A Lei Federal nº 10.639/2003, sancionada em 9 de janeiro de 2003, foi um marco na luta pela educação antirracista ao tornar obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas do Brasil.
Em Feira de Santana, a professora Maria Cristina Sampaio vem, desde 2010, desenvolvendo um trabalho significativo na pesquisa e formação continuada de professores, pensando estratégias de implementação dessa lei no âmbito da educação formal no município..
Doutoranda em Educação, educadora, pesquisadora e ativista antirracista, Maria Cristina, iniciou sua trajetória na década de 1990, motivada pelo contexto político e social de afirmação dos direitos da população negra no Brasil. Desde então, ela tem dedicado sua carreira à promoção da Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER), um compromisso que considera fundamental para combater o racismo estrutural no país.
“Eu entendo que a Lei Federal 10.639/2003 configura-se como resultado de mais de cinco séculos de resistência da população negra ao projeto colonial e seus efeitos criminosos. A referida lei é um dos instrumentos legais na nossa luta cotidiana contra o racismo e a discriminação étnico-racial, em prol de justiça e equidade em nossa sociedade”, expõe.
Desafios da implementação da lei 10.639/2003
Ao longo de sua experiência, Maria Cristina identificou diversos obstáculos para a implementação efetiva da Lei 10.639/2003. Entre os principais desafios estão a resistência institucional e falhas de governança na materialização da lei enquanto uma política de educação antirracista, traduzidas na:
- Falta de priorização da temática ERER nos programas de formação inicial e/ou continuada de professores, gestores, coordenadores e equipe de apoio;
- Ausência de uma política sistemática de formação continuada sobre ERER para os profissionais da educação em todos os níveis, etapas e modalidades;
- Descontinuidade das ações formativas sobre a temática da ERER;
- Resistência de gestores, coordenadores e professores em incluir o trabalho com essa temática enquanto conteúdo curricular de todas áreas, níveis, etapas e modalidades a ser desenvolvido durante todo o ano letivo;
Além disso, ela elencou ao Acorda Cidade os desafios envolvendo questões de infraestrutura e de recursos:
• Escassez de recursos financeiros específicos para garantir a materialização do que determina a referida lei e suas diretrizes nacionais, tanto no âmbito da formação de professores, quanto da prática curricular e pedagógica em sala de aula;
• Passadas pouco mais de duas décadas (22 anos) desde a promulgação da lei 10.639/2003, há falta de material didático adequado para o efetivo trabalho com ERER em muitos municípios brasileiros, inclusive em Feira de Santana.
• Ausência de espaços formativos apropriados para a formação continuada de professores;
• Durante muitos anos desde a promulgação da lei houve carência de acervo bibliográfico especializado e específico sobre a temática ERER, atualmente essa situação tem mudado.
Contribuições para a efetivação da lei
Em Feira de Santana, a criação do Núcleo de Educação para Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (NEREEQ), em 2013, foi um passo importante para estruturar políticas de formação e práticas pedagógicas antirracistas.
“É preciso historicizar e referenciar o trabalho pioneiro das professoras: Giovanna Marget Menezes, Márcia Tereza Fonseca, Marly Araújo Damasceno que compuseram o primeiro Núcleo de Educação para Relações Étnico-Rraciais/ERER da Seduc/FSA. Na sequência os professores Giovanna Marget Menezes, Gerson Roque de Moura, Maria Clara e Hely Pedreira, assumiram até o final do ano 2012 a coordenação do ERER/Seduc/FSA e a pauta de formação continuada de professores sobre a temática ERER na rede municipal de Feira de Santana, visando uma prática curricular e pedagógica que desse continuidade ao frágil processo de materialização das Leis Federais 10.639/2003, 11.645/2008 e suas diretrizes nas escolas da rede pública municipal”, lembrou.
Sob a liderança de Maria Cristina e outros educadores, o núcleo conseguiu:
- Mapear escolas quilombolas do município;
- Elaborar a Proposta Curricular de Educação para Relações Étnico-Raciais (2019);
- Inserir a temática antirracista no Plano Municipal de Educação (2016-2026), com a Meta 21 e suas 30 estratégias específicas.
No início do ano 2013, o ERER/Seduc foi desativado, mas atendendo a demanda específica da modalidade Educação Escolar Quilombola, a professora Maria Cristina junto com a professora Rosemeire Oliveira, criaram na Seduc o atual Núcleo de Educação para Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola.
“O trabalho desenvolvido por mim no NEREEQ/Seduc/FSA junto a outros professores e professoras da rede pública municipal, tais como: Josenilda Débora Santos Silva, (Nildinha) Renê Brito Nascimento, Rita Cassiana de Oliveira, na parceria com muitos outros/outras colegas da rede pública municipal, desde o chão da escola e seu currículo, foi um trabalho aguerrido, comprometido, esperançoso”, acrescentou.
Apesar dos avanços, a implementação da Lei 10.639/2003 ainda enfrenta dificuldades em Feira de Santana. Segundo a educadora Maria Cristina falou ao Acorda Cidade, o município avança lentamente, principalmente devido à falta de prioridade política e ao desconhecimento racial por parte de gestores e educadores.
Ainda assim, iniciativas de professores, lideranças quilombolas e movimentos sociais continuam a impulsionar o trabalho na região.
“É importante destacar que mesmo que a passos lentos por falta de vontade política, alienação, e/ou falta de letramento racial, nós, membros da sociedade feirense, membros de movimentos sociais organizados, lideranças de comunidades quilombolas, lideranças religiosas, lideranças políticas, pesquisadoras/es professoras/es da rede pública e/ou particular de educação de Feira de Santana, continuamos na luta pela ampla efetivação de uma educação antirracista, promoção de justiça e equidade”, destacou.
Uma novidade positiva é a portaria MEC nº 470, de 2024, que prevê novas diretrizes para ampliar a efetivação da lei em nível nacional.
Educação Quilombola
A Educação Escolar Quilombola é uma modalidade da Educação Básica, que dialoga intimamente com as determinações da Lei Federal 10.639/2003 e 11.645/2008 e com diretrizes para a temática Educação para as Relações Étnico-Raciais.
“A Educação Escolar Quilombola é aquela que deve acontecer no território da Escola e da educação no sistema formal, seja no chão da Escola e sala de aula, seja embaixo de uma árvore, na beira de um rio, na horta comunitária, durante os festejos de colheita … É fundamental para isso que tenhamos a compreensão que a Educação Escolar Quilombola é resultado de uma demanda nacional das comunidades quilombolas por uma educação diferenciada que valorize os saberes e as epistemologias do quilombo e suas filosofias ancestrais, que valorize os modos de fazer, modos de saber e modos de viver do Quilombo e das quilombolas. Portanto essa Educação Escolar Quilombola nasce de um saber maior que é a Educação Quilombola gestada no seio da comunidade com suas práticas, narrativas e repertórios culturais e transmitidas pelos mais velhos – lideranças mais antigas à comunidade como um todo”, explicou.
Além disso, a pesquisadora Maria Cristina relembra que todo seu aprendizado sobre a Educação Quilombola e Educação Escolar Quilombola é resultado de suas vivências no quilombo e da escuta respeitosa às pessoas das Comunidades quilombolas.
“Foram fundamentais o empenho e luta incansável de: seu José Caciano Pereira; de seu Eduardo/Tio Dudu; de Mãe Bizu/Dona Celestina; da professora Silvera; da professora Maria de Lourdes; de Mãe Gal; de Dona Maria Parteira; de Renilda Cruz/Nina; da professora Isabel de Jesus Santos; de Guda da Quixabeira; de Dona das Neves; de Dona Chica do Pandeiro; do professor Valter; de Francisca das Virgens Fonseca; da professora Madalena Rabelo; de Dona Beatriz Bispo Miranda; da professora Nalva; da professora Nildinha; professora Sandra Cristina … e tantas outras lideranças e professoras/es de nossas quatro comunidades quilombolas de Feira de Santana. Porque, não existe educação escolar quilombola sem um diálogo afinado com a sua comunidade quilombola”, frisou.
Ações desenvolvidas em Feira de Santana que se destacam na implementação da Lei 10.639 e no fortalecimento de uma educação antirracista:
- Avanço da temática na formação inicial e continuada de professores;
- Elaboração pela Seduc/FSA-2019 de um documento orientador na forma de Proposta Curricular para ERER mediando o trabalho com essa temática nas escolas da rede pública municipal;
- Elaboração de estratégias e metas a curto, médio e longo prazo no PME/FSA (2016 – 2026) visando o combate ao racismo e a efetiva materialização da Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola em todo sistema formal de educação em Feira de Santana;
- Existência do Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento das Comunidades Negras e Indígenas – COMDECNI, representado pela figura da ativista antirracista Lourdes Santana.
- Atuação em Feira de Santana dos diferentes movimentos sociais negros; movimentos de religião de matriz africana; movimento social quilombola; movimento de mulheres negras que lutam e exigem a materialização de uma política antirracista em FSA/BA;
- Organização e atuação de diversos grupos de pesquisas nas Comunidades, nas IES, nas Escolas, em Secretárias e outros órgãos do governo municipal, que assumiram a luta antirracista como agenda e pauta cotidiana.
Para Maria Cristina, a Lei 10.639/2003 é fruto de séculos de resistência da população negra contra o racismo e a discriminação. Sua implementação é essencial para promover uma sociedade mais justa e equitativa.
“Em um princípio havia muita resistência em se trabalhar desde a perspectiva da educação antirracista, e havia muita dificuldade em compreender que esse trabalho não deve ser uma ação pontual agendada para o mês de novembro. A grande demanda hoje ainda é que a escola e todos os seus atores entendam que a educação antirracista deve ser compreendida como o fazer curricular para todo o ano letivo e seus ciclos, desenvolvida e praticada em todos os componentes curriculares, em todas as áreas do conhecimento em todos os níveis, etapas e modalidades da educação no seu sistema formal”, concluiu.
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