Rachel Pinto
‘Venha se você for homem’. Esse é o lema e o chamado do Bloco Lá vem Elas. O bloco de homens travestidos, que há 34 anos desfila na Micareta de Feira de Santana levando muita irreverência e criatividade para a avenida.
Foto: Arquivo/Lá vem Elas
O bloco começou com uma brincadeira de um grupo de amigos que frequentavam os chamados “Babas de saia” (jogo de futebol com homens travestidos de mulher) e também festas tradicionais como a Lavagem da Matriz e pré-micaretescas que aconteciam no Clube de Campo Cajueiro e também no Feira Tênis Clube, respectivamente o Caju de Ouro e Noite do Havaí. Atualmente o Lá vem Elas é um dos poucos blocos que desfilam na micareta e consegue manter a tradição resistindo às mudanças da festa, como a concorrência dos grandes camarotes.
Foto: Arquivo/Lá vem Elas | 'Baba de saia' que deu origem ao bloco
Valter Lima, fundador do bloco, destaca que a maior referência para a criação do bloco foi justamente a participação da comunidade nas festas populares. A Lavagem da Matriz e o Bando Anunciador arrebatavam uma grande multidão e traziam momentos de descontração para os grupos de amigos e famílias. Havia uma grande preparação para esses eventos, desde carroças enfeitadas, fantasias e muitos adereços que formavam um grande cortejo.
Foto: Rachel Pinto/Acorda Cidade
“Tínhamos um grande grupo que frequentava esses eventos. Vimos nisso a possibilidade de colocar o bloco e na época a gente não conhecia o bloco “As muquiranas” de Salvador, que é um bloco mais antigo. Não foi uma referência para o bloco Lá vem Elas. Nossa referência veio das ruas, dos movimentos populares de Feira de Santana mesmo”, afirmou.
Atração do sábado de Micareta
O Lá vem Elas chegou a sair os três primeiros anos durante dois dias da Micareta. O sábado e o domingo, sendo puxado desde o primeiro ano por trio elétrico no sábado e no domingo acompanhado por fanfarra. Valter conta que no segundo dia o bloco já saía mais descaracterizado, e os foliões não estavam com as suas fantasias completas. Por isso, optou-se pelo desfile em apenas um dia. Para ele, esse modelo já atende bastante a expectativa do bloco e o desfile marca o sábado de micareta. O Lá vem Elas é uma das primeiras atrações que se apresentam na avenida no sábado e é um momento muito esperado tanto pelos foliões do bloco, como para os demais apreciadores da Micareta.
Foto: Arquivo/Lá vem Elas
O diretor do bloco afirma que já houve anos do Lá em Elas puxar mais de 4 mil pessoas. No último ano, a média foi de 2 mil associados, e grandes nomes do pagode baiano são as atrações marcantes dos desfiles. Valter Lima destaca que apesar do bloco sair com atrações de peso, a maioria dos associados não se preocupa muito com o artista que vai arrastar o bloco. A principal pergunta de quem vai à sede do Lá vem Elas é saber se a fantasia já está à venda. Os foliões enxergam o bloco como um grande time e o mais importante para eles é curtir a micareta com alegria.
Saiddy Bamba, Léo Santana, Psirico já puxaram o bloco e este ano a folia será comandada pela banda Harmonia do Samba.
Foto: Ed Santos/Acorda Cidade (Arquivo)
Criatividade na avenida
A irreverência do Lá vem Elas é sem dúvida associada ao tema das fantasias e todos os adereços usados pelos associados do bloco para desfilar na avenida. A criatividade ganha asas quando a brincadeira é de se travestir de mulher. Ao longo dos anos a legião dos foliões do Lá vem Elas já saiu de mulher maravilha, noivinha, santinha, enfermeiras e vários outros personagens do universo feminino.
Foto: Ed Santos/Acorda Cidade (Arquivo)
Valter Lima explica que a escolha da fantasia sempre converge para um tema que esteja em evidência na mídia.
“Durante a trajetória do Lá vem elas, já saímos com vários personagens. Desde personagens que fizeram sucesso nas novelas, na televisão e que tiveram grande destaque. Quando não tem um personagem em evidência vamos para um tema infantil”, acrescenta.
Foto: Arquivo/Lá vem Elas
O capricho na fantasia é uma atração à parte dos foliões do Lá vem Elas. Não basta apenas ser homem e vestir saia, uma Lá vem Elas que se preze vai para a avenida com direito a uma mega produção e não dispensa brincos, pulseiras, acessórios, maquiagem, além de calcinha e sutiã. A peruca não pode faltar, assim como a bolsinha e há ainda a polêmica pistola de água.
Pistola de água
Muitas pessoas reclamam da tal pistola de água utilizada pelos foliões do Lá vem Elas. O brinquedo é comum em blocos de pessoas fantasiadas e, sobretudo de homens travestidos de mulher. Em Salvador, no Carnaval deste ano, houve uma grande polêmica sobre os abusos dos foliões do bloco “Muquiranas” ao utilizarem a pistola e sua relação com os vários tipos de assédio. A pistola de água ganhou destaque pelo seu uso em brincadeiras desagradáveis e vários grupos de mulheres se manifestaram inclusive nas redes sociais pedindo o fim das “Muquiranas” ou a proibição do brinquedo.
Foto: Ed Santos/Acorda Cidade (Arquivo)
Em Feira de Santana, a situação não é diferente. Há quem ache engraçado ver o Lá vem Elas atirando água pelo circuito e pense que se está na festa é mesmo para se molhar, mas há também quem discorde da brincadeira.
Foto: Arquivo/ Lá vem Elas
O diretor do bloco ressalta que o uso da pistola de água é associado ao comportamento de um homem que se dispõe a desfilar em uma festa popular vestido de mulher. Para ele, o perfil desse folião é de uma pessoa que está disposta a brincar, protestar e aparecer. Na opinião dele, esse comportamento dos foliões em relação às brincadeiras e o assédio com as mulheres já foi bem mais conflituoso. Atualmente ele considera que as relações estão mais harmônicas.
Essa mudança pode ser observada pelo fato do protagonismo feminino, maior divulgação dos direitos e dos mecanismos da rede de proteção às mulheres.
Extinção dos blocos e resistência do Lá vem Elas
Com o surgimento dos grandes camarotes na Micareta de Feira de Santana e as festas particulares fechadas, poucos blocos ainda desfilam no circuito da festa. O Lá vem Elas é um desses blocos que ainda resiste a esse cenário e mantém a tradição de desfilar puxando foliões na micareta.
Blocos que tinham milhares de foliões e traziam grandes atrações da música baiana foram extintos e inclusive os empresários responsáveis passaram a investir também nos camarotes.
Foto: Ed Santos/Acorda Cidade (Arquivo)
Esse fenômeno de expansão de grandes camarotes está associado também ao enfraquecimento do axé music e a popularidade de outros ritmos nas festas micaretescas. Essa mudança traz para a pauta a discussão no que se refere à volta dos movimentos populares de rua e a necessidade de reunir pessoas que organizam a festa e foliões para discutir tais mudanças de comportamento.
Não deixar que a primeira micareta do Brasil, a Micareta de Feira de Santana, evento que faz parte do calendário de festas da Bahia e que já foi responsável por injetar grandes montantes de recursos na economia e no turismo, fique relacionada às boas lembranças e corra risco de adormecer para sempre as manifestações de rua e populares.
Foto: Arquivo/Lá vem Elas
Valter Lima considera a participação popular a principal característica da festa. Ele diz que ainda tem esperança de ver uma micareta plural, como as que vivenciou nos anos das décadas de 1980, 1990 e 2000.
“A gente sempre acredita que a Micareta, apesar dos pesares, tem ainda por parte do poder público um tratamento muito discreto, que dá o devido valor à maior festa popular do Norte/Nordeste. Todos os anos eu vou à Micareta com um olhar crítico e gosto de observar. A Micareta de Feira é um gigante adormecido e se ela tivesse holofotes e visibilidade ia voltar a ser o que sempre foi.Tem 34 anos que eu participo da Micareta e desde muito jovem que eu escuto que vão discutir. Mas, existe pouca discussão. É um produto enorme e tem uma cadeia de emprego enorme. Incrementa a economia da região de Feira e adjacências. Estamos abertos para que a Micareta de Feira de Santana possa reviver os seus tempos áureos”, acrescenta.
‘Sair no Lá vem Elas é um estado de espírito’
Essa frase é muito clara quando vemos na avenida a multidão de foliões do Lá vem Elas. Grupos de amigos se confraternizando, brincadeiras é realmente um estado de espírito, euforia e alegria.
Foto: Arquivo/Lá vem Elas
Esse sentimento, passado de geração para geração, é visto por muitas famílias que saem no bloco em grupos de avôs, filhos e netos. A irreverência do Lá vem Elas não tem idade e reforçando o lema, basta ser homem para se travestir e aproveitar o sábado de micareta. Mudam-se os tempos, mas o “Lá vem Elas”, não deixa de ser um dos desfiles mais esperados da folia.