Artigo

A cooperação jurídica internacional com os Estados Unidos

A cooperação policial ou ministerial direta, para fins de inteligência (a chamada pre-MLA), é também muito importante.

Por Vladimir Aras

Como os Estados Unidos têm a maior praça financeira mundial, lá atuam diversas organizações criminosas especializadas em lavagem de ativos. É natural assim que um grande numero de casos brasileiros de lavagem transnacional de ativos reclame uma ação coordenada de órgãos de investigação nacionais e euamericanos.

São duas as formas de obtenção de documentos nos Estados Unidos para a utilização em ações penais brasileiras: a assistência por meio do MLAT ou Mutual Legal Assistance Treaty (Tratado de Assistência Jurídica Mútua em Matéria Penal), de 2001; e a cooperação direta seguida de legalização consular (consularização). A cooperação policial ou ministerial direta, para fins de inteligência (a chamada pre-MLA), é também muito importante.

As relações entre os dois países regem-se, na forma do art. 1º, inciso I, do CPP, pelo acordo bilateral em matéria penal entre o Brasil e os Estados Unidos, que foi celebrado em 14 de outubro de 1997, e tornado vigente pelo Decreto n. 3.810, de 2 de maio de 2001.

O tratado abriga disposições bem detalhadas no que diz respeito à cooperação jurídica penal: regula a obtenção de várias espécies de prova, incluindo a documental e a testemunhal, e contém previsões sobre medidas cautelares de busca e apreensão, bloqueio e perdimento de bens.

A existência de um tratado específico entre os dois países supera o primeiro obstáculo que pode ser oposto à cooperação internacional. Obviamente, vários países admitem pedidos de assistência judiciária baseados na promessa de reciprocidade. No entanto, este tradicional mecanismo do direito internacional público não é suficientemente célere para atender as exigências da cooperação internacional em matéria de indisponibilidade de capitais.

Além disso, como instrumento político, a reciprocidade pode não ser factível em todos os casos. Daí porque é imprescindível a existência de um tratado bilateral que preveja as hipóteses de cooperação e autorize expressamente o congelamento de ativos para fins de perdimento.

No âmbito do MLAT, os pedidos podem ser formulados pelo Poder Judiciário, pelo Ministério Público e pelas Polícias, sempre com a finalidade de obtenção de provas para investigações ou processos penais. A tramitação dá-se por intermédio das autoridades centrais designadas pelos Estados-partes.

No caso do Brasil, é o Ministério da Justiça, representado pelo DRCI. Para os Estados Unidos, a autoridade central é a Procuradoria-Geral (United States Attorney General), representada pelo Office of International Affairs (OIA), órgão do United States Department of Justice. Para terem validade no Brasil, as provas criminais obtidas nos EUA devem atender aos requisitos do tratado e obedecer às limitações, formalidades e restrições à assistência nele apontadas.

O pedido deve ser encaminhado pela autoridade investigante ou processante ao DRCI, em Brasília, que fará a tramitação junto ao OIA, em Washington. Cumpridos os pressupostos formais, o pedido será distribuído à autoridade competente para o cumprimento da assistência nos EUA. Em regra, esta autoridade é um procurador norte-americano (Assistant US Attorney), que deverá dirigir-se ao juízo competente (US District Court) requerendo sua nomeação como comissário (commissioner) para a execução da assistência solicitada pelo Estado estrangeiro.

De acordo com o artigo 1782, do título 28 do US Code, o comissário poderá ser autorizado a colher depoimentos ou expedir notificações (comissioner’s subpoena) para a exibição de documentos e a iniciar todas as providências necessárias ao cumprimento da solicitação. Este mesmo dispositivo autoriza, na execução do rogado, a adoção, no todo ou em parte, do procedimento criminal do Estado requerente.

Na execução das diligências solicitadas, que têm curso em sigilo (under seal), o comissário poderá autorizar a participação de autoridades brasileiras. A subpoena será endereçada à pessoa física ou jurídica que detém a guarda dos documentos solicitados pelo Estado estrangeiro.

Entre outras exceções, o direito ao sigilo bancário previsto no Right to Financial Privacy Act (RFPA) não se aplica aos dados necessários à instrução de uma investigação estrangeira. Além disso, as instituições financeiras que mantêm tais registros são notificadas a manter o sigilo das notificações expedidas pelo comissário.

Colhida a prova nos Estados Unidos, o procurador encarregado enviará os autos ao OIA. Os documentos retornarão ao Brasil pela mesma via administrativa, sendo chancelados pelo DRCI e encaminhados à autoridade requerente, quando então poderão ser utilizados na investigação criminal ou na ação penal para a qual foram solicitados.

É de se reafirmar que, conforme o princípio da especialidade, os documentos solicitados para um determinado caso criminal não podem ser utilizados em outras investigações, ainda que correlatas ou conexas, sem a autorização formal da autoridade central do Estado requerido.

Este tipo de restrição é corriqueira em tratados de cooperação internacional e se destina assegurar o cumprimento de restrições previstas na legislação doméstica ou no próprio acordo internacional, como é o caso, por exemplo, da proibição de assistência em relação a delito exclusivamente militar, constante do artigo 3º do MLAT.

O tema foi preocupação da meta 40 da ENCLA 2005, quando se recomendou “Difundir informações sobre a necessidade de se observar os limites para a utilização de documentos obtidos por meio de cooperação jurídica internacional”.

Problema adicional está na utilização de tais documentos estrangeiros, de índole penal, como prova emprestada em ações civis de improbidade administrativa, reguladas na Lei n. 8.429/92. Como se sabe, trata-se de um diploma de índole civil, também com sanções de natureza cível. Como assegurar a utilização da prova criminal obtida nos EUA em ações de responsabilização por atos de improbidade? A resposta é simples e está no parágrafo 1º do artigo 1º do MLAT, que estende o alcance da assistência aos “processos relacionados a delitos de natureza criminal”.

O artigo 7º, §4º, do MLAT Brasil/EUA também prevê que “as informações ou provas que tenham sido tornadas públicas no Estado requerente, nos termos do parágrafo 1 ou 2, podem, daí por diante, ser usadas para qualquer fim”. Os parágrafos em questão dizem respeito ao princípio da especialidade e ao dever de confidencialidade, de modo que, se houver autorização ou se não houver oposição do Estado requerido, as provas criminais transmitidas poderão ser emprestadas para investigações ou procedimentos cíveis no Brasil.

É comum ocorrerem investigações simultâneas, no campo civil e no campo criminal, em relação aos mesmos fatos. Exemplo marcante é o caso de um ex-prefeito de São Paulo, em que correm paralelamente ações penal e de improbidade administrativa, em relação aos mesmos fatos.

Numa hipótese como esta, a prova criminal obtida nos EUA por meio do MLAT pode ser validamente utilizada na ação de improbidade, na forma do citado artigo 1º Acordo. Mesmo que assim não fosse, bastaria permissão formal da autoridade central norte-americana, para a validação da prova por empréstimo, conforme o artigo 7º do MLAT.

No que diz respeito à quebra de sigilo bancário no exterior, algumas observações adicionais devem ser feitas. Tais cautelas aplicam-se a situações de cooperação com qualquer país:

1. é conveniente que haja decisão de quebra de sigilo bancário no Brasil e que se obtenha decisão equivalente no exterior;

2. deve-se utilizar o sistema SisbaJud, que permite ao magistrado bloquear imediatamente valores depositados no Brasil em nome do investigado, evitando que sejam ocultados ou mesmo evadidos;

3. o pedido de assistência deve ser devidamente formalizado, com a correta individualização da informação buscada;

4. os dados solicitados devem ser delimitados, com indicação da forma de sua apresentação, não olvidando que cartas, faxes e emails trocados entre o cliente e a instituição financeira, assim como relatórios de compliance e de atividades suspeitas podem ser muito úteis para a persecução criminal;

5. deve-se solicitar autorização para compartilhamento da prova com outros órgãos públicos, como a Receita Federal, a AGU e outros Ministérios Públicos, por exemplo.

Os dados obtidos mediante a quebra de sigilo bancário deverão ser analisados por peritos contadores, a fim de permitir a identificação dos principais fluxos financeiros e a descoberta de dados úteis à investigação, como outras contas em nome dos suspeitos.

Daí a importância da indicação da forma de apresentação dos documentos bancários, que deve ser preferencialmente a eletrônica, em formato texto, a fim de facilitar a perícia. Aliás, os peritos serão fundamentais para decifrar os códigos bancários contidos nas planilhas das contas cujo sigilo foi afastado.

É o caso dos códigos SWIFT e CHIPS, que são sistemas de mensagens bancárias internacionais que permitem o posterior rastreamento das remessas. O SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunications) reúne, desde 1974, instituições de mais de duzentos países e transfere mensagens sobre transações financeiras entre os bancos participantes. Já o CHIPS (Clearing House Interbank Payments System), data de 1970 e é também um sistema de transferência de fundos, funcionando como câmara de compensação.

Após o rastreamento dos valores, se houver sucesso na localização de contas finais, pode-se lançar mão de um pedido internacional de bloqueio de ativos. Esta providência demandará a preparação de um pedido de assistência dirigido às autoridades competentes do país onde está a instituição que abriga os valores perseguidos.

Importa que os crimes sejam cumpridamente descritos, tanto em seus elementos típicos quanto em sua interferência naturalística. Vale dizer, a autoridade solicitante deverá descrever as condutas típicas e fazer um relato minucioso dos fatos sob investigação, com análise detalhada da prova colhida, num sumário analítico, a fim de permitir ao Estado requerido verificar de que modo aqueles fatos conformam-se à sua própria legislação penal e aquilatar que efeitos processuais deles se pode extrair.

Obviamente, é imprescindível relacionar tais fatos ao agente criminoso e demonstrar o nexo de causalidade entre a conduta humana e o resultado antijurídico objeto da persecução. É preciso ter em mente que em geral o pedido firmado no Brasil será submetido a uma autoridade judiciária, que irá determinar, inclusive mediante a análise da justa causa (probable cause), se tais fatos são suficientes para o deferimento da assistência pretendida.

Não se pode olvidar também que a defesa do investigado poderá questionar, perante o tribunal norte-americano, os procedimentos adotados na cooperação, assim como apresentar petições (motions) para obstá-la.

No caso dos Estados Unidos, os delitos que ensejaram o pedido de bloqueio (restraint order)devem ser daqueles que autorizam o perdimento (forfeiture), segundo a lei estadunidense (18 USC 982). Este é o caso do narcotráfico, por exemplo, como delito precedente à lavagem de capitais.

Todavia, não será possível obter assistência para fins de perdimento quando se trate do crime brasileiro de sonegação fiscal (tax evasion), porque para este delito não está prevista a forfeiture nos Estados Unidos.

Embora questionável, à luz do MLAT, a razão desta restrição é simples. Nos Estados Unidos, para o perdimento é necessário atender ao requisito da dupla tipicidade. O fato tem de ser previsto como crime na legislação penal do Estado requerente e do Estado requerido. Para as demais formas de cooperação tal requisito não é necessário, conforme se lê no artigo 1º, §3º, do MLAT, a “assistência será prestada ainda que o fato sujeito a investigação, inquérito ou ação penal não seja punível na legislação de ambos os Estados”.

No que se refere ao crime de evasão de divisas, tem-se como certo que se trata de fato atípico de acordo com a lei norte-americana. Não existe o crime de capital flight nos Estados Unidos.

No entanto, nos casos de ofensa ao artigo 22 da Lei n. 7.492/86, é possível obter a cooperação daquele país se for possível demonstrar violação ao artigo 1960 do título 18 do US Code, que tipifica o crime de remessa de valores sem licença (prohibition of unlicensed money transmitting businesses).

“§1960. a) Whoever knowingly conducts, controls, manages, supervises, directs, or owns all or part of an unlicensed money transmitting business, shall be fined in accordance with this title or imprisoned not more than 5 years, or both”.

Para configurar o crime federal em tela, o termo “money transmitting business” deve dizer respeito a atividades interestaduais ou transnacionais de qualquer espécie que sejam realizadas:

1. sem licença estadual, em um Estado ou território norte-americano em que esta atividade clandestina seja considerada crime (felony) ou contravenção (misdemeanor), mesmo que o agente não conheça estas circunstâncias;

2. sem que o agente atenda aos requisitos para registro previstos no artigo 5330 do título 31 do US Code; ou

3. mediante o transporte ou transmissão de recursos que o agente sabe ter origem criminosa, ou que se destinem a promover ou subsidiar uma atividade ilícita.

De acordo com o mesmo artigo (18 USC 1960), a expressão “money transmitting” engloba transferências de fundos em favor dos clientes da empresa por qualquer meio, inclusive transferências bancárias domésticas ou transnacionais por via eletrônica (wire transfers), cheques, fac-similes ou courrier.

Evidentemente, tais “empresas” clandestinas de remessas de valores em muito se assemelham a certas casas de câmbio brasileiras. Estas, quando operadas por doleiros no sistema denominado hawala, podem ser alvo de investigações bilaterais no Brasil e nos Estados Unidos.

Daí porque nestes casos não há dificuldades para a obtenção da assistência judiciária e para o bloqueio de valores pertencentes a estes agentes do mercado paralelo de remessa de capitais.

Deve-se perceber, contudo, que os clientes dos doleiros não estão na mesma situação destes. Se um indivíduo usa os serviços clandestinos da casa de câmbio para a remessa de valores aos Estados Unidos não estará, somente por esta conduta, sujeito a bloqueio de bens naquele país, porque nesta situação, em regra, ter-se-á apenas o crime (brasileiro) de evasão de divisas.

O artigo 1956 (b) (3), do Título 18 do US Code confere aos juizes norte-americanos o poder de expedir ordens de bloqueio, ainda na fase investigatória, em casos de lavagem de dinheiro por meio de serviços clandestinos de remessas de valores. De fato, “a court described in paragraph (2) may issue a pretrial restraining order or take any other action necessary to ensure that any bank account or other property held by the defendant in the United States is available to satisfy a judgment under this section.”

Há dois caminhos a seguir para a obtenção de ordens de congelamento provisório de bens (ex parte restraint order), que precedem ao perdimento penal (criminal forfeiture):

1. o primeiro caminho, mais fácil, busca conferir eficácia a uma decisão judicial de bloqueio emitida por um juiz brasileiro. Neste caso, segue-se o procedimento previsto no MLAT e busca-se posteriormente o perdimento;

2. o segundo, mais difícil, tem em mira obter diretamente uma decisão judicial norte-americana de indisponibilidade, baseada numa declaração juramentada (affidavit) firmada por uma autoridade brasileira.

Uma última via pode ser tentada, a critério da autoridade norte-americana: a ação real de extinção de domínio (forfeiture action against the property), também chamada de civil forfeiture ou perdimento civil, previsto no artigo 981 do título 18 do US Code.

Trata-se de uma ação civil in rem, de natureza objetiva, que é proposta contra a coisa objeto do perdimento. Esta ação, mais trabalhosa que os procedimentos criminais acima descritos, só pode ser utilizada contra bens que comprovadamente são produto ou proveito de um crime anterior, sendo cabível, por exemplo, nas hipóteses de ofensa aos artigos 1956, 1957 e 1960 do título 18 do US Code.

O perdimento nos casos de lavagem de capitais (18 USC 1956-57) é substancialmente mais difícil do que nos demais crimes financeiros, porque é imprescindível apontar indícios do crime antecedente e demonstrar que os bens que se pretende tornar indisponíveis procedem daquele delito. Naturalmente, os crimes tributários não podem ser considerados como antecedente para esta finalidade. 

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