O dia 13 de maio é conhecido como o dia da abolição da escravatura no Brasil. Em 1888, há 135 anos, a então regente Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, que estabelecia – ao menos em documento – o fim da escravidão de negros trazidos de regiões onde atualmente estão países como Moçambique, Nigéria, Senegal, Togo, Benin, Costa do Marfim, Serra-Leoa e Gana.
Em Salvador, onde está concentrado o maior número de pretos fora do continente africano, é possível encontrar muitas homenagens para personalidades que têm conexão direta com o racismo e a escravidão, como a própria Isabel. Na capital baiana, há vias, praças, placas, pontos turísticos, prédios e monumentos em tributo a traficantes de escravizados e pessoas que se beneficiaram desse sistema.
Para entender essas relações, o g1 conversou com o historiador João Carvalho e com Carlos da Silva Júnior, pesquisador e idealizador do site Salvador Escravista, projeto coletivo que levanta subsídios sobre o papel de indivíduos no desenvolvimento de uma sociedade marcada pelo racismo e todas as suas consequências. Confira abaixo.
Princesa Isabel
Filha de Dom Pedro II e da Imperatriz Teresa Cristina, a Princesa Imperial Isabel Cristina de Bragança e Bourbon é uma das personalidades históricas que recebe homenagem em Salvador, precisamente na avenida que liga os bairros da Graça e da Barra. Ela também batiza prédios no Centro Histórico e uma travessa no bairro de Itapuã.
Segundo João Carvalho, o fim da escravidão se deu por causa da luta dos negros e seus aliados, não por benevolência de Isabel. Contudo, durante longos anos, ela levou os louros e o protagonismo do processo.
Conforme o pesquisador, a princesa assinou a Lei Áurea após muita cobrança e pressão de autoridades, já que o Brasil era o único país do ocidente que ainda mantinha o regime em 1888. O texto da legislação, inclusive, só foi enviado ao Senado no último dia de votação, segundo ele.
Além disso, o documento assinado por Isabel não previu direitos, nenhum tipo de reparação ou indenização financeira aos que sofreram com o regime escravocrata, deixando à míngua aqueles que, no papel, estavam libertos, mas continuaram se submetendo a condições subumanas para sobreviver.
“Centralizar na figura da Princesa Isabel todos os méritos da abolição é apagar tudo aquilo que os próprios escravizados e personalidades negras fizeram para combater o período escravocrata. Já não tinha como manter a escravidão naquele cenário”.
O movimento abolicionista cresceu no Brasil a partir da década de 1870 e mobilizou diferentes grupos da sociedade brasileira em defesa da abolição da escravidão. A ação desses grupos era diversa, consistia em manifestações e suporte a quilombos e pretos fugidos, e o crescimento do debate alcançou também a política, de mogo que o regime se tornou insustentável.
Elevador Lacerda
Um dos principais pontos turísticos de Salvador e importante meio de locomoção para quem circula entre as cidades Alta e Baixa, o Elevador Lacerda tem uma história que a maioria dos seus visitantes e usuários não conhece.
O equipamento foi projetado e financiado pela família Lacerda, uma das principais responsáveis pelo tráfico de africanos trazidos à força para a Bahia.
“A família Lacerda era aristocrática, era uma dessas famílias que defendiam e se aproveitavam do sistema escravista. Eles eram constantemente homenageados e até comendas já receberam”, aponta João.
De acordo com ele, a compra e venda de negros eram feitas dentro da casa dos Lacerda, como se fossem uma mercadoria qualquer em negociação, e parte do financiamento para a construção do Elevador, projetado pelo empresário Antônio Franciso de Lacerda, foi oriunda dos valores recebidos através dessa prática.
“Uma das principais atividades da família Lacerda era a comercialização de escravizados. Parte da riqueza deles se deu através do tráfico de escravos em navios negreiros”, reforça o historiador.
Teodósio Rodrigues
Capitão e marinheiro, o português Teodósio Rodrigues de Faria, é responsável por uma das maiores tradições do povo soteropolitano: a devoção ao Senhor do Bonfim. Foi ele quem trouxe a imagem do santo para Salvador, como forma de agradecer após ter sobrevivido a uma tempestade em alto mar, no ano de 1745.
Porém, existe uma parte obscura da trajetória dele, pouco revelada. Em 1750, Teodósio ganhou a patente de capitão de mar e guerra e passou a atuar no tráfico humano. Nessa época, o português passou a investir em grandes navios e a atuar na compra e venda de negros.
“Ele era um dos grandes comerciantes de escravos daquela época. Mesmo assim, foi construída uma memória, foram dadas honrarias para ele, sem levar em consideração a participação dele no comércio negreiro”, sinaliza Carlos da Silva.
A praça e rua onde a igreja do Senhor do Bonfim fica localizada estão registradas com o nome de Teodósio Rodrigues de Faria. O corpo dele foi sepultado na Basílica.
Carlos acrescenta que Rodrigues de Faria se juntou a outros traficantes, José Nunes Martins e Francisco Borges dos Santos, para firmar uma sociedade e expandir os negócios. Juntos, os três compraram mais de um navio com capacidade para até 500 pretos, que faziam uma viagem que durava meses, em condições degradantes.
Muitos não sobreviviam ao trajeto que cruzava o oceano Atlântico. Estima-se que 150 mil tenham morrido a caminho da Bahia e aproximadamente um milhão e duzentas mil pessoas chegaram ao estado com vida. Salvador foi o segundo maior porto de desembarque de africanos nas Américas durante a vigência do comércio transatlântico de pessoas escravizadas.
Barão de Cotegipe
O Barão de Cotegipe batiza uma importante rua do bairro do Comércio, um dos mais tradicionais da capital baiana. Ele é apontado como um dos principais escravocratas do Império Brasileiro.
O Barão mantinha negros escravizados em um engenho situado na região onde hoje existe a cidade de Candeias, Região Metropolitana de Salvador. A estimativa do projeto Salvador Escravista é que ele mantinha 200 pessoas como escravas neste lugar.
“O Barão era publicamente contrário a conceder a liberdade para os escravos. Era um dos maiores anti abolicionistas da época, tanto que apresentou um projeto de lei aumentando por mais três anos o trabalho do escravo ao seu patrão”, explicou Carlos.
Entre 1885 e 1888, ele assumiu a presidência do Conselho de Ministros e efetuou a Lei dos Sexagenários em um formato diferente do idealizado pelos líderes negros e abolicionistas do período. O projeto aprovado por ele só previa a liberdade do escravizado sexagenário,após mais três anos de trabalho ao dono da terra, ou com a opção de completar até 65 anos de idade.
Ainda neste cargo, o barão foi responsável também por repreender de forma violenta o movimento abolicionista. Agressões físicas, espancamentos, prisão e perseguição eram promovidas e autorizadas por ele, sobretudo aos negros fugitivos e defensores do abolicionismo.
“O imenso poder econômico e político desse e de outros homens, converteu-se em poder simbólico. Sua memória passou para a posteridade como homens de negócio, empreendedores, como grandes benfeitoras, mas não eram, longe disso”, afirma Carlos, lembrando que “o trabalho forçado dos africanos escravizados e seus descendentes está marcado nas ruas, prédios públicos e privados, igrejas e outros espaços da cidade de Salvador”.
Fonte: G1 Bahia
Siga o Acorda Cidade no Google Notícias e receba os principais destaques do dia. Participe também dos nossos grupos no WhatsApp e Telegram