Direito Internacional

A medida cautelar de retenção de passaporte

Tal medida, prevista expressamente no art. 320 do CPP desde 2011, serve para restringir os movimentos migratórios de pessoas sujeitas à jurisdição criminal brasileira, sejam elas nacionais ou estrangeiras, quando há fundadas razões para crer em sua fuga.

Por Vladimr Aras

Entre as medidas cautelares pessoais não prisionais, os juízes criminais podem determinar a retenção do passaporte do acusado — ou de outro documento de viagem —, como forma de assegurar a proibição de saída do País.

Tal medida, prevista expressamente no art. 320 do CPP desde 2011, serve para restringir os movimentos migratórios de pessoas sujeitas à jurisdição criminal brasileira, sejam elas nacionais ou estrangeiras, quando há fundadas razões para crer em sua fuga:

Art. 320. A proibição de ausentar-se do País será comunicada pelo juiz às autoridades encarregadas de fiscalizar as saídas do território nacional, intimando-se o indiciado ou acusado para entregar o passaporte, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas.

Referido dispositivo dialoga com o inciso IV do art. 319 do CPP, que regula a medida cautelar não prisional de proibição de saída do investigado ou réu da comarca em que vive quando sua permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou a instrução.

A retenção de passaporte com proibição de emigração ou de saída eventual do território nacional teria sido muito útil, por exemplo, para manter no Brasil os pilotos norte-americanos Joseph Lepore e Jan Paul Paladino, que, em setembro de 2006, quando sobrevoavam o Estado do Mato Grosso, derrubaram o Boeing que fazia o voo 1907 da Gol matando todos os seus 154 passageiros e tripulantes.

Havia risco de fuga e de não aplicação da lei penal brasileira. No entanto, contra todas as evidências, em 5 de dezembro de 2006, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), com sede na capital federal, determinou a devolução dos passaportes dos pilotos, que puderam voltar aos Estados Unidos. Este evento foi determinante para a frustração da persecução criminal. Apesar dos esforços do MPF de tentar fazer valer a sentença condenatória brasileira (vide a MC 22795/MT, 5ª Turma, rel. min. Laurita Vaz, j. em 07/08//2014), os dois nunca mais puseram os pés no Brasil para cumprir a pena a que foram condenados. Tudo começou com este julgado do TRF-1:

HABEAS CORPUS. PACIENTES ESTRANGEIROS. ENVOLVIMENTO EM ACIDENTE AÉREO. RECOLHIMENTO DOS PASSAPORTES. HIPÓTESE DE CRIME CULPOSO. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DA PRISÃO PROVISÓRIA. ACORDO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA ENTRE BRASIL E ESTADOS UNIDOS.

I – Em que pese a gravidade do acidente aéreo e a dimensão da tragédia, o art. 261, § 1º do CP exige o dolo, uma vez que o bem jurídico protegido é a incolumidade pública.

II – Tendo o Ministério Público e a autoridade policial admitido a possibilidade de crime culposo e o MM. Juiz Federal se eximido de decretar prisão em desfavor dos pacientes, a restrição à sua liberdade de locomoção não encontra amparo no CPP e, via de regra, no art. 6º do Decreto nº 72.383/73, que submete a detenção de eventuais infratores à previsão no ordenamento jurídico pátrio.

III – A condição de estrangeiros, por si só, não se justifica para a restrição à liberdade de locomoção, eis que a Constituição Federal não faz distinção entre brasileiros e estrangeiros. Ademais, não obstante a natureza do delito não permitir a custódia cautelar, foi demonstrado que possuem família e trabalho regular no seu país, estando há mais de 60 (sessenta) dias retidos sem que tenham prestado depoimento ou mesmo sido indiciados, a configurar constrangimento ilegal.

IV – Existência de acordo de assistência judiciária entre Brasil e Estados Unidos em matéria penal, a permitir apoio durante a tramitação do inquérito e eventual ação penal.

V – Ordem que se concede em parte para determinar a restituição dos passaportes dos pacientes no prazo de 72 (setenta e duas) horas. (TRF-1, 3ª Turma, HABEAS-CORPUS Nº 2006.01.00.043351-1/MT, Rel. Des. Cândido Ribeiro, j. 05/12/2006).

Recentemente o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou a devolução do passaporte de outro estrangeiro que estava retido em território nacional, por ter cometido crime de homicídio na jurisdição brasileira, na comarca de Vitória/ES. O diplomata espanhol Jesus Figón Leo recebeu de volta seu documento de viagem e pôde deixar o Brasil rumo a Madrid:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO SIMPLES. MEDIDA CAUTELAR PENAL DIVERSA DE PRISÃO. CRIME PRATICADO POR INTEGRANTE DA DIPLOMACIA ESPANHOLA. IMUNIDADE À JURISDIÇÃO EXECUTIVA. PROIBIÇÃO DE AUSENTAR-SE DO BRASIL SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. AUSÊNCIA DE ADEQUAÇÃO. ILEGALIDADE PRESENTE. RECURSO PROVIDO.
1. Embora permaneça a jurisdição brasileira competente para o processo de conhecimento do homicídio imputadamente praticado por agente diplomático da República Federativa da Espanha (sic), tendo esse país renunciado à imunidade de jurisdição cognitiva, mas reservando-se a imunidade de execução, não será o cumprimento de eventual pena da competência brasileira.

2. A cautelar fixada de proibição de ausentar-se do país sem autorização judicial não é adequada ao temor de fuga do acusado, com indicados riscos à instrução e à aplicação da lei penal.

3. Não há sequer menção de ter o paciente buscado destruir provas ou ameaçado testemunhas, e seu eventual intento de não comparecer a atos do processo é reserva de autodefesa a ele plenamente possível – sequer o júri restaria no caso impedido (nova redação do art. 475 CPP da Lei nº 11.689/08).

4. Tampouco é justificável a proteção por magistrado brasileiro à aplicação da lei penal se por reserva jurisdicional da execução é da Espanha a competência para o cumprimento de eventual pena criminal imposta.

5. Dado provimento ao recurso em habeas corpus para tornar sem efeito a cautelar fixada de proibição de ausentar-se do país sem autorização judicial, sem prejuízo de nova e fundamentada decisão de necessárias medidas cautelares penais. (STJ, 6ª Turma, RHC 87.825/ES, rel. min. Néfi Cordeiro, j. em 5/12/2017).

Noutro caso, julgado no final de 2017, envolvendo empresários sul-coreanos acusados de evasão de divisas e sonegação, o STJ assim decidiu no ponto que importa:

3. Apesar da retenção de seu documento, o paciente encontra-se em local incerto e não sabido. Ademais, os corréus, também da mesma nacionalidade, que tiveram a ordem concedida na origem determinando a devolução de seus passaportes, não foram mais encontrados, sendo citados por edital – circunstâncias que demonstram a inconveniência do deferimento do pleito, em contraste com a necessidade de se garantir a aplicação da lei penal. (…)
5. Não se vislumbra constrangimento ilegal na circunstância em que o magistrado, embora munido de elementos que autorizariam a decretação da prisão preventiva, lançou mão, de forma prudente, apenas à medida menos restritiva dos direitos do paciente, mas suficiente para garantir sua permanência no alcance da lei brasileira, ou seja, a retenção dos passaportes, assegurando, assim, as investigações.
6. Ordem não conhecida.
(STJ, 5ª Turma, HC 422.500/CE, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. em 05/12/2017).

Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal também tem aplicado a medida cautelar de retenção de passaporte, como se viu neste julgado de setembro de 2017, referente ao senador Aécio Neves:

DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. ACÃO CAUTELAR. AGRAVO REGIMENTAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. REJEIÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA. IMPOSIÇÃO DE MEDIDAS CAUTELARES ALTERNATIVAS. 1. Os indícios de materialidade e autoria dos delitos apontados na denúncia são substanciais. 2. Nada obstante, há dúvida razoável, na hipótese, acerca da presença dos requisitos do art. 53, § 2º da Constituição, para fins de decretação da prisão preventiva do agravado. 3. Diante disso, a Turma, por maioria, restabeleceu as medidas cautelares determinadas pelo relator originário, Min. Luiz Edson Fachin, consistentes em: (i) suspensão do exercício das funções parlamentares ou de qualquer outra função pública; (ii) proibição de contatar qualquer outro investigado ou réu no conjunto dos feitos em tela e (iii) proibição de se ausentar do País, devendo entregar seus passaportes. 4. Além disso, também por maioria, a Turma acrescentou a medida cautelar diversa de prisão, prevista no art. 319, V, do Código de Processo Penal, de recolhimento domiciliar no período noturno. 5. Agravo regimental parcialmente provido. (STF, 1ª Turma, AC 4327 AgR-terceiro-AgR, Relator Min. Marco Aurélio, Relator p/o acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 26/09/2017).

Diante da previsão legal, é legítima a retenção de passaportes ou de documento de viagem (como o laissez-passer) para impedir Fulano, Beltrano ou Sicrano — isto mesmo, não confunda com “ciclano” — de deixar o País, desde que haja razões concretas, devidamente demonstradas, para temer uma fuga.

A efetividade da decisão judicial de proibição de saída do território nacional

Segundo o art. 5º, inciso XV, da Constituição, é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, “podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens“. Restrições migratórias, portanto, sempre dependem de lei e do devido processo legal.

Quão eficiente é a medida cautelar do art. 320 do CPP?

Devido ao Acordo sobre Documentos de Viagem dos Estados Partes do MERCOSUL e Estados Associados (MERCOSUL/CMC/DEC Nº 18/08), ou Acordo de San Miguel de Tucumán, e a outros tratados regionais, qualquer cidadão brasileiro pode sair do País e entrar noutros Estados do bloco com a sua cédula de identidade (RG verde), sem passaporte. Neste contexto regional, é escassa a utilidade da medida cautelar prevista no art. 320 do CPP.

Ademais, pode-se ir do Brasil ao exterior por via fluvial ou terrestre sem documento algum, como bem sabem os brasileiros que vivem nas nossas fronteiras conurbadas, como são Ponta Porã e Pedro Juan Caballero (Paraguai), Santana do Livramento e Rivera (Uruguai) e inúmeras outras passagens fronteiriças do subcontinente.

Num país com mais de 15 mil quilômetros de fronteiras porosas, que divide com uma dezena de nações sul-americanas, não é difícil deixar o nosso território sem ser importunado. Paulo César Farias, Henrique Pizzolato, Roger Abdelmassih e Guilherme Longo não me deixam mentir. Fugiram por elas. Assim, considerando essas vastas e inóspitas áreas não fiscalizadas, apreender passaporte de um suspeito, de um réu ou de um sentenciado é quase igual a nada.

Porém, a ineficiência da medida de retenção de passaporte não significa que não se deva lançar mão desta providência, quando adequada e necessária, uma vez que sua imposição de algum modo torna menos fácil a fuga de quem pretenda fugir.

Asilo político

Se uma pessoa que é ou diz ser perseguida politicamente quiser furtar-se à jurisdição criminal do Brasil, não precisa sequer abandonar nosso território. Basta vir a Brasília e entrar na embaixada de um país sensível à sua causa e pedir asilo diplomático. Diferentemente do asilo territorial, no asilo diplomático o perseguido não precisa deixar seu país para entrar noutro e ali pleitear essa medida de proteção.

Dou dois exemplos muito conhecidos e recentes:

Exemplo 1: Julian Assange, dirigente do site Wikileaks, está desde junho de 2012 em asilo diplomático na embaixada equatoriana em Londres. Abrigou-se ali para evitar ser entregue à Justiça sueca, pois tem receio de ser reextraditado da Suécia para os Estados Unidos, onde enfrentaria gravíssimas acusações de espionagem e vazamento de dados relativos à segurança nacional norte-americana.
Exemplo 2: em 2012, alegando perseguição por parte do presidente Evo Morales, o senador boliviano Roger Pinto Molina pediu asilo na nossa embaixada em La Paz, onde ficou por mais de um ano até fugir para cá em 2013, via Corumbá, com a ajuda do diplomata brasileiro Eduardo Saboia. Para fazer isto, a dupla decerto baseou-se no art. 4º, inciso X, a Constituição, que estabelece que um dos princípios pelos quais a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais é a concessão de asilo político.
Essas duas situações revelam que, mesmo nas situações de suposta perseguição por motivos políticos ou de perseguição real, a retenção de passaportes pode ser absolutamente inócua, se o acusado realmente quiser fugir.

Vale lembrar que o Brasil é signatário da Convenção sobre Asilo Diplomático, concluída em Caracas em 28 de março de 1954 (Decreto 42.628/1957), tratado interamericano que estabelece não ser licito “conceder asilo a pessoas que, na ocasião em que o solicitem, tenham sido acusadas de delitos comuns, processadas ou condenadas por êsse motivo pelos tribunais ordinários competentes, sem haverem cumprido as penas respectivas; nem a desertores das fôrças de terra, mar e ar, salvo quando os fatos que motivarem o pedido de asilo seja qual fôr o caso, apresentem claramente caráter político“.

O asilo diplomático (não territorial) pode ser concedido em em legações (sedes da missão ou residência dos chefes da missão diplomática), navios militares e acampamentos ou aeronaves militares, a pessoas perseguidas por motivos políticos ou por delitos políticos.

Compete ao Estado asilante decidir sobre a natureza do delito ou dos motivos da perseguição, a partir das informações que lhe forem prestadas pelo Estado territorial, tendo em conta os direitos fundamentais da pessoa humana reconhecidos universalmente ou delimitados em tratados internacionais de direitos humanos.

Uma vez concedido o asilo, o Estado asilante pode pedir a saída do asilado para território estrangeiro, sendo o Estado territorial obrigado a conceder imediatamente as garantias necessárias no tocante à vida, liberdade e integridade pessoal do asilado, e o salvo-conduto para trânsito.

Requisitos da medida cautelar do art. 320 do CPP

Mesmo com todas essas vicissitudes, a medida cautelar de proibição de deixar o território nacional combinada com a retenção de passaporte só pode ser decretada pelo juiz competente, sempre a pedido do Ministério Público — ou da Polícia, para quem o admite. Cumpre ao juiz, em homenagem ao modelo acusatório e à sua deontologia, não adotar medidas ex officio em detrimento do acusado.

É certo também que medidas desta ordem só podem ser requeridas e aplicadas quando haja fundada razão para crer que o réu pode fugir. Deve haver um risco concreto ou ao menos plausível de fuga (flight risk), não sendo suficientes meras conjecturas, notadamente quando se tratar de cidadão com vínculos sólidos com o País.

O juiz que decreta esta ou qualquer outra cautelar pessoal ou real numa ação penal deve ter em conta a tutela de interesse ou utilidades deste mesmo processo penal, e não de outro em andamento numa jurisdição distinta, numa espécie de cautelaridade cruzada, o que é inadmissível.

Os parâmetros para a imposição desta e de outras medidas cautelares devem observar o binômio necessidade + adequação, respeitadas, como pré-requisito, as regras constitucionais e legais de atribuição e competência. Diz o art. 282 do CPP:

Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a:

I – necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais;

II – adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.

Impugnação de medidas cautelares não prisionais

As medidas cautelares pessoais dos arts. 319 e 320 do CPP podem ser impugnadas por meio de mandado de segurança ou, segundo entendo, por habeas corpus, porque implicam limitação ou restrição do direito de liberdade, no sentido da circulação, o que inclui as faculdades de ir, vir, ficar e sair do País, do Estado ou da comarca onde vive o sujeito processual.

No HC 147.426/AP, a 2ª Turma do STF admitiu o uso do haberas corpus para o ataque a decisão judicial que decretara medida cautelar do art. 319 do CPP contra o réu:

 

A Turma, por maioria, concedeu a ordem, para revogar a suspensão do exercício da função pública de Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Amapá e demais medidas cautelares pessoais impostas ao paciente pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça nos autos da Ação Penal 702/AP, nos termos do voto do Relator, no que foi acompanhado pelo Ministro Dias Toffoli, vencido quanto ao conhecimento e quanto ao mérito o Ministro Edson Fachin. Ausentes, justificadamente, os Ministros Celso de Mello e Ricardo Lewandowski (STF, 2ª Turma, HC 147.426/AP, j. em 18/12/2017).

 

O cabimento de habeas corpus também resulta do exame do §4º do art. 282 do CPP, segundo o qual o descumprimento de qualquer das obrigações cautelares impostas, o juiz pode substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva (art. 312, parágrafo único), restrição provisória mais drástica ao jus libertatis.

Coooperação internacional em matéria extradicional com base em reciprocidade

fato de o país xis ou ípsilon não ter tratado bilateral de extradição com o Brasil pode ser um argumento irrelevante para motivar cautelares pessoais no processo penal. Muitos países cooperam sem tratado, com base em promessa de reciprocidade, inclusive o nosso (art. 84, §2º, da Lei 13.445/2017). Cumpre, neste particular, evitar que as premissas adotadas para a restrição cautelar contra o investigado ou réu sejam motivadas por falácia do tipo non sequitur.

Várias nações podem cooperar por mera reciprocidade, inclusive em matéria extradicional. Todos devem lembrar do caso Hosmany Ramos, famoso cirurgião que foi condenado por uma série de crimes e que fugiu de São Paulo para a Islândia e de lá foi extraditado ao Brasil em 2010 mesmo não havendo tratado extradicional entre esses dois países.

O Brasil mantém tratados bilaterais de extradição com menos de 30 Estados soberanos (veja aqui), além de ter ratificado duas convenções multilaterais específicas do Mercosul e uma da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). A utilização da reciprocidade supre esse grande hiato geográfico, o que nos permite cooperar com inúmeros países do globo, salvo com aqueles que seguem o modelo “no extradition without treaty“.

Um bom exemplo é a Alemanha, país com o qual não temos tratado bilateral de extradição, mas com o qual as promessas de reciprocidade são usuais na relação bilateral, como se vê abaixo:

EXTRADIÇÃO FUNDADA EM PROMESSA DE RECIPROCIDADE. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. SONEGAÇÃO FISCAL. ATENDIMENTO DOS REQUISITOS FORMAIS. DUPLA TIPICIDADE E PUNIBILIDADADE. INEXISTÊNCIA DE PRESCRIÇÃO EM AMBOS OS ORDENAMENTOS JURÍDICOS. DEFERIMENTO. 1. A falta de tratado de extradição entre o Brasil e a República Federal da Alemanha não impede o atendimento da demanda, desde que o requisito da reciprocidade seja atendido mediante pedido formalmente transmitido por via diplomática. Precedentes. (…) 4. Extradição deferida. (STF, 2ª Turma, Ext 1363, Relator Min. Teori Zavascki, julgado em 10/03/2015).

A promessa de reciprocidade também foi o que permitiu ao STF deferir pedido de extradição passiva formulado pela República da Sérvia (STF, 1ª Turma, Ext 1208 , Rel. Min. Dias Toffoli, j. em 19/11/2013). Também foi assim na Ext 357, requerida pela República do Líbano (STF, Pleno, EXT 357, Rel. Min. Leitão de Abreu, j. em 14/12/1978).

No sentido inverso, do exterior ao Brasil (extradição ativa), um dos casos mais conhecidos de uso da reciprocidade é o do banqueiro Salvatore Cacciola, cuja extradição foi negada por um país com o qual tínhamos tratado (a Itália), mas concedida por outra nação com a qual tratado algum havia (Mônaco). O compromisso de reciprocidade foi suficiente para a entrega de Cacciola ao Brasil em 2008.

Convenções multilaterais como base supletiva em cooperação para extradição

Ainda que a reciprocidade não fosse suficiente para a cooperação extradicional brasileira, não custa lembrar que 183 países são partes da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC na sigla em inglês), concluída em Mérida em 2003 (Decreto 5.687/2006), cujo art. 44 dispõe sobre extradição entre os Estados signatários e admite no §5º o uso desse tratado como base supletiva para a extradição por crimes convencionais (isto é, os nela previstos):

Eis a péssima tradução brasileira: “5. Se um Estado Parte que submete a extradição à existência de um tratado recebe uma solicitação de extradição de outro Estado Parte com o qual não celebra nenhum tratado de extradição, poderá considerar a presente Convenção como a base jurídica da extradição a respeito dos delitos aos quais se aplicam o presente Artigo”.
Tradução da República Portuguesa, de qualidade superior: “5. Se um Estado Parte, que condicione a extradição à existência de um tratado, receber um pedido de extradição de um Estado Parte com o qual não celebrou nenhum tratado de extradição, poderá considerar a presente Convenção como fundamento jurídico da extradição quanto às infracções a que se aplique o presente artigo”.
Vale dizer. Nos casos de corrupção, lavagem de dinheiro e nos demais delitos convencionais, a falta de tratado entre os países que precisam cooperar em matéria criminal pode ser suprida pela Convenção de Mérida, cujo artigo 44 é esteio supletivo para a cooperação extradicional com os chamados treaty-needed countries (TNC), ou seja, os países que só cooperam caso exista tratado. Normalmente, os TNC são países de tradição common law, que se valem da regra “no extradition without treaty”, isto é, sem tratado não há extradição.

Portanto, a falta de tratado bilateral de extradição não é obstáculo à captura e obtenção da custódia de foragidos quando há promessa de reciprocidade (para os países que a admitem) ou quando existe base comum multilateral (para os Estados Partes).

Todos os 183 Estados Partes da United Nations Convention against Corruption (UNCAC), se este for o gênero de crimes cometidos pelo réu em questão, podem valer-se dela para extradições caso falte um tratado extradicional específico, como está claro em seu artigo 44, §5º.

Atualmente, somente Barbados, Chade, Coreia do Norte, Djibuti, Eritreia, Guiné Equatorial, Síria, Suriname não são partes dessa Convenção que é, não custa repetir, supletiva para extradição e também para mutual legal assistance (MLA), de modo que pode e deve ser usada subsidiariamente.

Outros tratados internacionais cumprem o mesmo papel no que diz respeito aos crimes neles previstos (“crimes convencionais”), como são exemplos a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (Convenção de Viena), concluída em 1988 e promulgada pelo Decreto 154/1991, e a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo), concluída em 2000 e promulgada no Brasil pelo Decreto 5.015/2004.

Conclusão

Em suma, quando se faz necessário capturar foragidos noutra jurisdição, há a possibilidade de extradição com ou sem tratado.

Não havendo tratado bilateral nem convenção multilateral específicos sobre matéria extradicional, os Estados em questão podem valer-se de promessa de reciprocidade.

Não sendo a promessa de reciprociade admitida pelo direito local, os Estados podem servir-se de convenções internacionais subsidiárias, usando, entre aquelas das quais sejam parte, a que se refira ao crime objeto do pedido de extradição.

As medidas cautelares pessoais só podem ser impostas pelo juiz competente, havendo necessidade e adequação, requisitos que devem ser demonstrados no caso concreto.

Tais medidas podem ser impugnadas por meio de habeas corpus.   

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