muitas dessas ferramentas que lhe servem são desenvolvidas por empresas privadas e não são usadas apenas pelo Estado, para a temida mass surveillance, numa sociedade cada vez mais controlada. Mas não vou cansá-los com uma lista ainda maior de aparatos. Esse rol serve para mostrar a importância da modernização das técnicas de investigação criminal e apontar os riscos da incorporação desordenada dessas ferramentas na práxis brasileira, à disposição de uma Polícia que historicamente comete abusos contra direitos fundamentais e rejeita o controle externo de sua própria atividade, em rota de colisão com a Constituição.
Uma Polícia com tantos “brinquedinhos” intrusivos pode almejar a plena independência funcional – como querem alguns delegados da Polícia Federal por meio da PEC 293/08? Pode dar-se o direito de ter o monopólio da investigação criminal – como se pretende por meio da PEC 37/2011? A resposta é não. Tal como o Ministério Público e o Judiciário, sujeitos ao CNMP e ao CNJ, a Polícia deve estar sob rígida fiscalização segundo a regra republicana de freios e contrapesos, submetendo-se especialmente à fiscalização da sociedade e ao controle externo do Ministério Público.
De todo modo, a Polícia do futuro será muito diferente da que temos hoje. Talvez não tenhamos cybercops. Mas seguramente precisamos de uma polícia mais científica e menos bacharelística, que não se limite a copiar as fórmulas e burocracias do processo judicial, que não dependa do vetusto e desgastado inquérito policial e que não expeça precatórias para ouvir pessoas (!).
Quando este dia chegar, haverá espaço para o talento de agentes, detetives e investigadores experimentados, alguns tão sagazes como Sir Holmes. Mas a ciência deverá ser uma auxiliar ainda mais perspicaz do que o mais competente Dr. Watson. Afinal, os tradicionais criminosos ”Tício” e “Lívio” já entraram na era da Internet. Não estamos mais no século XIX. Usar a tecnologia contra o crime já é uma ideia banal. Mas, infelizmente, no Brasil de verdade, a tecnologia que existe ainda é a da máquina de escrever e a do choque elétrico.