No Brasil, o Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, representa mais do que uma data no calendário; é um marco para refletir sobre a resistência e a trajetória da população negra desde a chegada forçada e desumana de milhões de africanos trazidos como escravizados.
Aprovado como feriado nacional apenas em 2023, o 20 de novembro relembra a luta histórica dos negros no país, que resistem há séculos ao racismo estrutural, à exclusão e à desigualdade. Até a abolição da escravidão em 1888, estima-se que cerca de 4 milhões de africanos foram trazidos ao Brasil para serem explorados em um sistema que deixou marcas profundas na sociedade atual.
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A Resistência Negra e a Importância do 20 de Novembro
A celebração do 20 de novembro foi escolhida em homenagem a Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, um dos maiores símbolos de resistência negra. Por muitos anos, o 13 de maio – data que marca a abolição da escravidão – foi reconhecido oficialmente. No entanto, o movimento negro percebeu que essa data não refletia as lutas e resistências dos negros, por isso optou-se pelo 20 de novembro como símbolo de uma liberdade conquistada por aqueles que lutaram contra a opressão.
O Quilombo dos Palmares simboliza a luta pela liberdade e pela dignidade da população negra. Fundado no século XVII, Palmares era um espaço de resistência, onde negros fugidos da escravidão podiam viver em liberdade e autonomia, o que inspirou e fortaleceu o movimento negro ao longo dos séculos. Reconhecer o dia da morte de Zumbi como o Dia da Consciência Negra é uma forma de valorizar a luta por direitos e por reconhecimento.
Em entrevista ao Acorda Cidade, a historiadora e professora Milena Assis explicou que o Novembro Negro, e especialmente o Dia da Consciência Negra, “tem uma importância para a reafirmação e manutenção das heranças da cultura afro-brasileira, que durante muito tempo foi marginalizada por conta de uma sociedade racista e que as pautas referentes à cultura negra, ela era sempre negligenciada. Então, a partir dessa data, do novembro, do 20 de novembro, que é o dia da Consciência Negra, começa a ter uma necessidade de estar criando na sociedade, momentos que discutam com mais ênfase essas pautas voltadas para a negritude”.
Dados do Racismo Estrutural
A realidade mostra que o Brasil ainda carrega traços marcantes do racismo estrutural. De acordo com o Censo de 2022, mais de 55% da população brasileira é composta por pretos e pardos, mas essa maioria enfrenta os piores índices em áreas como criminalidade, saúde, educação e acesso a empregos dignos.
Mulheres negras sofrem desproporcionalmente com a violência. Segundo o estudo “Violência Contra Mulheres Negras e Feminicídio no Nordeste”, elas representam 66,4% das vítimas de feminicídio na região, mesmo sendo 37,19% da população feminina. Homens negros também são as maiores vítimas da violência policial. Dados do Sistema de Informações Penitenciárias (Infopen) mostram que 62% das mulheres encarceradas no Brasil são negras, evidenciando um contexto de opressão que atravessa diversos âmbitos da sociedade.
No mercado de trabalho, as condições de desigualdade se agravam. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) de 2022 apontam que 91,4% dos trabalhadores domésticos no país são mulheres, e 67,3% dessas mulheres são negras. Do total, apenas 24,7% têm carteira assinada, com uma grande concentração de trabalhadoras no Nordeste, a região que apresenta a maior quantidade de pretos no país.
Desafios e a Importância de Ações Afirmativas
Milena Assis, que também é especialista em história da Bahia e mestranda em história social, destaca que, embora políticas públicas como as cotas nas universidades tenham avançado, ainda há um longo caminho a percorrer. “Mesmo com essas políticas, ainda enfrentamos racismo cotidiano, com a maioria da população negra concentrada em favelas e sendo a maior parcela nos presídios”, aponta.
A violência contra a juventude negra, em especial, é uma ferida aberta na sociedade brasileira, que precisa de políticas de segurança, educação e emprego que contemplem essa população. “A gente o tempo inteiro é parado, abordado, ainda existe reconhecimento facial, onde os negros, a maioria dos negros são colocados em pauta, questão de emprego, educação. Então, são vários desafios que a gente enfrenta para buscar uma melhoria”, alertou Milena.
Ela também enfatiza o papel das escolas e universidades na promoção da Consciência Negra, lembrando a importância da Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de cultura afro-brasileira nas escolas, mas que em muitas unidades ainda não é cumprida na grade curricular. Essa é uma medida essencial, mas que deve ser acompanhada de práticas contínuas de valorização da cultura, do acesso a espaços e da história negra.
“Na época que eu estudei, que eu entrei na Universidade Estadual de Feira de Santana, era uma universidade extremamente branca. Eu, dentro do curso de História, só tinha eu e mais quatro pessoas negras. Então, eu já saí de um curso de História com a universidade mais mesclada, mais mestiça. Então, a gente vai percebendo que essas políticas públicas, elas funcionam, mas, ainda assim, a gente enfrenta o desafio do desemprego, do subemprego, da violência. A violência contra a juventude negra é extremamente marcante em nossa sociedade. A gente vê que morre-se muitos negros vítimas de violência, vítima do próprio sistema. Por quê? Porque nega o acesso desse negro a alguns benefícios e esses negros, muitas vezes, se veem marginalizados. E a sociedade vai e ainda reafirma isso”, explicou.
A Consciência é Negra
Principalmente no Dia da Consciência Negra, não se pode falar em “consciência humana” em uma sociedade que naturaliza as desigualdades raciais e ignora o impacto profundo do racismo estrutural. A falta de reconhecimento dessa opressão se revela, muitas vezes, em frases como “não sou racista, tenho amigos negros”, que apenas mascaram um problema muito mais profundo e sistemático. Ao negar o racismo com desculpas superficiais, a sociedade perpetua uma cultura que mata e marginaliza a população negra, destituindo-a de seu direito pleno à dignidade, ao reconhecimento e ao acesso a condições iguais.
O movimento negro luta justamente para desconstruir essa falsa neutralidade, apontando as injustiças diárias e o apagamento histórico de contribuições culturais, sociais e econômicas da população negra. Enquanto não houver uma verdadeira conscientização, que vá além das aparências e enfrente o racismo em sua essência, o ideal de “consciência humana” continuará sendo apenas um discurso vazio.
Vale ressaltar que os governantes não criaram por si só políticas públicas que garantissem os direitos da população negra; isso só foi conquistado com a militância dos movimentos raciais, como quilombolas e o movimento de mulheres negras. Portanto, o letramento racial precisa ser estudado por todas as pessoas, sem distinção, inclusive, em todas as áreas, para que a reparação histórica e a justiça social sejam feitas, inseridas, executadas no Brasil. Como diz a ativista e intelectual Angela Davis: “Numa sociedade racista não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”.
O Novembro Negro, portanto, é uma oportunidade para amplificar as vozes e as histórias que muitas vezes são silenciadas. “Por mais que ainda existam aqueles que considerem a discussão um ‘mimimi’, é vital termos um mês em que possamos exaltar nossa cultura e nossas personalidades negras, que tragam representatividade para a população negra, que durante muito tempo não tinham essas representações que eram padronizadas por branco. Então, quando você começa a se reconhecer dentro, você começa a perceber, olha, minha cultura, ela é valorizada. Então, é importante ter esses momentos de trazer, de exaltar essa cultura negra, essa cultura preta, para que os jovens, as crianças, elas passem a se reconhecer enquanto negros e terem o orgulho de serem negras”, disse em entrevista ao Acorda Cidade.
A historiadora reforçou a importância de maior rigor na punição ao racismo, de modo a evitar a perpetuação da impunidade que desestimula o combate a essa prática e afeta a autoestima da população negra, impactando também sua saúde mental.
Novo feriado nacional
Para a professora Milena, o feriado de 20 de novembro tem especial significado na Bahia, estado com uma das maiores populações negras do Brasil. Ela vê a data como um momento de reafirmação da importância da cultura afro-brasileira, “para que as novas gerações se reconheçam e lutem por suas causas”.
Milena espera que o Novembro Negro sirva de impulso para uma conscientização que deve durar o ano todo, com a sociedade finalmente reconhecendo e respeitando a riqueza da cultura negra e o papel indispensável que ela desempenha no Brasil.
“Que essa sociedade passe a respeitar a cultura negra, passe a conhecer essa cultura negra e que possa assim, a gente poder conviver de uma forma mais harmônica, mais justa, onde negros, mestiços, que a gente consiga conviver de uma forma justa, com oportunidades iguais, com trabalho, com equidade”, acrescentou em entrevista ao Acorda Cidade.
O Dia da Consciência Negra vai além de memórias de resistência; ele é uma celebração do legado da população negra que moldou o Brasil. São nomes como Abdias do Nascimento, Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Dandara, Maria Firmina dos Reis, Esperança Garcia, Sueli Carneiro, Benedita da Silva, Marielle Franco, Kabengele Munanga, Zózimo Bulbul, Pelé, Ruth de Souza, Lázaro Ramos, Daiane dos Santos, Vinicius Júnior, Milton Santos, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Gilberto Gil, Elza Soares e por aí vai. Você reconhece sua história através desse legado?
As lutas e contribuições dessas personalidades, sem deixar de reconhecer e lembrar do trabalhador, da mão de obra, do agricultor, do operário, que juntos ajudaram a construir uma sociedade que valoriza a diversidade e reconhece a riqueza da cultura afro-brasileira. Este reconhecimento não apenas honra a ancestralidade, mas também alimenta um afrofuturismo que enxerga a juventude negra como protagonista de um país mais justo e inclusivo.
Como disse a filósofa e ativista Sueli Carneiro: “Entre direita e esquerda, eu continuo sendo preta.” Essa afirmação resume a luta contínua pelo direito de existir com dignidade em uma sociedade que precisa valorizar sua história negra e construir um futuro onde todos tenham as mesmas oportunidades. Que o 20 de novembro siga sendo um marco de esperança e de luta, pavimentando o caminho para novas gerações crescerem em um Brasil mais igualitário.
Com informações do repórter Ed Santos do Acorda Cidade
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