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Há profissões que oferecem um risco étnico, de saúde e moral maior durante o expediente de trabalho – por isso, há anos se discute o cumprimento das leis trabalhistas e a importância dos sindicatos –, mas ainda é chocante saber que um dos ofícios mais importantes para a comunicação humana possa levar profissionais à prisão.
Com a propagação e o avanço da pandemia de coronavírus, o trabalho dos jornalistas foi colocado à prova: a notificação de novos casos e óbitos em decorrência da doença foi divulgada e colhida principalmente pela empresa, visto que o próprio Ministério da Saúde teve instabilidade na divulgação dos números durante os meses de outubro e novembro.
Os veículos de comunicação foram essenciais para que a informação pudesse ser disseminada e apurada, a ver o trabalho do consórcio de veículos de imprensa sobre a coleta de dados durante a pandemia. As grandes faculdades de jornalismo também foram responsáveis pela produção de estudos em massa para o combate das fake news. E, para que a informação possa chegar a cada uma das pessoas, muitos profissionais perderam a liberdade em pleno período de trabalho.
Os dados do Balanço Anual 2020 da Repórteres Sem Fronteiras (RSF), publicados desde 1995, apontaram que 387 jornalistas foram presos ao longo do ano passado – muitos em virtude da própria cobertura sobre a Covid-19. Outro número que impressiona é o aumento no número de profissionais mulheres presas durante o exercício da profissão: 35% maior do que no ano de 2019, com o total de 42 profissionais detidas.
Para Camila Marins, editora da revista Brejeiras e ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro, o aumento do número de profissionais detidas está relacionado ao machismo estrutural, visto que a prisão dos jornalistas homens dificilmente está atrelada ao seu gênero.
“A situação é muito pior para mulheres negras jornalistas que são apagadas do exercício profissional pelo racismo. A criminalização da vida das mulheres é recorrente, devido ao machismo estrutural. Vemos isso no nosso dia a dia e, infelizmente, também ocorre no exercício da profissão. Vivemos em uma sociedade que julga, moraliza, criminaliza e interdita a vida plena das mulheres”, destaca.
Entre os países que mais apreendem as profissionais da área estão: a Bielorrússia (com quatro jornalistas detidas), em decorrência da repressão sem precedentes desde a eleição presidencial em agosto de 2020, o Irã (também com quatro profissionais presas) e a China (duas jornalistas detidas), país no qual as prisões foram motivadas pela divulgação de dados sobre a pandemia do novo coronavírus.
“Vivemos um momento de pandemia global em que a informação é fundamental, principalmente para métodos de prevenção e controle da doença. É por meio de dados que qualificamos a política pública. Informação é essencial no combate às notícias falsas que fazem com que as pessoas acreditem em teorias de conspiração e não usem máscara ou relativizem a vacina. Precisamos combater a criminalização do exercício profissional e lutar por uma regulação social e econômica das redes sociais que disseminam discursos de ódio e desinformação”, comenta Camila. Ela acrescenta que, sem a comunicação, o combate ao vírus seria muito dificultado: “A comunicação precisa ser vista como direito humano, e a criminalização de seu exercício precisa ser enfrentada em todos os territórios – da favela ao asfalto”.
Entre as séries históricas, os dados apontam que, entre março e maio de 2020, houve quadruplicação no número de detenções e abordagens arbitrárias. De acordo com o órgão, 35% das detenções foram motivadas por alegações ligadas à crise sanitária causada pela Covid-19, o que culminou na prisão de 14 profissionais, que ainda seguem presos. A prática pretende impedir a cobertura da pandemia.
Além da detenção, 30% das violações registradas ao impedimento do trabalho jornalístico estão ligadas à violência física e ameaças, somadas ao fato de que 54 jornalistas seguem hoje mantidos como reféns em todo o mundo.