Por Vladimir Aras
“Favela com PCC tem menos crimes violentos”, diz a manchete do jornal, refletindo o resultado de um estudo feito por pesquisadores brasileiros em comunidades carentes de São Paulo.
“Favelas que são dominadas pelo PCC tiveram 12% a menos crimes violentos do que aquelas em que a facção não está presente”, segundo Ciro Biderman, João Manuel Pinho de Mello, Renato Sérgio de Lima e Alexandre Schneider, autores de Pax monopolista and crime: the case of the emergence of the Primeiro Comando da Capital in Sao Paulo, publicado em 2014.
Nas conclusões, os pesquisadores afirmam que:
A entrada do PCC em favelas do município de São Paulo gerou um monopólio dos crimes e levou a uma redução dos homicídios nessas comunidades e no seu entorno direto. A hipótese de atuação policial implicaria a redução tanto de crimes violentos quanto de crimes contra a propriedade. Por outro lado, a hipótese da competição teria impacto apenas na criminalidade violenta. Assim, o caso do PCC indica que a competição em mercados de drogas ilegais é criminógeno.
É uma pesquisa de resultado polêmico e que deve ser submetida a debate acadêmico. As controvérsias são inúmeras. Conclusões desta ordem podem ser usadas indevidamente por terceiros – não pelos autores – para “legitimar” ou “normalizar” os “tribunais do crime” ou para “justificar” o domínio de facções sobre favelas. Elas funcionariam “melhor” do que o Estado na contenção da violência, segundo o caminho tortuoso que alguém – não os pesquisadores – pode seguir a partir daí.
Um Estado paralelo que controla a segurança, que vive da violência e do crime, é capaz de reduzir essa mesma violência nas localidades que subjugou graças a fuzis e ameaças?
Se é verdadeira a conclusão da pesquisa, como o PCC e outras facções manteriam níveis mais baixos de violência nas zonas que controlam? Porque eliminaram a concorrência? Porque se valem de justiçamentos para aqueles que violarem suas “leis”? Porque coagem ou intimidam as populações locais? Ou porque lançam mão de corrupção? Tudo isso junto, poderia supor.
É provável que o medo imposto pelas organizações criminosas e os “tribunais do crime” que fazem funcionar sejam fatores relevantes. Os julgamentos são rápidos e não há critério de proporcionalidade. Talião ainda não chegou a esses “tribunais” clandestinos. Furtos e roubos podem resultar em penas corporais; estupros, em morte dos abusadores; fraudes no “movimento” também são punidas com a pena capital.
A percepção de que organizações criminosas têm visão empresarial e procuram estabilizar seus mercados não é nova nem definitiva para o diagnóstico das razões que levariam a menores índices de violência em suas áreas de atuação. Os entes que se encaixam no conceito da Convenção de Palermo sempre buscam vantagens econômicas ou de cunho material numa espécie de “capitalismo marginal”, que mira um lucro a ser lavado e (re)aproveitado pelo empreendimento ilícito e por seus líderes.
Mas a disputa por mercados não se faz de acordo com as regras da livre concorrência e não está sujeita a controle. Faz-se mediante investidas violentas, a tiros e mortes. E a suposta pacificação que se verifica após as incursões para tomada de territórios terá sido obtida a sangue, medo e propina.
É inegável que tais entidades criminosas se valem corriqueiramente da violência contra adversários, da intimidação dos moradores e da corrupção de autoridades para manterem a tranquilidade do fluxo de suas operações ilícitas, especialmente nos locais onde há armazenamento de armas e drogas ou pontos de venda a consumidores (usuários). Incursões policiais e a presença de outras autoridades do Estado são ruins para a logística empresarial e para os lucros. Consumidores de drogas preferem favelas tranquilas, onde se possa entrar e de onde se possa sair com menor risco.
Se há menos violência nessas áreas, é porque também pode haver mais corrupção, prática que resulta na cooptação de agentes públicos e neutraliza a capacidade de reação estatal. Faz-se ouvido de mercador ou abre-se apenas o olho cego.
Por outro lado, se não há mortes aqui ou ali muito provavelmente é porque a máquina de violência terá sido “transferida” para as áreas de expansão do negócio criminoso, onde conflitos com facções adversárias levarão a mais violência. É isto o que ora se vê no Paraguai, para onde o PCC se expande. Assistimos a uma disputa terroritorial a sangue, somada a ameaças lançadas contra autoridades daquele país. As operações transacionais do Comando Vermelho e do PCC na fronteira brasilo-paraguaia são o sintoma visível dessa progressão violenta. Neste contexto, a suposta paz nas favelas é uma quimera.
Facções assumem o poder nas favelas impondo sua “lei” e sua “ordem”. E só o fazem por meio de coação armada (um crime em si), da constante intimidação das pessoas que ali moram, das relações forçadas com as “escolhidas” e dos justiçamentos dos “desviantes”. Cria-se para os moradores uma falsa sensação de segurança, derivada do temor de reação desmedida e violenta. Uma “paz” armada e violenta. O terror que não se mede em números de cadáveres estendidos nas ruas.
“(…) o delegado Ruy Ferraz Fontes diz que não há base científica para concluir que o PCC ajudou a reduzir o número de homicídios. (…) Não consigo ver dados que permitam fazer essa afirmação de maneira tão incisiva. É muito difícil traduzir essas mortes numa equação”.
Difícil medir o descrescimo de violência a partir de estatísticas incompletas. Muitos crimes não são notificados. As cifras ocultas dentro das áreas sob jugo do tráfico são ainda mais gritantes do que o usual. E os cadáveres podem ser dispensados em áreas vizinhas, fora do território criminoso.
Não chamaria esse instável equilíbrio de “situação de menos violência”. A violência já terá sido cometida para a exclusão, a eliminação ou a sujeição de adversários e de policiais honestos. A violência é uma constante na vida dos moradores locais.
Ademais, insisto que a corrupção associada aos lucrativos negócios de tais entes mafiosos parece exercer grande influência para reduzir conflitos e “pacificar” certas zonas. A distribuição de benesses a moradores pelas facções também pode servir para a acomodação de interesses. Quando o colaboracionismo não se compra, é obtido a força.
Acordos do Estado com organizações criminosas também podem criar algum tipo de armistício em zonas dominadas pela delinquência organizada. Para facilitar a referência ao fim das “guerras” italianas contra a Cosa Nostra, cunhou-se a expressão “pax mafiosa”. No México, a trégua entre o governo e um dos dos poderosos cartéis do oeste, em Sinaloa, foi chamada de “pax narcotica”.
Neste texto de 2014, publicado pela Foreign Policy, o conceito já era discutido: mercados estáveis, controle territorial, menos violência. Uma “paz” ilusória. O problema só muda de freguesia.
“By the same token, improved security in a country does not necessarily mean defeat for criminal networks. It may simply be that a pax mafiosa has taken hold that includes stable markets and territorial control whitout the need for violence. Conversely, an upswing in violence may signal fragmentation of criminal groups or a reaction to perceived threats from the media, civil society, politicians, or law enforcement in their fight against organized crime”.
Às vezes esses armistícios entre Estado e máfias dão muito errado. O exemplo de novo vem da Itália. Entre 1992 e 1993, o governo e a Cosa Nostra fizeram um acordo para fazer cessar os atentados contra juízes, procuradores e outras representantes do Estado.
O pacto chamado “Estado-Máfia” (“Trattativa Stato-Mafia”) foi um grande acordo entre o governo italiano e os Corleonesi para interromper uma série de atentados que mataram várias autoridades locais, inclusive os procuradores da República italiana Giovanni Falcone e Paolo Borselino. O caso foi levado a julgamento e a sentença condenatória contra mafiosos e autoridades saiu em 2018, num julgamento realizado em Palermo.
Enfim, entre os escassos sucessos e enormes fracasssos da guerra contra as drogas, diversos fatores podem interferir na aparente redução de índices de violência associada ao narcotráfico (“pax narcotica”): desde os justiçamentos e a coação até a formalização de acordos entre o Estado e máfias, passando pela cooptação e pela corrupção de funcionários públicos. Ou tudo pode decorrer também de boas estratégias de policiamento que reduzam homicídios e outros crimes violentos.