Por Vladimir Aras
Em Levítico 19:15, lemos: “Não cometerás injustiça no julgamento. Não farás acepção de pessoas com relação ao pobre, nem te deixarás levar por preferência pelo que tem poder: segundo a justiça julgarás o teu próximo”.
Essa lei milenar sobre a deontologia judiciária, válida entre vários povos e religiões, voltou ao centro das preocupações dos ministros da Justiça europeus. O Conselho da Europa (CoE) aprovou esta semana em Sófia sua nova estratégia (action plan) para os próximos cinco anos (até 2021), focada na promoção da independência e da imparcialidade do Judiciário, dois fundamentos do devido processo legal.
São objetivos desse planejamento estratégico:
• establishing mechanisms to fully implement member states’ obligations under the European Convention on Human Rights to guarantee access to an independent and impartial tribunal;
• improving or establishing formal legal guarantees of judicial independence and impartiality and putting in place the necessary structures, policies and practices to ensure that these guarantees are respected and that the judicial branch functions properly;
• safeguarding and strengthening the judiciary in its relations with the executive and legislature;
• reinforcing the independence of the prosecution service;
• building public trust in the judiciary, including by taking society as a whole into account in the composition of tribunals and the judiciary
Cuidarei do objetivo de garantir a independência do Ministério Público (“reinforcing the independence of the prosecution service”).
A autonomia do Ministério Público (prosecution service), no âmbito de sistemas processuais acusatórios (adversarial systems), é um dos fatores que contribui para assegurar a independência judicial e a imparcialidade dos juízes.
De fato, no que concerne ao modelo acusatório, a separação das funções do Ministério Público e do Judiciário (artigo 129, I, CF) é o ponto de partida para atingir a meta de garantir a independência e a imparcialidade dos juízes na persecução penal, afastando o julgador da tarefa de investigar e acusar. Juiz não investiga, não acusa. Juiz não é parte. Juiz julga.
Sempre que os juízes não se ocupam da investigação criminal ou da seleção e gestão da prova, podem decidir de forma imparcial e garantir julgamentos justos para acusados de crimes pelo Ministério Público. No sistema adversarial, a confrontação deve existir entre as partes, isto é, a acusação (MP) e a defesa, funcionando o juiz como terceiro imparcial. A Polícia “judiciária” é órgão auxiliar do Ministério Público na investigação criminal.
Já que no Brasil existe Ministério Publico autônomo, com membros dotados de independência funcional, conforme os artigos 127 a 129 da Constituição, não há necessidade de conferir autonomia semelhante à Polícia, como erradamente se pretende com a PEC 412.
É inimaginável dar autonomia a um braço armado do Estado, a Polícia, por sobre a autoridade do poder eleito, o Executivo. Como qualquer corporação legitimada ao uso da força, a Polícia deve funcionar sob estrito controle do poder civil (o povo, o Poder Executivo e o Parlamento), sujeitando-se ainda, no contexto brasileiro, ao controle externo do Ministério Público (artigo 129, CF), que abrange a função de coordenar as investigações criminais realizada pela Polícia.
Assim, no Conselho da Europa, a autonomia do Ministério Público tem sido vista como uma das maneiras de alcançar ou reforçar a independência dos juízes e como medida essencial ao fortalecimento do Estado de Direito. Na estratégia quinquenal do COE, três ações são dedicadas ao Ministério Público:
Action 3.1
Provide appropriate legal guarantees and measures for the recruitment, career development and security of employment or tenure of prosecutors
Action 3.2
Ensure that individual prosecutors are not subject to undue or illegal pressure from outside or within the prosecution service, and that more generally the prosecution service is governed by the rule of law
Action 3.3
Prevent and combat corruption within the prosecution service and build public trust in its working.
Percebe-se que a Declaração de Sófia, do COE, sobre o papel dos juízes relaciona-se com os Princípios de Bangalore de Conduta Judicial (Bangalore Principles of Judicial Conduct), de 2002, cujos valores primordiais são a independência e a imparcialidade:
Valor 1
INDEPENDÊNCIA
Princípio: A independência judicial é um pressuposto do Estado de Direito e uma garantia fundamental de um julgamento justo. Consequentemente, o juiz deve apoiar a independência judicial e ser exemplo dela nos aspectos individual e institucional.
Aplicação:
1.1 Um juiz deve exercer a função judicial de modo independente, com base na avaliação dos fatos e de acordo com sua consciente interpretação da lei, livre de qualquer influência estranha, induções, pressões, ameaças ou interferência, direta ou indireta, de qualquer tipo ou razão.
1.2 Um juiz deverá ser independente com relação à sociedade em geral e com relação às partes na lide que terá de julgar.
1.3 Um juiz não só deverá ser livre de relações indevidas e da influência dos poderes executivo e legislativo, mas deve também parecer imune a elas, a um observador isento.
1.4 Ao desempenhar a função judicial, um juiz deverá fazê-lo de modo independente dos colegas quanto à decisão que é obrigado a tomar independentemente.
1.5 Um juiz deve promover e garantir proteção para o desempenho das obrigações judiciais de modo a manter e fortalecer a independência institucional e operacional doJudiciário.
1.6 Um juiz deve conduzir-se conforme altos padrões de conduta judicial e defendê-los de modo fortalecer a confiança da população no Judiciário, a qual é fundamental para manutenção da independência judicial.
O segundo Valor é a imparcialidade:
Valor 2
IMPARCIALIDADE
Princípio:
A imparcialidade é essencial para o apropriado cumprimento dos deveres do cargo de juiz. Aplica-se não somente à decisão, mas também ao processo de tomada de decisão.
Aplicação:
2.1 Um juiz deve cumprir ssuas obrigações sem favorecimento, parcialidade ou preconceito.
2.2 Um juiz deve conduzir-se, tanto nos tribunais quanto fora deles, de forma a garantir e aumentar a confiança da sociedade, da comunidade forense e dos litigantes na imparcialidade do Judiciário.
2.3 Um juiz deve, tanto quanto possível, conduzir-se de modo a minimizar as ocasiões que tornem necessário seu afastamento de uma causa.
2.4 Um juiz não deve intencionalmente, quando o procedimento é prévio ou poderia sê-lo, fazer qualquer comentário que possa razoavelmente ser considerado como capaz de afetar o resultado de tal procedimento ou pôr em risco a decisão justa e devida. Nem deve o juiz fazer qualquer comentário em público, ou de outra maneira ,que possa afetar o julgamento justo de qualquer pessoa ou assunto.
2.5 Um juiz deve considerar-se suspeito ou impedido de participar em qualquer caso em que não é habilitado a decidir o processo imparcialmente ou naqueles em que pode parecer a um observador sensato como não habilitado a decidir imparcialmente.Tais procedimentos incluem, mas não se limitam a exemplos em que:
2.5.1 o juiz manifestou parcialidade ou prejulgamento com respeito a uma parte ouc tem conhecimento pessoal dos itens de prova contestados, relativos aos outros;
2.5.2 o juiz previamente atuou como advogado ou foi testemunha presencial no caso em julgamento;
2.5.3 o juiz, ou um membro da família do juiz, tem interesse econômico no resultado do lide;
Na condição de que a desqualificação não será requerida se outro tribunal não puderser constituído para julgar o caso, ou devido a circunstâncias urgentes, a não-atuaçãoprocessual pode conduzir a uma séria injustiça.
Tais questões não são estranhas aos tratados internacionais vigentes no Brasil. A Convenção Americana de Direitos Humanos, concluída em San José, em 1969, consagra tais princípios ao assegurar que “Toda pessoa tem direito a um processo com as devidas garantias e com uma razoável duração julgado por um tribunal competente, independente e imparcial, previamente estabelecido pela lei, na busca de provas em causa de natureza penal ou para determinação de seus direitos e obrigações de natureza, civil, trabalhista, fiscal ou qualquer outra natureza.”(art.8.1).
O art. 14.1 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, determina, entre outras coisas, que “Todas as pessoas serão iguais perante as cortes e tribunais. Na determinação de qualquer acusação criminal contra si ou seus direitos e obrigações discutidos em um processo todos terão o direito a um julgamento público e justo por um tribunal competente, independente e imparcial estabelecido pela lei.”
Tais preceitos têm força de lei no Brasil e devem ser observados nos casos concretos, a fim de assegurar o respeito ao devido processo legal. A existência de um juiz independente e imparcial é uma garantia do cidadão, seja ele acusado ou vítima.