Por Vladimir Aras
Crime organizado
Esses absurdos mandados de busca coletivos
A Justiça teria expedido mandados de busca e apreensão para fuzileiros vasculharem residências no Complexo da Maré, um conjunto de bairros populares do Rio de Janeiro.
Fuzileiros navais teriam realizado buscas em residências em busca de drogas. A Justiça teria expedido mandados de busca e apreensão para fuzileiros vasculharem residências no Complexo da Maré, um conjunto de bairros populares do Rio de Janeiro.
Logo após o governo do Rio de Janeiro solicitar à União apoio de forças militares para o combate ao narcotráfico (operação de Garantia da Lei e da Ordem), a imprensa noticiou que, conforme o MPM no Rio de Janeiro:
“[…] fuzileiros navais já têm um mapeamento completo da Maré, incluindo as facções criminosas que atuam na região. Segundo ela, as tropas das Forças Armadas que vão atuar na ocupação das 15 comunidades do Complexo da Maré devem contar com o respaldo de mandados de busca e apreensão coletivos para permitir a localização de drogas e armas durante o cerco, previsto para ser colocado em prática no início de abril. A possível expedição pela Justiça Militar dos mandados coletivos, explicou a procuradora, deve-se à dificuldade de localizar endereços em meio ao aglomerado de casas erguidas em becos, sem numeração definida.” (aqui).
O Consultor Jurídico também publicou que a Polícia Civil havia obtido na Justiça Estadual mandados de busca coletivos similares para vasculhar residências nas favelas Parque União e Nova Holanda, no Rio de Janeiro (aqui e aqui)
Não está claro se a JMU também expediu tais ordens. Mas, convenhamos, busca por meio de mandados coletivos em 2014 é surreal…. Diligência investigativa deste tipo poderia ter ocorrido há 50 anos, quando o Brasil assistiu, entre atônito e anestesiado, os militares derrubarem o governo eleito e iniciarem um dos mais longos períodos de exceção da história do País.
Nos anos que se seguiram vários brasileiros (civis) foram julgados por cortes militares espalhadas pelo território brasileiro. Esses tiveram sorte. Muitos dos opositores do regime que se iniciou em 2 de abril de 1964 e só se encerrou em 1985, com a posse de José Sarney, foram torturados, foram mortos, desapareceram.
O Brasil ainda não recuperou plenamente a memória desse período sombrio, mesmo com o funcionamento de várias comissões da verdade, organizadas pela União e por Estados. No campo da punição para a realização da justiça, estamos ainda em mora, inclusive diante do sistema interamericano de direitos humanos, uma vez que, no caso Gomes Lund vs. Brasil, a Corte da Costa Rica condenou nosso País a reparações e afirmou o dever de persecução criminal do Estado brasileiro contra os responsáveis pelo desaparecimento de mais de 60 cidadãos que participariam da Guerrilha do Araguaia.
Meio século se passou. A Constituição vigente, promulgada em 1988, ainda permite que civis sejam julgados pela Justiça Militar da União em tempo de paz. Eis o que diz o artigo 124 da CF:
Art. 124. À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.
Parágrafo único. A lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar.
A norma refere-se aos crimes militares e estes podem ser cometidos por civis, de acordo com o CPM, o que amplia a competência da Justiça Militar da União. Agora, compare com o artigo 125 da CF, que regula a competência da Justiça Militar dos Estados, que só julga os policiais militares e bombeiros militares daquela unidade federada:
Art. 125.
§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.
O atual artigo 124 da CF/1988 deriva do artigo 122 da Constituição de 1967 (após o Ato Institucional 6/1969), que permitia que a JMU julgasse civis em determinadas hipóteses:
“Art. 122 – À Justiça Militar compete processar e julgar, nos crimes militares definidos em lei, os militares e as pessoas que lhes são assemelhados.
§ 1º – Esse foro especial poderá estender-se aos civis, nos casos expressos em lei para repressão de crimes contra a segurança nacional, ou às instituições militares.
Pois bem. De logo se diga que um dos temas que merece atenção do Congresso Nacional é a proposta extinção da Justiça Militar da União, mediante sua incorporação à Justiça Federal. Os números do CNJ mostram que o órgão de cúpula desse ramo do Judiciário, o Superior Tribunal Militar (STM), julga apenas 54 casos por magistrado por ano e custa anualmente 322 milhões de reais aos contribuintes, conforme dados de 2011. Isto já seria motivo de assombro e de expectativa quanto à posição do CNJ sobre o tema. Para manter a importante especialização temática da JMU, bastaria criar varas federais específicas para crimes militares. Mas este não é o ponto aqui.
O que é uma GLO?
A atuação das Forças Armadas em operações de garantia da lei e da ordem (GLO), previstas no art. 142 da Constituição Federal, é regida pela Lei Complementar no 97/99. Sua regulamentação está no Decreto 3.897/2001, que fixa as diretrizes para o emprego das Forças Armadas em operações GLO.
Segundo o Manual MD33-M-10 do Ministério da Defesa (aqui), “Operação de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO) é uma operação militar determinada pelo Presidente da República e conduzida pelas Forças Armadas de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, que tem por objetivo a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio em situações de esgotamento dos instrumentos para isso previstos no art. 144 da Constituição ou em outras em que se presuma ser possível a perturbação da ordem”.
No caso do Rio de Janeiro, a GLO foi autorizada pela presidência e pelo Ministério da Defesa, por meio da Diretriz Ministerial nº 9/2014, que fixou seus propósitos e limites.
Embora deva ser restrita e episódica, é absolutamente legal (e, no quadro atual, necessária) a atuação das Forças Armadas para ações de segurança pública, quando esgotados os meios ordinários à disposição do Estado. O problema não é a presença das Três Armas em atividades de policiamento ostensivo. O problema está na falência do modelo brasileiro de segurança pública e de organização das polícias. Todavia, este tampouco é o ponto aqui.
Para nossa conversa, três questões se impõem. E já adianto. Para mim, as três perguntas merecem respostas negativas. Vamos a elas.
1. A Justiça Militar da União pode julgar civis em tempos de paz?
Teoricamente, sim. Diferentemente da Justiça Militar dos Estados, a JMU, regulada pela Lei 8.457/2002, tem competência para julgar civis pela prática de crimes militares, aqueles descritos no artigo 9º do CPM, especialmente os dos incisos I e III (Decreto-lei 1.001/1969).
Mas há uma tendência crescente no STF de restringir tal competência da JMU, para que civis não sejam ali julgados em tempos de paz. Cito como representativo dessa inclinação o HC 105.256/PR, relatado pelo ministro Celso de Mello e julgado pelo STF em 2012. Naquela ocasião, a Corte declarou o caráter anômalo da jurisdição penal militar sobre civis em tempo de paz e invocou o direito comparado e uma sentença de 2005 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Palamara Iribarne vs. Chile, para reduzir o espectro de sua competência:
“HABEAS CORPUS” – IMPUTAÇÃO, AO PACIENTE, QUE É CIVIL, DE CRIME MILITAR EM SENTIDO IMPRÓPRIO – SUPOSTA PRÁTICA DOS DELITOS DE FALSIDADE IDEOLÓGICA (CPM, ART. 312) E DE USO DE DOCUMENTO FALSO (CPM, ART. 315) – TÍTULO DE INSCRIÇÃO DE EMBARCAÇÃO MIÚDA (TIEM) EMITIDO PELA MARINHA DO BRASIL – LICENÇA DE NATUREZA CIVIL – CARÁTER ANÔMALO DA JURISDIÇÃO PENAL MILITAR SOBRE CIVIS EM TEMPO DE PAZ – REGULAÇÃO DESSE TEMA NO PLANO DO DIREITO COMPARADO – OFENSA AO POSTULADO DO JUIZ NATURAL – INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR – PEDIDO DEFERIDO. A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA PENAL DA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO E A NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, PELOS ÓRGÃOS JUDICIÁRIOS CASTRENSES, DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO JUIZ NATURAL. – A competência penal da Justiça Militar da União não se limita, apenas, aos integrantes das Forças Armadas, nem se define, por isso mesmo, “ratione personae”. É aferível, objetivamente, a partir da subsunção do comportamento do agente – de qualquer agente, mesmo o civil, ainda que em tempo de paz – ao preceito primário incriminador consubstanciado nos tipos penais definidos em lei (o Código Penal Militar). – O foro especial da Justiça Militar da União não existe para os crimes dos militares, mas, sim, para os delitos militares, “tout court”. E o crime militar, comissível por agente militar ou, até mesmo, por civil, só existe quando o autor procede e atua nas circunstâncias taxativamente referidas pelo art. 9º do Código Penal Militar, que prevê a possibilidade jurídica de configuração de delito castrense eventualmente praticado por civil, mesmo em tempo de paz. A REGULAÇÃO DO TEMA PERTINENTE À JUSTIÇA MILITAR NO PLANO DO DIREITO COMPARADO. – Tendência que se registra, modernamente, em sistemas normativos estrangeiros, no sentido da extinção (pura e simples) de tribunais militares em tempo de paz ou, então, da exclusão de civis da jurisdição penal militar: Portugal (Constituição de 1976, art. 213, Quarta Revisão Constitucional de 1997), Argentina (Ley Federal nº 26.394/2008), Colômbia (Constituição de 1991, art. 213), Paraguai (Constituição de 1992, art. 174), México (Constituição de 1917, art. 13) e Uruguai (Constituição de 1967, art. 253, c/c Ley 18.650/2010, arts. 27 e 28), v.g.. – Uma relevante sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (“Caso Palamara Iribarne vs. Chile”, de 2005): determinação para que a República do Chile, adequando a sua legislação interna aos padrões internacionais sobre jurisdição penal militar, adote medidas com o objetivo de impedir, quaisquer que sejam as circunstâncias, que “um civil seja submetido à jurisdição dos tribunais penais militares (…)” (item nº 269, n. 14, da parte dispositiva, “Puntos Resolutivos”). – O caso “ex parte Milligan” (1866): importante “landmark ruling” da Suprema Corte dos Estados Unidos da América. O POSTULADO DO JUIZ NATURAL REPRESENTA GARANTIA CONSTITUCIONAL INDISPONÍVEL, ASSEGURADA A QUALQUER RÉU, EM SEDE DE PERSECUÇÃO PENAL, MESMO QUANDO INSTAURADA PERANTE A JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO. – É irrecusável, em nosso sistema de direito constitucional positivo – considerado o princípio do juiz natural –, que ninguém poderá ser privado de sua liberdade senão mediante julgamento pela autoridade judiciária competente. Nenhuma pessoa, em consequência, poderá ser subtraída ao seu juiz natural. A nova Constituição do Brasil, ao proclamar as liberdades públicas – que representam limitações expressivas aos poderes do Estado –, consagrou, de modo explícito, o postulado fundamental do juiz natural. O art. 5º, LIII, da Carta Política prescreve que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. (HC 105256, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 12/06/2012).
Foi acertada a decisão do STF nesse HC impetrado pela DPU contra ato do STM, tendo em vista a excepcionalidade da jurisdição penal militar, especialmente em situação de normalidade democrática. É paradoxal que, no regime democrático inaugurado em 1988, ainda seja possível que a Justiça Militar federal julgue civis, com base num Código Penal instituído pelo Decreto-lei 1.001/1969, no auge do período de exceção. A situação é grave, ainda mais porque a própria definição de crime militar e sua extensão aos civis como seus agentes é regulada pelo CPM de 1969.
Deste modo, em harmonia com a decisão da CIDH de 2005, é recomendável que a jurisdição penal militar limite-se tão-somente ao julgamento dedelitos funcionais cometidos por militares em serviço ativo e que “en ninguna circunstancia un civil se vea sometido a la jurisdicción de los tribunales penales militares”.
Mas, como veremos, a situação que comento é ainda mais grave.
2. A Justiça Militar tem competência para expedir mandados de busca e apreensão contra civis para a apuração de crimes comuns?
Mesmo em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o MPM e a Justiça Militar não têm atribuição e competência para a persecução de crimes comuns, como o tráfico de drogas (Lei 11.346/2006), a formação de milícias (art. 288-A do CP) ou a atuação de organizações criminosas (art. 2º da Lei 12.850/2013). Tais condutas não configuram crimes militares (art. 9º do CPM) e, portanto, não se sujeitam à competência da Justiça Militar da União ou dos Estados.
Não discuto se militares podem apoiar operações policiais (da Polícia Civil, da Militar estadual e da Polícia Federal ou da Polícia Rodoviária Federal). Podem. E também podem prender criminosos em flagrante, pois isto qualquer pessoa do povo pode fazer à luz do art. 302 do CPP. Em se tratando de uma GLO, a repressão a crimes comuns torna-se um dever das Forças Armadas, em apoio às Secretarias de Segurança Pública. Eis o que diz o Decreto 3.987/2001:
Art. 3º Na hipótese de emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem, objetivando a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, porque esgotados os instrumentos a isso previstos no art. 144 da Constituição, lhes incumbirá, sempre que se faça necessário, desenvolver as ações de polícia ostensiva, como as demais, de natureza preventiva ou repressiva, que se incluem na competência, constitucional e legal, das Polícias Militares, observados os termos e limites impostos, a estas últimas, pelo ordenamento jurídico.
Mas esta atribuição ampliada das FFAAnão leva à ampliação da competência da Justiça Militar. Os crimes praticados por civis (quando não abarcados pelo artigo 9º do CPM) competem à Justiça Estadual ou à Justiça Federal, e nunca às auditorias militares.
Assim, legalmente, o MPM não pode pedir e a JMU não pode expedir mandados de busca e apreensão para que unidades das Forças Armadas vasculhem domicílios em busca de drogas ou mesmo armas de fogo. Este papel é da Justiça comum, federal ou estadual, e dos respectivos ministérios públicos. Somente um juiz federal ou um juiz de Direito pode fazê-lo, em observância ao princípio do juiz natural.
3. A Justiça (qualquer uma) pode expedir mandados de busca e apreensão coletivos?
Jamais. Nenhuma Justiça pode. A busca e apreensão é uma medida de natureza probatória, destinada a recolher provas da materialidade de um delito. Recai sobre coisas ou pessoas, devendo ser autorizada por um juiz competente (o juiz natural) sempre que for necessário o ingresso em domicílio, com exceção das hipóteses de flagrante ou incidentes de desastre ou socorro cobertos pelo artigo 5º, inciso XI, da Constituição.
Para a expedição de um mandado de busca, o septuagenário CPP, em seu artigo 240 diz que a busca domiciliar ocorrerá se “fundadas razões a autorizarem” para prender criminosos, apreender coisas obtidas por meios criminosos, apreender instrumentos de crime, armas, munições e outros objetos, cartas, documentos ou elementos de prova, ou qualquer outro elemento de convicção. Como toda decisão judicial, aquela que ordena a expedição de um mandado domiciliar deve ser devidamente fundamentada (art. 93, IX, CF).
Pergunto: há fundadas razões para o ingresso de forças policiais em todos os domicílios da favela X? O Ministério Público ou a Polícia, que são, em regra, os autores de pedidos deste tipo, apontaram as razões que levam a crer que no barraco Y da viela Z existem drogas, armas ou outras provas de narcotráfico?
A pergunta não é retórica. Processo penal é garantia. E aqui estão em jogo os direitos à inviolabilidade do domicílio e à fundamentação de decisões restritivas de direitos, previstos na Constituição e em convenções internacionais. Por não ser possível, como nos Anos de Chumbo, a invasão de uma casa pela Polícia ou pelo Exército, o artigo 243 do CPP exige que o juiz indique, “o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem”, cabendo-lhe mencionar “o motivo e os fins da diligência”.
Resta saber se isto vem sendo feito por aí, não valendo a justificativa de que as casas dessas comunidades não têm números e as ruas não têm nomes.
No HC 132.952/PI, o STJ resvalou no tema, mas passou ao largo do dever de examinar a validade da prova recolhida com base em mandado de busca coletivo. No caso concreto, o paciente foi preso em janeiro de 2009, por ocasião de operação policial, após o cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar coletivo realizado em 50 (cinquenta) casas no Bairro Primavera II, pela suposta violação ao artigo 33 da Lei n. 11.343/07 e artigo 155 do Código Penal (furto de energia elétrica). Eis a ementa do acórdão, no qual mais interessa o item 4:
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS QUE OBJETIVA O RELAXAMENTO DA PRISÃO EM FLAGRANTE. CRIME DE TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTE EM CONCURSO MATERIAL COM FURTO DE ENERGIA ELÉTRICA. MANDADO DE BUSCA E APREENSÃO COLETIVO. DROGA E DINHEIRO APREENDIDOS, RESPECTIVAMENTE, NA CASA DA VIZINHA E DO PRIMO DO PACIENTE. ESTADO FLAGRANCIAL NÃO CARACTERIZADO. ARBITRAMENTO DE FIANÇA DENEGADO QUANTO AO FURTO DE ENERGIA ELÉTRICA POR FORÇA DO CONCURSO MATERIAL COM A ALUDIDA TRAFICÂNCIA. SITUAÇÃO INSUSTENTÁVEL EM VISTA DO RELAXAMENTO DO FLAGRANTE DO TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTE. ORDEM CONCEDIDA 1. Inocorrência de flagrante. A droga apreendida e o dinheiro apreendidos estavam, respectivamente, na casa da vizinha do paciente e em poder do primo do réu. Logo, embora a delação dos moradores do bairro revele signo de autoria delitiva, nem de longe tem o condão de caracterizar o estado flagrancial, devendo a imputação ser submetida ao devido processo penal, respeitado o princípio constitucional do contraditório. 2. Quando não ficarem configuradas as situações descritas no art. 302 do Código de Processo Penal, os possíveis efeitos probatórios advindos de uma diligência policial não podem ser confundidos com as consequências processuais extremas da flagrância. 3. A invocação abstrata da garantia da ordem pública é fundamento inidôneo para a decretação de custódia cautelar, porquanto os requisitos estampados no artigo 312 do Código de Processo Penal devem ser demonstrados concretamente. À luz do mesmo raciocínio, a gravidade abstrata do delito em tese praticado constitui motivação etérea que não se presta à justificação da medida constritiva. 4. Reforça a convicção acerca da inexistência do flagrante o fato de ter sido expedido mandado de busca e apreensão coletivo, sem que houvesse suspeita específica que recaísse sobre a pessoa do paciente. 5. No que diz respeito à fiança, quanto ao furto de energia elétrica, não foi concedida pelas instâncias ordinárias por força do concurso material com o suposto tráfico ilícito de entorpecente. Logo, a negativa do arbitramento da fiança não se sustenta mais, agora, que se relaxa o flagrante. 6. Ordem concedida para relaxar a prisão em flagrante, e para relaxar a prisão em flagrante, e para conceder, em relação ao furto de energia elétrica, liberdade provisória, com admonitória em primeiro grau. (STJ, 6ª Turma, HC 132952/PI, Relator: Ministro CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), Data de Julgamento: 25/06/2009).
A ofensa à inviolabilidade de domicílio e ao art. 93, IX, da CF, em função de tais mandados coletivos de busca é de tal monta, que, sem exagero, só encontra par na ordem jurídica brasileira no artigo 139, inciso V, da Constituição, que facilita a busca e apreensão domiciliar durante a vigência do estado de sítio decretado com fundamento no artigo 137, I, da Carta de 1988. E, apesar de uns black blocs aqui e ali, vivenciamos plena normalidade democrática.
Por tudo isto, mandados de busca coletivos são ilegais. Não há qualquer franquia para sua expedição no CPP ou mesmo no CPPM. O combate a crimes graves é uma preocupação de toda a sociedade. Não sou dos que, como cego ou sonhador, segue a linha supostamente garantista, tão comum na doutrina brasileira e muito diferente do que o próprio Ferrajoli sustenta. No Brasil, há uma deturpação desavergonhada dos seus postulados. Nos textos deste Blog, procuro um equilíbrio verdadeiramente garantista, que só existe quando se assegura aos suspeitos um julgamento justo, mas sem firulas, enrolações ou aplicações cerebrinas da Lei do Jeitinho, que deixam as vítimas à mercê da sorte e do sofrimento, potencializam o risco de novas vitimizações e intimidam a sociedade, cerceando direitos de seus integrantes e que são de todos.
No caso em tela, porém, não há espaço para tergiversar. Não julgo nem acuso as pessoas que pediram ou emitiram tais ordens, porque não estou aqui para isto. Fico apenas no debate jurídico. Mandados de busca coletivos são uma prática processual iníqua, que não deveria ser coonestada pelo Ministério Público. Repita-se, o processo penal é um anteparo a abusos. E não se pode fugir da legalidade para alcançar objetivos processuais ainda que nobres.
Uma coisa (a falta de nomes das ruas, vielas, becos ou números de casas) não tem nada que ver com a outra (permissão de ingresso em todas as casas de uma rua, viela ou beco). Isto é abuso. O CPP exige a identificação do alvo e fundadas suspeitas para ingresso na casa X, Y ou Z. Não se pode agir no atacado. Busca e apreensão é diligência de varejo. Local certo e determinado, suspeita fundada. Se não há inteligência sobre o local da investigação, não se pode fazer buscas domiciliares generalizadas. Ali não imperam as leis de guerra, mas sim a CF e o CPP.
Na verdade, esta coletivização dos mandados de busca é muito empregada para o enfrentamento do narcotráfico, é mais um efeito da ineficiente (e fracassada?) guerra às drogas e é também uma representação concreta da tendência à criminalização da pobreza. Dificilmente alguém imaginaria a expedição de um mandado de busca coletivo para ser executado em todas as residências da Av. Vieira Souto, no Rio, ou em todas casas de Alphaville, em Barueri/SP, ou nos apartamentos do Morro do Gato em Salvador. Nenhum juiz faria algo assim. Mas como a medida será executada pela Polícia Civil ou pelas Forças Armadas numa “comunidade” (ou favela), a sensibilidade é outra e assim muda-se o Direito.
O pretexto, como se sabe, é a pacificação das favelas, dominadas por violentas organizações criminosas, coisa difícil de ocorrer com base na força dos tanques, sem efetivas políticas públicas e promoção de melhores índices de desenvolvimento humano nessas zonas.
A lógica tortuosa de quem apoia este tipo de medida é a seguinte: – “É na minha casa? Então, não pode”. Mas, se a diligência é na casa do outro ou se a violação é assunto alheio, aí a resposta é diferente: – “Não vejo problema…”. E a Justiça é cega. Ou não?
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