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Investigada pela Operação Ragnarok, a Hempcare prometeu devolver os R$ 48,7 milhões investidos pelo Consórcio Nordeste nos 300 respiradores mecânicos que foram adquiridos pelos estados nordestinos, mas não foram entregues. Porém, o ressarcimento da quantia ganhou um obstáculo.
Em entrevista exclusiva à TV Bahia, o empresário Paulo de Tarso, sócio da Biogeoenergy, empresa que fabricaria os equipamentos, declarou que gastou com insumos os cerca de R$ 24 milhões que recebeu de Cristiana Prestes, a dona da Hempcare, que intermediou o processo.
Paulo de Tarso afirmou que não devolverá o valor investido. O empresário pontua que gastou totalmente os R$ 24 milhões para poder começar a fabricar os respiradores e acusa o Consórcio Nordeste de não aceitar os equipamentos produzidos pela Biogeoenergy.
"Primeiro, quando uma empresa recebe dinheiro, coloca no fluxo de caixa. Evidente que o dinheiro foi utilizado para compra de peças para respiradores, para tudo. O dinheiro pertence à empresa, que utiliza no que bem entender. Utilizamos no que bem entendemos. Compramos muitas peças, bastante equipamento. Todo o dinheiro foi gasto com ventilador e caixa da empresa", disse.
"A empresa tem margem de lucro. Não fico com o dinheiro parado aguardando alguma coisa. Não tenho que devolver dinheiro para o Consórcio do Nordeste. Primeiro porque não fiz negócio com o Consórcio do Nordeste. Tenho que entregar os respiradores. Prometi entregar para o governo do estado, que se recusou a receber", afirmou o empresário.
Na semana passada, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) afirmou que os respiradores produzidos pela Biogeoenergy não possuem registro. Ou seja, não há no órgão nenhum pedido em análise ou qualquer tipo de trâmite. Esse protocolo, conforme explica a Anvisa, é um dos primeiros passos para a certificação de um produto.
Embora não tenha a autorização da Anvisa para produzir os respiradores, Paulo de Tarso garante que os equipamentos produzidos pela Biogeonergy possuem qualidade compatível aos aparelhos vendidos por empresas de fora do Brasil.
"O que um respirador precisa? Seis ou sete itens. O nosso respirador atende a seis ou sete itens. As pessoas precisam entender que nosso respirador não tem design moderno, tem design simples. Mas tem tecnologia avançada. Não tem nada defasado. As pessoas estão vendo nosso equipamento e dizendo que é uma revolução. Pegamos uma Ferrari e fizemos no modelo de um Fiat. Fizemos um negócio para ter redução de custo", disse.
"Nosso respirador passou no teste da Santa Casa, foi sabatinado pelo Ministério da Saúde e pelo Exército, que estão sabatinando respiradores no Brasil inteirinho. Ao contrário do governo da Bahia, os outros governos estão pedindo meu equipamento, para fazer demonstrações, testes. O equipamento foi ajustado para atender todas as necessidades de UTI e CTI", completou.
Paulo de Tarso foi uma das três pessoas detidas na última semana na operação Ragnarok, conduzida pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA). Além do empresário, foram detidos a dona da Hempcare, Cristiana Prestes, e o sócio dela, Luiz Henrique Ramos. O trio foi liberado na sexta-feira, após prestar depoimentos.
Depoimento de Cristiana Prestes
O G1 e a TV Bahia tiveram acesso ao depoimento de Cristiana Prestes, que foi presa na semana passada e liberada na última sexta-feira (5). À Polícia Civil, ela contou que a Hempcare nunca havia realizado vendas de respiradores anteriormente. A empresa, que possuía apenas dois funcionários, era especializada na fabricação, distribuição e representação de medicamentos à base de cannabis.
Com o início da pandemia, um grupo de aplicativo de mensagens reuniu empresários do ramo da Saúde, e Cristiana Prestes se interessou na importação de respiradores. Neste momento, passou a ter contato com Fernando Galante e Cléber Isaac, intermediadores que se dispuseram a ajudar no processo.
Com o auxílio dos dois, a Hempcare conseguiu um contrato com o Consórcio Nordeste para o fornecimento de 300 respiradores, dos quais 60 seriam para a Bahia e 30 para cada um dos demais estados da região. No depoimento, ela conta que ficou surpresa com a rapidez com que o pagamento foi feito, de forma antecipada, dois dias após a assinatura do acordo, e sem a exigência de qualquer garantia.
A empresária afirma que chegou a conversar com Carlos Gabas, diretor executivo do Consórcio Nordeste. Porém, ele indicou o então secretário da Casa Civil da Bahia, Bruno Dauster, como responsável pela condução das negociações.
"O Consórcio Nordeste teve pouca autonomia no processo de compra dos ventiladores pulmonares, ficando responsável apenas pelo pagamento após formalização do contrato, bem como por organizar a logística para futura distribuição dos equipamentos", declarou a investigada.
“A interrogada ficou surpresa, pelo motivo de ter sido muito simples o trâmite para um contrato de valor tão alto, vez que agiram como se tivessem adquirindo bem de valor muito menor”, diz o depoimento.
Segundo a depoente, Fernando Galante recebeu, pela intermediação do contato com o Consórcio Nordeste, R$ 9 milhões, na conta da empresa Gespar. Já Cleber Isaac, apontado no depoimento como representante do governo da Bahia, recebeu R$ 3 milhões. Carlos Kerbes recebeu um valor entre R$ 400 mil ou R$ 500 mil para auxiliar com a negociação junto à empresa chinesa.
Com o contrato do Consórcio Nordeste em mãos, Cristiana Prestes assinou um vínculo com uma fábrica de ventiladores localizada em Guangzhou, na China. Ela afirma que o acordo foi firmado por meio da empresa MCC8. Em documento endereçado à Polícia Civil da Bahia, contudo, a fábrica chinesa afirma que não tem qualificação para fabricar respiradores.
Questionada sobre a negativa da fábrica chinesa, a empresária da Hempcare afirma que Carlos Kerbes, indicado por Dauster para ajudar no processo, participou da intermediação com a MCC8. Kerbes é apontado como sócio do irmão de Bruno Dauster, que na última sexta-feira alegou problemas pessoais e pediu exoneração do cargo no governo baiano.
No depoimento, Cristiana Prestes diz que realizou uma inspeção nos respiradores que seriam comprados junto com a empresa chinesa, e que os equipamentos apresentavam um defeito na válvula pneumática. O reparo ficaria na ordem de sete mil dólares por aparelho. Com o problema, ela passou a procurar outros equipamentos, mas esbarrou no aumento dos preços.
Ao expor a situação para Dauster, a empresária afirma que recebeu a orientação para propor um aditivo, o que permitiria seguir com a compra de 300 respiradores chineses. Porém, ela apresentou um "plano B", que seria a compra dos respiradores com a Biogeoenergy.
"O Sr. Bruno Dauster sugeriu que a interrogada realizasse um aditivo contratual para que fosse aumentado o valor e para que fosse adquirida a mesma quantidade de máquinas. Que o valor inicial de cada máquina com empresa chinesa foi de 23 mil dólares, logo depois ocorreu aumento para 27 mil dólares e, por final, chegou ao valor de 35 mil dólares. A interrogada disse para o Sr. Bruno Dauster que 'não estuprar o Governo dessa maneira', e, por isso, sugeriu que fosse realizada a compra dos produtos nacionais", diz o depoimento.
Cristiana Prestes conta que Bruno Dauster teria concordado com a mudança, e que, como os respiradores nacionais eram mais baratos, a Hempcare poderia aumentar o número de equipamentos fornecidos com o mesmo valor já pago pelo Consórcio do Nordeste. A empresária afirma que procedeu com o pagamento de R$ 24 milhões para a Biogeoenergy produzir os aparelhos em três parcelas, a primeira dela em R$ 19 milhões.
Dauster chegou a pedir mais 300 respiradores do mesmo modelo, mas voltou atrás após uma mensagem postada nas redes sociais pelo secretário de Saúde do estado, Fábio Vilas-Boas, que destacava que os ventiladores produzidos no Brasil não tinham capacidade para atender pacientes diagnosticados com coronavírus.
A empresária relata que Dauster lhe enviou mensagem para informar a mudança de postura em relação aos respiradores brasileiros.
"Amiga, errei. O BR2 não foi aprovado", teria dito o ex-secretário, segundo o depoimento.
Com a reprovação do equipamento, Cleber Isaac sugeriu que o Senai/Cimatec fosse contratado para promover adequações nos aparelhos, o que possibilitaria a aprovação junto à Anvisa e conclusão do acordo com o Consórcio Nordeste. Com a proposta, a empresária afirma que decidiu pagar as duas parcelas restantes à Biogeoenergy, sendo repasses de R$ 1 milhão e R$ 4 milhões.
Conforme o depoimento, os ventiladores seriam entregues ao Consórcio Nordeste em duas remessas. A primeira no dia 10 de maio, a segunda no dia 29. Mas o prazo não foi cumprido. Cristiana Prestes conta que comunicou a Bruno Dauster e Carlos Garbbas que pagaria multa pelo atraso, o que corresponderia a 30 respiradores adicionais.
Cristiana Prestes conta que, no dia 29 de maio, data em que deveria concluir a entrega dos respiradores, recebeu da Biogeoenergy uma mensagem com cópia de ingresso de certificado dos respiradores nacionais na Anvisa. Uma semana depois, a empresária foi detida, juntamente com o sócio, Luiz Henrique Ramos, em Brasília.
Na quarta-feira (10), deputados dos nove estados do Nordeste criaram a Comissão Parlamentar Interestadual (CPI), que vai acompanhar e fiscalizar as ações do Consórcio Nordeste na compra de respiradores para os leitos destinados ao tratamento de pacientes com Covid-19.
O que diz Bruno Dauster
O ex-secretário Bruno Dauster divulgou nota na manhã desta quinta-feira na qual afirmou que não teve acesso ao depoimento de Cristiana Prestes e que, portanto, não se posicionaria sobre o caso. Dauster lamentou o que chamou de "politização do caso".
"Conduzi os principais projetos estruturantes do Estado da Bahia, durante seis anos, sem que pairasse qualquer dúvida quanto à minha probidade e conduta. Jamais pratiquei ou propus qualquer ato que gerasse prejuízo para o Estado. No caso que é objeto desta investigação, sempre busquei o melhor negócio para o Estado e para os cofres públicos. Portanto, não são verdadeiras as inferências que estão sendo veiculadas a meu respeito através da imprensa.
Afirmo que não tive acesso aos depoimentos e, por isso, não darei entrevistas neste momento. Desde o início, tentei evitar a politização deste caso. Lamento que se dê vazão a esse tipo de notícias que não passam de ilações e especulações. E desejo que as investigações sejam feitas no mais rápido tempo possível, pois todas as provas que serão apresentadas às autoridades, demonstrarão minha lisura durante esse processo".
O que diz Carlos Gabas
Em resposta à reportagem da TV Bahia e ao G1, Carlos Gabas disse que não teve participação na decisão e negociação da compra dos respiradores. Ele também afirmou que não conhece Cristiana Prestes, dona da Hempcare.
Ainda segundo Gabas, o Consórcio Nordeste só foi acionado após a decisão da contratação da empresa. Ele disse que as tratativas e as decisões sobre o contrato deveriam ser feitas com o Secretário da Casa Civil da Bahia, que conduzia os processos de aquisição.
Gabas ainda destacou que “ao perceber o risco de fraude ou quaisquer outros crimes contra o patrimônio público, tomamos as providências junto à Secretaria de Segurança Pública da Bahia para que se investigasse e apurasse os fatos. O Consórcio Nordeste é o maior interessado na apuração de eventuais delitos com punição dos responsáveis e a devolução dos recursos aos cofres públicos, essenciais no combate à pandemia do covid-19”.
O que diz o governo da Bahia
A Procuradoria Geral do Estado enfatiza que todas as medidas legais foram adotadas. Além disso, já existe ação na justiça em que o empresário e a empresa figuram como réus. Cabe à justiça decidir se o empresário terá que devolver ou não o dinheiro
A reportagem não conseguiu contato com Cleber Isaac e Fernando Galante até a publicação desta reportagem. Todos eles foram citados no depoimento da dona da empresa Hempcare, Cristiana Prestes.
Já Carlos Kerbes, que teria sido indicado por Dauster para ajudar no processo, irá conceder uma entrevista à reportagem da TV Bahia ainda nesta quinta-feira por meio de advogado.
Fonte: G1
Dona de empresa diz que negociou compra de respiradores com Bruno Dauster