Por Vladimir Aras
Depois de 14 anos, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Procuradoria-Geral da República para que se conferisse interpretação conforme ao art. 51 do Código Penal, que tornou a pena de multa uma dívida de valor.
O debate foi retomado esta semana (12/dez/2018) na 12ª Questão de Ordem na Ação Penal 470, com a apresentação do voto vista do min. Edson Fachin, e na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3150, relatada pelo min. Marco Aurélio, que ficaram vencidos.
Por maioria, o STF decidiu que é preferencialmente do Ministério Público a atribuição para a execução da pena de multa resultante de condenação criminal.
O art. 51 do CP fora alterado pela Lei 9.268/1996 e então passou a ter a seguinte redação:
Art. 51 – Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será considerada dívida de valor, aplicando-se-lhes as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição.
A decisão do STF na ADI 3150 restabelece o status quo ante quanto à natureza da sanção. A pena de multa não é apenas uma dívida de valor. Guarda sua natureza penal e deve ser preferencialmente cobrada pelo Ministério Público perante a Vara de Execuções Penais (estaduais e federais).
A lei de 1996 não podia ter conferido natureza tributária a punição pecuniária aplicada em ação penal. Durante a vigência de tal entendimento, as penas de multas vinham sendo executadas apenas pela Procuradoria da Fazenda Nacional (PFN), nos termos da Portaria MF 75/2012, ou pelas procuradorias dos Estados, conforme a Resolução PGE 45/2011, do Estado de São Paulo, por exemplo.
A propósito, a Súmula 521 do STJ, aprovada em 2015, diz:
A legitimidade para a execução fiscal de multa pendente de pagamento imposta em sentença condenatória é exclusiva da Procuradoria da Fazenda Pública.
Pelo que se viu no julgamento do agravo regimental na progressão de regime n. execução penal n. 12, no STF, de 2015, já se podia antever o resultado da ADI 3150. Ao cuidar do art. 51 do CP, disse o STF:
“9. A referida modificação legislativa não retirou da multa o seu caráter de pena, de sanção criminal. Em rigor, sequer poderia cogitar em fazê-lo, uma vez que o art. 5o, XLVI, da Constituição, ao cuidar da individualização da pena, faz menção expressa à multa, ao lado da privação da liberdade e de outras modalidades de sanção penal. Coerentemente, o art. 32 do Código Penal, ao contemplar as espécies de pena, listou expressamente a multa (art. 32, III).
10. Como tenho sustentado em diversas manifestações, o sistema punitivo no Brasil encontra-se desarrumado. E cabe ao Supremo Tribunal Federal, nos limites de sua competência, contribuir para sua rearrumação. Nas circunstâncias brasileiras, o direito penal deve ser moderado, mas sério. Moderado significa evitar a expansão desmedida do seu alcance, seja pelo excesso de tipificações, seja pela exacerbação desproporcional de penas. Sério significa que sua aplicação deve ser efetiva, de modo a desempenhar o papel dissuasório da criminalidade, que é da sua essência.
11. Em matéria de criminalidade econômica, a pena de multa há de desempenhar papel proeminente. Mais até do que a pena de prisão – que, nas condições atuais, é relativamente breve e não é capaz de promover a ressocialização –, cabe à multa o papel retributivo e preventivo geral da pena, desestimulando, no próprio infrator ou em infratores potenciais, a conduta estigmatizada pela legislação penal. Por essa razão, sustentei no julgamento da Ação Penal 470 que a multa deveria ser fixada com seriedade, em parâmetros razoáveis, e que seu pagamento fosse efetivamente exigido.
12. À vista das premissas acima estabelecidas, chego às seguintes conclusões parciais: (i) a pena de multa não perdeu o seu caráter de sanção penal; (ii) em matéria de criminalidade econômica, a pena de multa desempenha um papel proeminente de prevenção específica, prevenção geral e retribuição; e (iii) como consequência, a multa deve ser fixada com seriedade, proporcionalidade e, sobretudo, deve ser efetivamente paga.” (STF, Pleno, EP 12 PROGREG-AGR / DF, rel. Luiz Roberto Barroso, j. em 08/04/2015).
É curioso que se tenha tentado desnaturar a pena criminal de multa. A doutrina, com justas razões, tem defendido há muitos anos a adoção de penas alternativas à privação de liberdade, em harmonia com as Regras de Tóquio. A pena de multa é uma das espécies punitivas que se apresenta como substitutiva.
Ademais, na seara da política criminal, não faz sentido privar o Ministério Público de um instrumento sancionatório relevante para a tutela da Administração Pública, diante da necessidade de responsabilização econômica de autores de crimes contra o erário e de delitos de colarinho branco.
É bom lembrar que os valores recolhidos como multa penal são destinados ao Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN), com base art. 2º, inciso V, da Lei Complementar 79/1994:
Art. 2º. Constituirão recursos do Funpen:
V – multas decorrentes de sentenças penais condenatórias com trânsito em julgado;
Leis Estaduais semelhantes também estabelecem destinação específica para penas de multas criminais aplicadas em ações penais de competência estadual. Cito, por exemplo, o art. 2º, inciso VI, da Lei 9.195/1995, que criou o Fundo Penitenciário do Estado de São Paulo.
Diante da nova posição do STF, cabe assim ao titular da ação penal promover o cumprimento perante o juízo competente (o da execução penal) de todas as sanções penais resultantes de uma condenação criminal transitada em julgado, inclusive a multa, o que pode ocorrer após o duplo grau de jurisdição.
Conforme o art. 164 da Lei 7.210/1984 (Lei de Execução Penal), uma vez “extraída a certidão da sentença condenatória com trânsito em julgado, que valerá como título executivo judicial, o Ministério Público requererá, em autos apartados, a citação do condenado para, no prazo de 10 (dez) dias, pagar o valor da multa ou nomear bens à penhora.”
Caso o Ministério Público (os órgãos estaduais e os ramos penais do MPU) não executem a pena em 90 dias, a Procuradoria da Fazenda Nacional (PFN) ou a Procuradoria do Estado poderá agir em substituição ao Parquet, na Vara de Execução Fiscal federal ou na Vara da Fazenda Pública, com base na Lei da Dívida Ativa (Lei 6.830/1980). Trata-se, portanto, de caso de legitimidade sucessiva, prejudicando-se em parte a Súmula 521 do STJ.
Como a decisão do STF tem natureza processual, entendo que a aplicação do novo entendimento deve ser imediata, colhendo execuções em curso, salvo se a Suprema Corte tiver estabelecido efeitos ex nunc, o que só a publicação do acórdão poderá esclarecer com exatidão.
Como quer que seja, é importante doravante que o Ministério Público brasileiro especialize unidades para tratamento desses casos, com os recursos materiais e humanos necessários, e mantenha adequados registros estatísticos do montante de multas criminais aplicadas em todo o País e dos valores cobrados e efetivamente pagos pelos sentenciados. Convém também que os Ministérios Públicos estabeleçam diretrizes internas sobre o patamar mínimo para a execução dessas multas penais.