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Com o objetivo de combater fraudes e garantir que a Lei nº 12.711/12 (Lei de Cotas) cumpra a finalidade de ampliar o acesso da população negra e indígena ao ensino superior e técnico, a AGU vem atuando em tribunais de todo o país para demonstrar a validade de decisões tomadas por comissões criadas pelas instituições de ensino para averiguar a veracidade da autodeclaração dos candidatos.
Somente uma unidade da AGU, a Equipe Regional em Matéria de Educação da Procuradoria Regional Federal da 1ª Região (ER-EDU/PRF1), já atuou em 110 ações movidas por candidatos para questionar as conclusões das comissões desde outubro, quando a equipe foi criada. Em 90% dos casos, a Justiça entendeu que a decisão da comissão deveria prevalecer, conforme defendido pela Advocacia-Geral.
A coordenadora da ER-EDU/PRF1, a procuradora federal Mônica Luciana Kouri Ferreira, explica a atuação da equipe. “A ideia é aprimorar e uniformizar as teses e direcionar de maneira mais eficiente as defesas a fim de se obter o maior êxito judicial. Ao centralizar o controle e as demandas judiciais específicas, como as relacionadas à atuação em defesa das comissões de heteroidentificação, conseguimos potencializar nossos resultados, resguardando e validando a aplicação dessa importante política de ação afirmativa”, resume.
Combate a fraudes
As comissões foram instituídas pelas universidades após inúmeras denúncias de fraudes no ingresso de candidatos pelo sistema de cotas. Essas comissões adotam o critério fenotípico (cor da pele, textura do cabelo, formato de lábios e nariz, entre outros aspectos) como caracterizador da condição autodeclarada. A heteroidentificação é utilizada de forma complementar à autodeclaração. A decisão das comissões, constituídas por três membros, precisa ser unânime para que um candidato tenha o seu ingresso no curso negado.
Foi justamente o que ocorreu em um dos casos mais recentes a contar com a atuação da AGU. Por meio da ER-EDU/PRF1 e da Procuradoria Federal no Estado de Goiás (PF/GO), a Advocacia-Geral assegurou na Justiça a decisão da Comissão de Heteroidentificação da Universidade Federal de Goiás (UFG) que havia rejeitado o ingresso indevido de uma candidata por ela não preencher os requisitos para ser considerada parda.
A candidata fazia parte do processo seletivo do curso de Medicina da UFG, realizado pelo Sistema de Seleção Unificada (SiSU) de 2019, e pleiteava uma das vagas reservadas para candidatos autodeclarados pretos ou pardos. Após ter sido reprovada na heteroidentificação, a candidata acionou a Justiça pedindo a anulação da decisão da comissão, bem como o direito de realizar a matrícula no curso. Ela alegou que a autodeclaração do candidato deve prevalecer em caso de dúvida razoável a respeito de seu fenótipo.
Mas a AGU demonstrou que a comissão concluiu de forma unânime que a candidata, por apresentar cabelo liso, traços faciais finos e pele clara, não poderia ser considerada parda já que não apresentava os traços fenotípicos característicos da população negra brasileira, decisão que foi mantida pela UFG após a candidata recorrer administrativamente – o que também comprovou, defendeu a AGU, que a candidata exerceu o contraditório e a ampla defesa durante a análise do caso pela instituição de ensino.
Com base nos argumentos apresentados pela AGU, a 1ª Vara Federal de Goiás rejeitou o pedido da candidata, reconhecendo que não houve qualquer nulidade no ato administrativo que indeferiu a matrícula da estudante.
A magistrada responsável pela decisão assinalou que “a aparência é realmente decisiva para garantir o benefício da reserva de vagas” e que “se a ação afirmativa visa, justamente, a garantir uma compensação em razão de preconceitos sofridos pela população negra e parda, não importa aqui se a pessoa tem efetivamente ascendência negra, pois a discriminação e o preconceito têm origem em elementos fenotípicos de indivíduos e grupos sociais”.
Jurisprudência
Um dos principais argumentos utilizados pelas procuradorias nesse caso específico e em outros casos similares é que a jurisprudência se firmou no sentido de que a administração pública está autorizada a realizar a análise sobre a veracidade da autodeclaração do candidato adotando o critério fenotípico como caracterizador da condição de negro e pardo.
Durante o julgamento em que reconheceu a constitucionalidade das cotas raciais nas universidades (ADPF nº 186), em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia entendido que o procedimento de autodeclaração associado à heteroidentificação não afronta a Constituição Federal. “Pelo contrário, a heteroidentificação serve para resguardar e validar a implementação dessa importante política pública, que tem o objetivo de facilitar o acesso à educação para uma parcela da sociedade que precisa ser inserida no seio da universidade de forma justa”, pontua Mônica Kouri Ferreira.
Autonomia universitária
Outro argumento utilizado pelas procuradorias é que as universidades têm autonomia para definir as regras dos processos seletivos para ingresso em seus cursos superiores. A tese defendida pela AGU é que a comprovação dos requisitos exigidos não só é pertinente, mas razoável, já que para ter acesso ao ensino superior público e gratuito o interessado precisa preencher as condições previamente estabelecidas em lei e no edital do processo seletivo.
“Se o edital de seleção estabelece que todos os candidatos autodeclarados negros passarão obrigatoriamente pela verificação da autodeclaração realizada pela Comissão de Heteroidentificação, não há qualquer ilegalidade neste proceder, até porque a Administração tem o dever de zelar pela autenticidade de todo o processo seletivo, garantindo a isenção até os últimos atos que confirmam o ingresso do candidato na Universidade”, explica a coordenadora da ER-EDU/PRF1.
As cotas
A Lei nº 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas, foi criada para ampliar o ingresso no ensino superior por parte de estudantes de escolas públicas, de baixa renda, negros, pardos e indígenas e de pessoas com deficiência. Ela estabelece que todas as instituições federais de ensino superior e de ensino técnico de nível médio devem reservar, no mínimo, 50% das vagas de cada curso aos estudantes de escolas públicas. Dentro dessa porcentagem, metade das vagas precisa ser destinada aos estudantes de famílias com renda mensal igual ou menor do que 1,5 salário mínimo per capita.
Em cada faixa de renda, entre os candidatos cotistas, são separadas vagas para autodeclarados pretos, pardos e indígenas e pessoas com deficiência, com distribuição proporcional ao censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no estado onde fica localizada a instituição de ensino.
A PRF 1ª Região e a PF/GO são unidades da Procuradoria-Geral Federal (PGF), órgão da Advocacia-Geral da União (AGU).