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Quem caminha pela Praça do Nordestino, em Feira de Santana, antigamente conhecida como Campo da Gameleira, pode não saber que Lucas Evangelista, o Lucas da Feira, foi condenado ao enforcamento diante de muitos olhos há exatos 170 anos e um dia. Mas, nesta quarta-feira, 25 de setembro de 2019, este personagem importante da história da Princesa do Sertão foi absolvido por quatro votos contra dois no Júri Simulado realizado pela Defensoria Pública do Estado da Bahia – DPE/BA. O evento aconteceu no Teatro do Centro Universitário de Cultura e Arte (Cuca/Uefs).
“Tentando não propriamente fazer uma reconciliação com o passado, eis que irreconciliável, mas uma releitura do direito na história – na história passada, presente e pensando em uma futura – é que os jurados hoje, por maioria de votos, decidem absolver Lucas da Feira de todas as acusações que lhe são imputadas”, disse defensora pública Elisa da Silva Alves, representando a juíza do Tribunal da Comarca de Feira de Santana.
O objetivo do julgamento foi lançar um olhar sobre a história do personagem e contrapor, à narrativa de um bandido, a humanidade de Lucas da Feira garantindo a ele o direito ao contraditório e à ampla defesa. A decisão pela absolvição certamente iria de encontro ao desejo de autoridades locais, por colocar o personagem como “autor da própria história”, como alguém que criou relações com pobres e escravizados, mas também com poderosos, como estratégia de sobrevivência.
A sentença não foi limitada a uma releitura do passado. Ao invés, refletiu sobre os fatos atuais da realidade brasileira que, mesmo após a abolição, ainda guardam marcas da escravidão até os dias de hoje.
“Corpos e mentes negras são, ainda hoje, continuamente vigiados, marcados pela polícia, pelo poder punitivo do Estado, e segregados dos espaços identitários. São os jovens assassinados a 80 tiros, amarrados e arrastados pelos carros, as crianças revistadas, as pequenas Ágathas, os terreiros incendiados e as mulheres arrancadas de seus filhos por sentenças condenatórias predestinadas – isto quando não são violentadas”, complementou a juíza durante o pronunciamento.
“Eu juro que vou sobreviver e vou viver. Ter a vida só não basta”
Foram sete pessoas sorteadas entre o público presente para decidirem o futuro do réu. Para contextualizá-los sobre a história de Lucas da Feira, o Júri Simulado fez uso de flashbacks com o objetivo de lançar luz sobre a trajetória anterior ao julgamento e à condenação. Diferentemente do que aconteceu há 170 anos, o acusado se pronunciou e apresentou a própria versão aos seus julgadores.
“Eu juro que vou sobreviver e vou viver. Ter a vida só não basta. Por muitos, sou temido. Por outros, seguido. Não sou um homem totalmente bom, mas não sou ruim como dizem. Fiz o que fiz porque precisava sobreviver. Nunca mexi com ninguém quando não precisava”, desabafou. O réu também ressaltou que não se tratavam de verdades o que diziam a seu respeito. “Eu sou o povo, açoitado, escravizado na lavoura, na senzala. Nunca ofendi povo nenhum, só algumas pessoas. Só aquelas que atraiçoavam, que perseguiam de alguma forma”.
A acusação e a defesa apresentaram os respectivos argumentos. “Todos os dias vemos bandidos perigosos, como Lucas, andando livremente pelo país e aterrorizando a vida de pessoas decentes. A corrupção e a impunidade andam lado a lado e a gente precisa mostrar em cada julgamento que a lei existe e será cumprida, quer queira, quer não, custe o que custar”, destacou a acusação, cujo papel foi exercido pela defensora pública Júlia Almeida Baranski.
Por sua vez, a defesa representada pela defensora pública Fernanda Nunes Morais da Silva apresentou em seus argumentos que o julgamento é uma forma de refletir sobre o modo como foi construída ao longo do tempo a sociedade feirense. “A história de Feira grita nesta tarde. Ela está ansiando, de maneira sofrida, para ser revivida. Então, eu chamo a atenção dos senhores. Mais do que julgar Lucas, os senhores vão jugar a própria história. Por que nós, feirenses, temos medo da nossa própria história? Quantos dos senhores ficaram sabendo, nos detalhes, sobretudo o contexto no qual o Lucas viveu?”, questionou.
A contabilização dos votos revelou que quatro votos, entre sete, optaram pela absolvição, dois desejavam a condenação. O último voto não foi revelado, para manter a integridade dos participantes do júri, uma vez que a maioria já havia sido alcançada.
Júri Simulado
Encerrado o julgamento e absolvido o réu, o defensor público geral, Rafson Saraiva Ximenes, comentou o sucesso do projeto Júri Simulado – Releitura do Direito na História, que está na 7ª edição. “Não se promove educação e os direitos se a gente não encontrar formas de dialogar com a população. Esse projeto tem como grande qualidade o fato de permitir discussões profundas, longas e de forma lúdica”, pontuou. Na ocasião, lembrou ainda que o objetivo é expandir a iniciativa para outras cidades do estado, pois “o que não falta na história do Brasil são personalidades para serem lembradas”.
Na pele do principal nome da noite, o ator Jailton Nascimento contou como foi dar vida ao personagem Lucas da Feira. “A gente sabe que a história é contada pelos vencedores, na maioria das vezes, e precisamos dar vez e voz aos vencidos, especialmente porque estes foram pessoas negras escravizadas. Ele teve a oportunidade de resistir nesse momento, de dizer que não queria ser escravo. Teve voz e a Defensoria deu o direito a uma defesa técnica para ele, coisa que não obteve na época”, contou.
Bate-papo com o público
O evento incluiu ainda um bate-papo com o público, sobre o personagem da 7ª edição do Júri Simulado e também sore o contexto histórico da época, mediado pela defensora pública Manuela de Santana Passos. Participaram a mestre em História Regional e Local, Eliane de Jesus Costa; o professor Augusto Monte Spínola Júnior; e com o historiador, ator e diretor de teatro, Fernando Souza, autor do espetáculo Lucas da Feira: o sujeito antes do mito.
“Traz uma esperança que a luta antirracista não é só da população negra. É uma luta da sociedade brasileira, uma postura de quem entende que a questão racial não entra como recorte, é uma questão principal da nossa história”, afirmou Eliane de Jesus Costa. A mestre em História destacou ainda o significado de Lucas da Feira para a luta negra na Bahia, uma vez que houve relatos de muitos homens como o personagem no estado, na época.