Por Vladimir Aras
Na Operação Furacão (Inquérito 2424/RJ, rel. Min. Cézar Peluso), o STF decidiu que a não transcrição cabal de escutas telefônicas não ofendia o direito de defesa. Este tema voltou a lume – e com grande alarde – em fevereiro de 2013, quando a mesma Suprema Corte, agora na Operação Pororoca, aparentemente deu um passo atrás e, seguindo voto do ministro Marco Aurélio, mandou transcrever integralmente escutas realizadas na investigação que resultou na AP 508/AP. Tratei desse vaivém neste post: “Grampos telefônicos: Pororoca contra Furacão“.
O acórdão do agravo regimental na AP 508/AP ficou assim ementado:
INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA – MÍDIA – DEGRAVAÇÃO. A degravação consubstancia formalidade essencial a que os dados alvo da interceptação sejam considerados como prova – artigo 6º, § 1º, da Lei nº 9.296/96. (AP 508 AgR, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 07/02/2013)
Na época, muita gente sustentava que o Supremo Tribunal mudara de posição. Eu dizia que não, embora não tivesse nenhuma informação privilegiada ou maior capacidade de percepção que outros juscritores. Assim concluí porque vi a sessão do STF. Na ocasião, indaguei: “que rumo deve a Justiça criminal seguir neste tema das transcrições de grampos: os ventos implacáveis do Furacão ou as águas turbulentas da Pororoca? Aposto na ventania. O precedente do Inq 2424/RJ continua a valer. O resto é miragem.”
De fato, a miragem se desfez em agosto de 2013, quando ao julgar o HC, o ministro Gilmar Mendes indeferiu liminar pretendida por pessoa investigada na Operação Navalha por peculato e associação criminosa (quadrilha). Os advogados de R.C.G. pediram ao STF o trancamento da ação penal que corria no Superior Tribunal de Justiça, alegando cerceamento de defesa. Ao apreciar a liminar, Gilmar Mendes reiterou a posição da Corte segundo a qual não é obrigatória a degravação de todas as interceptações telefônicas para subsidiar a denúncia e reafirmou que basta que o juiz forneça ao acusado cópia de todas as interceptações colhidas. Por fim, afastou a alegação de nulidade processual, invocando velha regra “pas de nulité sans grief“, inserida há mais de 70 anos no artigo 563 do CPP:
Art. 563. Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa.
Em seguida, o ministro asseverou que a “Corte Suprema já tivera oportunidade, por diversas vezes, de assentar a prescindibilidade de degravação de todas as conversas colhidas nas interceptações telefônicas para fins de oferecimento da denúncia. O que afasta, em tese, a alegação de eventual cerceamento de defesa destacada pelos impetrantes”. Para não deixar dúvidas, Gilmar Mendes listou uma série de ementas em tal sentido, das quais ora transcrevo apenas (!) a parte relevante:
“É desnecessária a juntada do conteúdo integral das degravações das escutas telefônicas realizadas nos autos do inquérito no qual são investigados os ora Pacientes, pois basta que se tenham degravados os excertos necessários ao embasamento da denúncia oferecida, não configurando, essa restrição, ofensa ao princípio do devido processo legal. Precedentes. 6. Writ denegado”. (HC 105.527/DF, Relatora Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, unânime, DJe 13.5.2011).
“No julgamento do HC 91.207-MC/RJ, Rel. para o acórdão Min. Cármen Lúcia, esta Corte assentou ser desnecessária a juntada do conteúdo integral das degravações das escutas telefônicas, sendo bastante que se tenham degravados os excertos necessários ao embasamento da denúncia oferecida. III – Impossibilidade de reexame do conjunto fático probatório. Súmula 279 do STF. IV – Agravo regimental improvido”. (AI 685.878/RJ AgR, Relator Min. Rircardo Lewandowski, Primeira Turma, maioria, DJe 12.6.2009)
“HABEAS CORPUS. ‘OPERAÇÃO ANACONDA’. DEGRAVAÇÃO PARCIAL DE CONVERSAS TELEFÔNICAS. PROVA APTA A EMBASAR A DENÚNCIA. A degravação parcial de conversas telefônicas é prova perfeitamente apta a embasar a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal. Precedentes. A disponibilidade, tanto para a defesa, como para a acusação, da integralidade das gravações afasta qualquer alegação de cerceamento de defesa. […]. Habeas corpus indeferido”. (HC 85.206/SP, Relator Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, unânime, DJ 3.3.2006).
Mas, tenham ou não tenham razão, os advogados são incansáveis (e isto é bom!), e, no HC 117.000/RJ, remanescente da Operação Furacão, o tema voltou à tona. Era agosto de 2013 e o ministro Marco Aurélio, que divergira na Operação Pororoca, submeteu-se à maioria, em decisão colegiada que ficou assim ementada:
INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA – DEGRAVAÇÃO DE FITA – FORMALIDADE ESSENCIAL – SUPLANTAÇÃO – PRECEDENTE – PRONUNCIAMENTO DO PLENÁRIO – RESSALVA DE ENTENDIMENTO PESSOAL. Muito embora a ordem jurídica revele como formalidade essencial a degravação da fita referente à interceptação telefônica, expungindo-se o que não sirva à investigação criminal, o Tribunal Pleno, defrontando com a situação concreta ora colocada, concluiu de forma diversa, oportunidade na qual fiquei vencido, na companhia honrosa dos ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes. Ressalva de entendimento pessoal ante o crivo do Colegiado Maior (STF, 1ª Turma, HC 117.000/RJ, rel. Min. Marco Aurélio, j. em 13/08/2013).
No mês de abril de 2014, o STF mais uma vez debruçou-se sobre este tema que se repete como uma ladainha de uma faixa de LP riscado tocado numa vitrola velha. No Inquérito 3693/PA, seguindo voto da ministra Cármen Lúcia, o STF reiterou sua jurisprudência: “Não é necessária a transcrição integral das conversas interceptadas, desde que possibilitado ao investigado o pleno acesso a todas as conversas captadas, assim como disponibilizada a totalidade do material que, direta ou indiretamente, àquele se refira, sem prejuízo do poder do magistrado em determinar a transcrição da integralidade ou de partes do áudio“. Curiosamente, ficou vencido o ministro Marco Aurélio, na companhia do ministro Celso de Mello. Ambos queriam – advinhe – a degravação integral das escutas.
Esperemos agora que este assunto seja superado. No já mencionado HC 117.000/RJ, julgado em 2013, o paciente, um ex-colega de MPF, pedia que fosse determinada a transcrição de 40 mil horas de interceptação telefônica. Isto é impossível, além de desnecessário. Ao votar, o ministro Luís Roberto Barroso pontificou que, quando um advogado recebe cópia da mídia gravada, pode identificar se há erros de transcrição e pode, ele mesmo, transcrever as partes relevantes para a defesa de seu cliente. Não se pode exigir que o Estado, diante de recursos humanos e financeiros tão escassos, seja compelido a isto. Registro trecho de seu voto (aqui):
“Devo dizer que acho que o garantismo, o direito de as partes bem se defenderem, não deve se degenerar numa eternização do processo, nem em uma garantia de impunidade. De modo que, se a transcrição de quarenta mil horas é faticamente impossível, acho que é imperativo trabalhar-se com essa realidade. De modo que eu não me coloco, por princípio, em uma posição diferente da que prevaleceu no Plenário, embora eu não tenha participado e queira estudar essa matéria com mais calma. Se o Ministério Público considerou as transcrições disponíveis suficientes para a acusação e cabe a ele fazer a prova, eu estou satisfeito e penso que, na medida em que o Advogado recebe a mídia e pode também identificar se há erro na transcrição, se há imprecisão no resumo e ele próprio transcrever as partes relevantes para a sua defesa, eu, em linha de princípio, ficaria satisfeito, porque penso que a decisão contrária poderia inviabilizar a persecução penal. Portanto, para mim, o nosso compromisso deve ser com o direito de defesa, mas não com nenhuma solução que inviabilize a persecução penal onde ela deva ocorrer.”
Escutaram? Que assim seja.