Direito processual penal

Quarta crítica: o uso da colaboração é confissão de incompetência do Estado na investigação criminal

Se o Poder Legislativo instituiu um novo meio de obtenção de prova nada de absurdo há em utilizá-lo, se o método for constitucional e convencional.

Por Vladimir Aras

Por que seria sinal de incompetência valer-se dela? Existiria por acaso um rol absolutamente limitado de meios probatórios que não pudesse ser ampliado por lei, nem por obra da ciência mais avançada? O limite do Estado é a legalidade. Se o Poder Legislativo instituiu um novo meio de obtenção de prova nada de absurdo há em utilizá-lo, se o método for constitucional e convencional.

Essas crítica não tem sentido e poderia ser usada, por exemplo, em referencia à prova testemunhal, cuja credibilidade é em geral muito baixa. Não seria temerário aceitar uma condenação criminal tão-somente na prova oral?

A investigação criminal, notadamente a policial, sempre dependeu de informantes. Não há inteligência de segurança pública ou de Estado que não se apoie em fontes humanas. A regulamentação legal da colaboração premiada é, na verdade, um avanço legislativo em prol da transparência e do acertamento desse velho modelo de informantes policiais. Antes, o informante coautor ou partícipe do crime ficava imune, sem qualquer controle do Ministério Público ou do Poder Judiciário, e sem conhecimento da defesa. Agora, o colaborador, seja ele coautor ou participe do crime, também deve prestar contas à Justiça, e sua cooperação é parametrizada e sopesada em juízo, e submetida ao escrutínio defensivo.

Promover acordos de colaboração premiada não envergonha ninguém. Falência do Estado haverá quando esta forma de organização social for incapaz de defender os direitos dos seus cidadãos (vítimas) violados em grande medida por ações doutros cidadãos (autores de crimes), que, sem esse instrumento, ficariam impunes.

Lembremos que essas modernas técnicas especiais de investigação (TEI) são reguladas em tratados concluídos sob os auspícios de organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização dos Estados Americanos (OEA), a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Conselho da Europa (COE), e a União Europeia (UE), sendo também objeto da Recomendação 31 do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI).

É preciso marcar esse ponto. Essas entidades supranacionais profligam ideais democráticos, defendem o Estado de Direito e o rule of law. São organismos, como a ONU, que denunciam a tortura e violações a direitos humanos. Por que razão estimulariam os países-membros a utilizar essas TEI se fossem ferramentas autoritárias ou de exceção? Por que aprovariam tratados internacionais com esse propósito espúrio? De fato, não há lógica alguma. Por isso mesmo, as TEI estão presentes na Convenção de Mérida (UNCAC), na Convenção de Palermo (UNTOC), no Segundo Protocolo Adicional à Convenção Europeia sobre MLA (CETS 182, concluído em 2001), na Convenção Penal sobre a Corrupção de 1999 (art. 23) e ainda a Convenção de Varsóvia de 2005 (art. 7º, §3º).

O século XIX acabou. As modernas e emergentes formas de criminalidade são imunes à prova testemunhal, que às vezes nem existe, porque não há testemunhas das infrações ou porque as testemunhas que existiam foram mortas ou neutralizadas mediante ameaças ou corrupção.

O direito processual não parou no tempo. Desde que inventaram o telefone, o Estado passou a fazer interceptações para fins de investigação criminal. Com o surgimento das novas tecnologias da informação, desenvolveu-se a escuta telemática. Teríamos de continuar a usar meras testemunhas (“a prostituta das provas”) para a prova de complexos esquemas criminosos, com todos os problemas que a neurociência indica? Vamos confiar exclusivamente em pessoas com memórias implantadas ou falsas memórias? E essa prova oral, frágil e volátil, será usada para deslindar a autoria e os intricados mecanismos dos crimes graves e da criminalidade econômica ou da criminalidade organizada e violenta? A pretexto de sermos livre-pensadores, não podemos ser ingênuos.

O direito não é estático. Já que agora existe a Internet e que esta é usada para o cometimento de cibercrimes cada vez mais sofisticados, temos de manejar interceptações digitais e nos adaptar a coleta de dados em redes sociais e a decifrar a criptografia de mensageiros eletrônicos. A prova testemunhal não basta; a prova documental não existe em certos casos, ou não será possível chegar a ela por outro meio.

Enfim, já que se cristalizou a “omertà” como um compromisso de sigilo entre criminosos, temos os “pentiti” ou arrependidos, como a Itália denomina os réus colaboradores. Já que se inventou o conluio entre réus para iludir a justiça (o tal “direito” de mentir…), há que se dispor de estímulos legais para a revelação de outras provas do fato, da autoria e informações úteis à preservação de valores jurídicos relevantes, inclusive a vida de vítimas.

A colaboração premiada não se contenta com a prova oral. A corroboração deverá sempre existir e tanto melhor se for de natureza documental.

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