Cooperação internacional

Estudos sobre extradição (9): casos de dupla cidadania

No Brasil, o artigo 5º, caput, da Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros todos os direitos fundamentais, inclusive as garantias judiciais que conformam o devido processo legal.

Por Vladimir Aras

Um cidadão que goze da nacionalidade brasileira e de outra cidadania poderia ser extraditado do Brasil para esse país, ou vice-versa?

Aqui não, mas é algo que merece reflexão. Teoricamente, uma pessoa com cidadania de duas democracias poderia ser extraditada de uma jurisdição para a outra, com base em tratado ou em promessa de reciprocidade, pois em ambas tal indivíduo teria seus direitos fundamentais respeitados como cidadão local, sem qualquer distinção em relação a qualquer outro compatriota. Ou seja, essa pessoa não seria “estrangeira” no Estado de destino (requerente), nem no Estado de origem (requerido). Estaria albergado pela Constituição e pelos tratados de direitos humanos de que os países em questão fossem signatários.

No Brasil, o artigo 5º, caput, da Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros todos os direitos fundamentais, inclusive as garantias judiciais que conformam o devido processo legal. Assim, no que tange às garantias judiciais no processo penal não há qualquer diferença de tratamento entre brasileiros e estrangeiros.

No blog, tratei de “O caso Hoerig“, que parece ter as premissas adequadas para o teste da tese da possibilidade de extradição de brasileiros com dupla cidadania. Trata-se, teoricamente, de cidadã americana e brasileira. Contudo, admito que esta seria uma alegação de difícil aceitação pelo STF, em função da cláusula do artigo 5º, inciso LI, da Constituição, isto é, a exceção de nacionalidade.

Há que se ponderar, porém, que vivemos na comunidade global de Estados Constitucionais Cooperativos de que fala Peter Häberle, que, para nós, resulta, entre outros preceitos, dos incisos II e IX do artigo 4º, da Carta de 1988, segundo os quais o Brasil rege-se nas suas relações internacionais pela prevalência dos direitos humanos (de acusados, das vítimas e da sociedade) e pela cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Mesmo assim, devido à sua literalidade, a atual regra constitucional da inextraditabilidade de nacionais teria de ser temperada pela Suprema Corte, mutação que não se vislumbra no horizonte de cogitações desse tribunal.

Aliás, no HC 83.113/DF, o ministro Celso de Mello deu sinais de que cidadãos brasileiros com dupla cidadania não podem ser extraditados para o outro país de sua nacionalidade. Nesse julgado de 2003, discutiu-se o pedido de extradição de uma cidadão luso-brasileira, formulado por Portugal. Entretanto, na questão de ordem nesse HC 81.113/DF, julgado em 26/03/2003, os ministros Nelson Jobim e Carlos Velloso do STF anunciaram que pretendiam examinar com mais profundidade “a questão relativa à situação jurídica de ser extraditável brasileiro com dupla nacionalidade“.

Para Canotilho, mutação constitucional é “a revisão informal do compromisso político formalmente plasmado na Constituição sem alteração do texto constitucional. Em termos incisivos: muda o sentido sem mudar o texto”. Haveria um cenário jurídico-político favorável a essa mutação?

Vejamos as premissas: a efetividade da cláusula democrática e a independência do Judiciário do Estado requerente da extradição.

No âmbito do Mercosul – que reúne Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela (como membros plenos) e Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Peru e Suriname (como Estados associados) – há uma imposição democrática para a integração. Cuida-se do Protocolo de Ushuaia, de 1998, que compõe o Tratado de Assunção, que constituiu o bloco regional. No espaço jurídico da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), o Protocolo de Georgetown, de 2010, instituiu o mesmo compromisso democrático.

Eis o que consta do Protocolo de Ushuaia, do Mercosul:

“Art. 1º. A plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos processos de integração entre os Estados Partes do presente Protocolo.”

O artigo 11 do Acordo de Extradição do Mercosul (Decreto 4.975/2004) diz que “a nacionalidade da pessoa reclamada não poderá ser invocada para denegar a extradição, salvo disposição constitucional em contrário“. Logo, conclui-se que os Estados do Mercosul podem extraditar seus nacionais, salvo quando exista proibição constitucional. É o caso do Brasil, que não extradita nacionais, mas não é o do Paraguai nem o da Argentina, países que extraditam os seus cidadãos.

Nessas comunidades supranacionais, a vigência do Estado de Direito, a independência do Judiciário e e a autonomia funcional do Ministério Público podem servir de condição para a validação de pedidos de extradição ou de entrega de indivíduos, mesmo os de dupla cidadania. Seria então viável a extradição de nacionais entre (verdadeiras) democracias. Se a cláusula do compromisso democrático não for observada de fato e de direito, pedidos de cooperação que incidam sobre pessoas (especialmente nacionais) podem ser restringidos em favor do bem jurídico devido processo legal e das garantias judiciais a ele inerentes.

Dizendo de outra forma: a extradição de um nacional, de um conacional ou de um estrangeiro só deverá ser admitida se todos os países em questão forem signatários da Convenção Americana de Direitos Humanos ou da Convenção Europeia de Direitos Humanos ou do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e se forem Estados de Direito, nos quais sejam concretamente respeitadas as garantias do devido processo legal e da ampla defesa.

Isto para as situações de dupla nacionalidade real, não fraudulenta.

Noutro sentido, a dupla cidadania já foi objeto de exame da Corte Internacional de Justiça (CIJ), no caso entre o Principado de Liechtenstein e a República da Guatenala, de 6 de abril de 1955 (caso Nottebohm), onde se discutiu a prevalência fática de uma nacionalidade sobre a outra (nacionalidade efetiva).

No caso Nottebohm, discutia-se se a Guatemala podia rechaçar a cidadania de Friedrich Nottebohm, que sendo cidadão alemão por nascimento, naturalizou-se no Principado de Liechtenstein em 1939, durante a Segunda Guerra Mundial. Ao regressar à Guatemala, foi preso e extraditado para os Estados Unidos, porque foi considerado cidadão de Estado inimigo (Alemanha). Em 1951, Liechtenstein, que fora neutro na 2ª Grande Guerra, ingressou com processo na CIJ contra a Guatemala.

A Corte entendeu que “la vinculación de hecho existente entre Nottebohm y Liechtenstein en la época que precedió, acompañó y siguió a su naturalización no resulta lo suficientemente estrecha y preponderante en relación con la vinculación que pueda existir entre él y ese otro Estado que permita considerar la nacionalidad que le fue conferida como efectiva; como la expresión jurídica de un hecho social de vinculación preexistente, o que se constituya luego.”

Afirmou ainda a Corte da Haia que a nacionalidade é “un vínculo legal que tiene como base un hecho social” e exige uma “genuina conexión de existencia, intereses y sentimientos, junto con la existencia de recíprocos derechos y deberes“, implicando a naturalização a ruptura de um vínculo de nacionalidade e lealdade para estabelecer outro.

Essa compreensão se reflete nos textos dos tratados de extradição atuais, como se vê no artigo 11, §4º, do Acordo do Mercosul, segundo o qual “a condição de nacional será determinada pela legislação do Estado Parte requerido, apreciada quando do momento da apresentação do pedido de extradição, e sempre que a nacionalidade não tenha sido adquirida com o propósito fraudulento de impedi-la“.

Com a conformação de novos espaços supranacionais de cidadania (na Europa, no Caribe e na América do Sul, por exemplo), passa a ter relevância a questão da extensão, ou não, da reserva de nacionalidade a cidadãos dessas comunidades. Cidadãos europeus e caribenhos são entregáveis dentro dos seus respectivos blocos regionais. Cidadãos sul-americanos também deveriam sê-lo? No nosso contexto, a situação se mostra ainda mais relevante no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), especialmente para brasileiros e portugueses beneficiários do Estatuto da Igualdade.

Os portugueses residentes no País podem ter estatuto especial no Brasil, em função do artigo 12 da Constituição, que lhes assegura, se houver reciprocidade em favor de brasileiros, todos os direitos inerentes ao brasileiro, salvo os casos previstos na Constituição de 1988. Esse artigo fundamenta o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Federativa do Brasil e a República Portuguesa, celebrado em Porto Seguro, em 22 de abril de 2000 (Decreto 3.927/2001), cujo artigo 18 assim dispõe:

“Art. 18. Os brasileiros e portugueses beneficiários do estatuto da igualdade ficam submetidos à lei penal do Estado de residência nas mesmas condições em que os respectivos nacionais e não estão sujeitos à extradição, salvo se requerida pelo Governo do Estado da nacionalidade“.

Disto resulta que portugueses residentes no Brasil e que gozem do estatuto da igualdade, tal como os brasileiros, não podem ser extraditados para o estrangeiro, salvo para o próprio país de origem, isto é, Portugal, tendo por base a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP (Decreto 7.935/2013) e o Tratado de Porto Seguro, de 2000.

No que tange a brasileiros em Portugal, estes podem ser entregues no âmbito da União Europeia para cumprimento de um mandado europeu de captura, porque os portugueses também são assim entregáveis. Ademais, os brasileiros em Portugal também podem ser extraditados para o Brasil por qualquer crime, e, tal como os nacionais portugueses, ainda podem ser extraditados para qualquer outro Estado (país terceiro), quando acusados de terrorismo ou de envolvimento em criminalidade organizada transacional, na forma do art. 33 da Constituição portuguesa de 1976, reformada nesta parte em 1997.

Várias nuances, várias ideias em confronto. Tema árido, sem dúvida. Não há respostas prontas.

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