Quem vai ao terceiro piso da Casa das Histórias, onde ela se conjuga ao prédio do Arquivo Público Municipal, se depara com uma mostra de mapas de Salvador trazendo sugestões de novas vias e avenidas, projetos para regiões da cidade com várias diferenças em relação às que conhecemos e plantas de edifícios que não chegaram a ser construídos. É bem fácil se perder no tempo procurando o seu bairro, identificando prédios tombados e, sobretudo, comparando a capital baiana do passado com a atual.
As plantas, feitas a mão, são, por si só, obras de arte, tamanho o cuidado empregado nas cores e tintas escolhidas e na precisão dos traços. Nelas, aparecem equipamentos como a Fonte Nova e lugares históricos como a Praça Castro Alves e a Ladeira da Montanha. Tudo isso integra o acervo do Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador (Epucs), um dos mais completos e pioneiros trabalhos de planejamento urbano da história do Brasil.
Coordenado por Mário Leal Ferreira e Diógenes Rebouças, o Epucs levantou na década de 1940 todos os dados imagináveis sobre Salvador: o relevo da cidade, o caminho das águas da chuva, o transporte coletivo, a circulação de automóveis, as características da habitação proletária e onde deveriam ficar escolas e hospitais. Foi o primeiro plano de urbanismo de Salvador e um dos mais importantes feitos no país na primeira metade do Século XX.
Precisamos de um plano
Àquela época, Salvador precisava de algo que a tirasse da estagnação. A cidade estava em crise, sem desenvolvimento econômico, enfrentando problemas sanitários e com a crescente população cada vez mais pobre. Era preciso um plano. O Brasil vivia a era Getúlio Vargas, em que a ordem era a modernização do Estado brasileiro e das cidades.
Criado em 1942 por Mário Leal Ferreira, o Epucs lançou bases do que vemos ainda hoje na cidade: a Centenário e outras tantas avenidas de vale; a harmonia da área universitária da Ufba com o relevo do Vale do Canela; as equidistâncias entre a Escola-Parque na Caixa D’Água e as várias escolas-classe ao redor, segundo o modelo de Anísio Teixeira. Todos os projetos dos anos seguintes adotaram – alguns muito, outros pouco – as ideias do plano.
O Epucs lançou um método pioneiro de trabalho na área, com uma equipe multidisciplinar. Além de engenheiros e arquitetos, havia advogados, historiadores, botânicos, topógrafos, médicos e fotógrafos. “Mário Leal ativou uma rede imensa de pessoas para obter informações. Ele estuda muito as avenidas de São Paulo, entra em contato com Juscelino Kubitschek, então prefeito de Belo Horizonte, pega também o plano de Porto Alegre…”, conta Ana Maria Fernandes, professora de Arquitetura e Urbanismo da Ufba.
“Eles contrataram pessoas muito qualificadas. Tem estudos sobre meio-ambiente, espécies vegetais, ventilação e insolação. Também estudos sobre o desenvolvimento do Recôncavo, ou seja, já tinham uma preocupação regional, com o olhar de que uma cidade nunca vive sozinha, mas sim da rede urbana à qual ela pertence. Então, era realmente um plano muito abrangente, que reuniu muita gente boa de Salvador”, completa Ana Maria.
As avenidas de vale
Mário Leal era engenheiro, mas era fascinado pela topografia. Diógenes Rebouças, seu braço direito, também. Assim, o Epucs nasceu com muito respeito ao relevo de Salvador. O escritório identifica que, até a década de 1940, a cidade estava toda na parte alta dos morros, onde as pessoas moravam. Os vales entre eles não eram ocupados: eram em sua maioria hortas, uma espécie de zona rural urbana.
Desse conjunto, surge o legado talvez mais perceptível do Epucs nos dias atuais: o conceito de vias de vale e vias de cumeadas. A ideia é que as avenidas de fluxo rápido sejam pelos vales, enquanto as ruas ligando os bairros fiquem sobre os morros. É quase um sistema de circulação em dois andares: um por cima, mais lento, para o cotidiano; outro por baixo, de velocidade, para vencer grandes distâncias.
É a relação, por exemplo, entre as atuais avenidas Anita Garibaldi e Cardeal da Silva, ou da Reitor Miguel Calmon com as ruas Padre Feijó e Caetano Moura. O conceito das avenidas de vale é um dos mais importantes lançados pelo Epucs, e foi – mais ou menos – adotado por todas as gestões a partir dele: Vale de Nazaré, Vale dos Barris, Ogunjá, Vasco da Gama e a Bonocô – que, não à toa, leva o nome de Av. Mário Leal Ferreira.
Avenida Centenário
O exemplar mais fiel ao conceito lançado pelo Epucs está na Avenida Centenário, na Barra. Ela é, de fato, uma ‘parkway’, ou avenida-parque, como sugeriram Mário e Diógenes para os vales de Salvador: uma pista com vias marginais de acesso às cumeadas, que não prejudicam as faixas centrais, que são expressas e de alta velocidade.
A avenida começou a ser implantada em 1949, nas comemorações do quarto centenário da fundação de Salvador. Mário, porém, não viu o principal exemplar da sua ideia, pois faleceu de forma repentina em março de 1947. Diógenes então assumiu a direção, completando o plano. É ele quem assina o projeto da Centenário.
Ali, vemos aplicado um traço fundamental do conceito: as ‘parkway’ correm em diferentes níveis, sendo que, ao centro, na cota mais baixa de todas, há um rio canalizado, que recebe as águas das chuvas que vêm dos arredores. Eis um marco: pelas avenidas de vale correriam também os principais sistemas de drenagem e de esgotamento da cidade.
Era o respeito à topografia, afinal, a água da chuva sempre escorre para o ponto mais baixo. Temos aí um legado mais técnico, mas de enorme impacto para quem é da área, já que o escritório levantou em detalhes a topografia da cidade,mapeando todo o seu sistema de drenagem. Essas bases são utilizadas até hoje.
A Escola-Parque
No final dos anos 1940, Anísio Teixeira, secretário de Educação da Bahia, propôs a criação das Escolas-Parque, projeto revolucionário de ensino em tempo integral no país. Num turno, um grupo grande de alunos se concentraria na Escola-Parque, com atividades de esporte e cultura, enquanto vários grupos menores seriam distribuídos em Escolas-Classe, com aulas de português, matemática e outras matérias. No outro turno, os alunos trocariam de lugar, sempre concentrando na Escola-Parque e dispersando pelas Escolas-Classe.
Anísio e Diógenes, então, sentaram para desenvolver o projeto e pensaram na Liberdade, já um bairro populoso de Salvador. Definiram que a Escola-Parque ficaria perto do Largo do Tamarineiro, que centralizava quatro zonas urbanas, ou sub-bairros, cada uma com a sua Escola-Classe. Tudo foi pensado: para que funcionasse, a distância entre as escolas não poderia ser grande, de forma que os alunos pudessem caminhar após o almoço.
A ideia era implantar até 10 Escolas-Parque na cidade, mas o único exemplar a sair do papel foi o original, o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, na Caixa D’Água. O projeto não prosperou em Salvador, mas a genialidade de Anísio e Diógenes virou modelo para o Brasil.
“Anísio foi trabalhar no Governo Federal e adotou esse projeto na construção de Brasília. O Rio de Janeiro criou mais tarde os ‘Ciep’, baseados na Escola-Parque. Mais recentemente, quando foi prefeita de São Paulo, Marta Suplicy criou os ‘Ceu’ inspirados nessa ideia. Ou seja, é um conceito extremamente importante, criado na Bahia e que até hoje está em pauta na educação”, explica Nivaldo Andrade, professor de Arquitetura e Urbanismo da Ufba.
Centros cívicos
O Largo do Tamarineiro, por sinal, remonta a outro modelo proposto pelo Epucs: os Centros Cívicos. A ideia era que cada conjunto de três ou quatro bairros nas cumeadas tivesse um núcleo central, onde estariam concentrados os serviços essenciais para os moradores como comércio, delegacia, hospital, bancos etc. Nos mapas, esse esquema remonta aos trevos, sendo os bairros as quatro folhas e o Centro Cívico o miolo.
Interligando as ‘folhas’ estariam as vias de cumeadas, num desenho orgânico. A ideia traria facilidade para o cotidiano das pessoas, tornando os afazeres do dia a dia mais acessíveis. “Como Salvador tem uma topografia acidentada, esses morros ficam isolados uns dos outros, então cada conjunto de bairros criou uma identidade própria. Então, para cada um deles, haveria um Centro Cívico respeitando essa marca”, explica Nivaldo Andrade.
Outros marcos foram legados do Epucs. Até 1950, Salvador não tinha hotel e teatro modernos, e o plano orientou a implantação do Hotel da Bahia e do Teatro Castro Alves no Campo Grande. Antes mesmo da criação da Ufba, em 1946, o escritório já havia estudado a melhor localização para o campus.
Alguns loteamentos foram criados seguindo a visão urbana do órgão, de aproveitamento do relevo e muitas áreas verdes: o Parque Cruz Aguiar, no Rio Vermelho, o Jardim Apipema, o Chame-Chame e o Morro do Ipiranga, todos na Barra, são exemplos. A habitação proletária também foi pensada: o escritório defendia que o Estado deveria intervir adquirindo terras e subsidiando a moradia popular para regular o mercado.
Mário e Diógenes
O mais curioso de tudo é que Mário Leal Ferreira não era urbanista e não tinha histórico de trabalhos na área. Quando a Prefeitura estava em busca de um escritório, o favorito era o Coimbra Bueno, com a grife de Alfred Agache, francês autor do plano de modernização do Rio de Janeiro. Mário fica sabendo, vê a oportunidade e começa a trabalhar para que ele mesmo seja o escolhido. Engenheiro nascido em Santo Amaro, ele já tinha contratos com o Estado e conhecia o governador Landulfo Alves.
Mário havia participado da concepção da Fonte Nova, onde se impressionou com Diógenes Rebouças. Com apenas 28 anos, o engenheiro sugeriu mudar o estádio de lugar e apoiá-lo na encosta de Nazaré, o que diminuiria custos e criaria um elemento menos impactante na paisagem. É dele também a ideia do formato de ferradura, com a abertura para o Dique do Tororó. Mário pensa ‘esse jovem tem talento’ e o chama para ser o seu braço direito.
Talvez esteja aí o segredo de Mário, que acabou sendo contratado: sem uma fórmula de urbanismo pronta, ele decidiu criar um método novo e próprio de trabalho. “Era aquele tipo de pessoa que, quando se destina a fazer algo, estuda tudo, levanta tudo, ouve a todo mundo. Era obstinado, queria dominar o assunto a fundo”, explica Ana Maria Fernandes.
“Tinha também uma coisa de abrir o escritório para a discussão pública. Isso é algo muito legal de Mário, pois ele falava que o plano não pode ser o resultado do trabalho de uma só pessoa, ele tem que ser submetido à crítica da sociedade. Então, havia um compromisso dele muito forte com o bem público e com essa vontade de tornar a coisa um pouco mais coletiva”, completa a professora.
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