Entrou em vigor em 29/jan a nova Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013). E já era tempo! Embora leis novas não resolvam todos os problemas de um país, boas leis podem sanar alguns deles. Mesmo dotados de razoáveis ferramentas legislativas e estruturais, os órgãos de prevenção e repressão da corrupção ainda não conseguiram reduzir sensivelmente os níveis de deterioração dos princípios e valores da Administração Pública brasileira. A corrupção ainda é uma gangrena, perniciosa e destrutiva.
Tanto é assim que a percepção da corrupção no setor público tem-se mantido em níveis elevados — e quase inalterados — ao longo dos últimos anos. Segundo o Corruption Perceptions Index (CPI), ou índice de percepção da corrupção, o Brasil retrocedeu da 69ª posição (rank) em 2012, para a 72ª posição em 2013 (
aqui). Pioramos! Estamos atrás de Brunei, Chile, Uruguai, Namíbia, Lesoto, Ruanda, Cabo Verde, Gana, Cuba, e de muitos outros países. Ruim…
Evolução da legislação brasileira anticorrupção
Mas está aí a Lei Anticorrupção. O novo diploma se integra a um microssistema de promoção da integridade pública, inaugurado em 1º de janeiro de 1942, com a entrada em vigor do Código Penal. Seus artigos 312 a 359 previram então uma série de crimes contra a Administração Pública, num conjunto punitivo mais completo e extenso do que os seus antecessores, o Código Criminal do Império de 1830 (
aqui) e o Código Penal dos Estados Unidos do Brazil (Decreto 847/1890). Estes códigos cuidavam do tema basicamente mediante as figuras do peculato, suborno, peita, prevaricação e concussão.
As Cartas de 1824, 1891, 1934 e 1937 (
textos aqui) já erigiam a probidade na Administração e boa gestão do tesouro público como valores a serem respeitados pelo Chefe de Estado.
Em função do regime constitucional de 1946 (art. 89, V), a Lei do Impeachment (Lei 1.079/1950) passou a considerar a corrupção (lato sensu) como razão para o impedimento do exercício de cargo público ou mandato, tendo como parâmetros a probidade na Administração, a observância da lei orçamentária e a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos (artigo 9º). Pelo menos em teoria, como convinha a uma República, não deveria valer a máxima “The king can do no wrong”.
Pouco mais de um ano depois do golpe militar de 1964, a Lei de Ação Popular (Lei 4.717/1965) regulou o controle da Administração Pública pelo cidadão-eleitor, sempre que houvesse a prática de atos lesivos ao patrimônio público. Aliás, é bom lembrar que o art. 157 da Constituição Política do Império do Brazil, de 1824, já cuidava da ação popular: “Por suborno, peita, peculato,e concussão haverá contra elles acção popular, que poderá ser intentada dentro de anno, e dia pelo proprio queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo estabelecida na Lei.”.
Em 1965, o nosso Código Eleitoral (Lei 4.737/1965), ainda em vigor, tratou da corrupção para fins eleitorais, quando criminalizou a compra de votos (art. 299, CE), punindo com até 4 anos de reclusão, quem dá, oferece, promete, solicita ou recebe, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção.
Um pouco depois veio o Decreto-lei 201/1967, que dispõe sobre os crimes funcionais de prefeitos municipais (“crimes de responsabilidade”) e suas infrações político-administrativas, instrumento essencial ainda hoje para punir maus gestores municipais.
Embora o microssistema de que tratamos não tenha sido inaugurado na fase de redemocratização do Brasil, evidentemente, o marco constitucional de 1988 não pode ser ignorado. O artigo 5º, inciso LXXIII da Constituição, tratou da ação popular; o artigo 37 instituiu princípios gerais da Administração Pública, e o artigo 129, inciso III, da CF, entregou ao Ministério Público o papel de defensor primário da probidade, cabendo-lhe “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.
Concomitantemente, a Carta de 1988 manteve a quebra da probidade como crime de responsabilidade do Chefe do Executivo (art. 85), como é da tradição brasileira, e estabeleceu no artigo 37, §4º que os atos de improbidade administrativa importariam “a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.
Ao regular as eleições, o texto constitucional de 1988 também se preocupou com o tema “corrupção” (lato sensu), pois previu a suspensão dos direitos políticos em razão da prática de improbidade administrativa (art. 15, V, CF) e criou um rigoroso regime de inelegibilidades para proteger “a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta” (art. 14, §9º, CF). Disto resultou a Lei Complementar 64/1990 ou Lei das Inelegibilidades.
No mesmo ano, foi sancionada a Lei 8.112/90, que regula o regime jurídico dos servidores públicos civis da União. Seu sistema disciplinar evidencia a preocupação do legislador com a honestidade na Administração Pública federal, tanto que prevê a pena de demissão em casos de improbidade administrativa e crimes contra a Administração Pública.
A ela seguiu-se a importante e inovadora Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), sancionada – é de se notar – pelo então presidente Fernando Collor de Mello. Com um pesadíssimo regime de sanções, ao longo dos anos a LIA sofreu sucessivos ataques para desnaturá-la, tendo no geral resistido com algumas modulações jurisprudenciais.
Na sequência histórica, com a revogação do Decreto-lei 2.300/1986, passou a vigorar a Lei de Licitações (Lei 8.666/1993), tantas vezes questionada e poucas vezes cumprida. Lei dotada de importantes dispositivos para assegurar a boa governança na aquisição de produtos e serviços e na formalização de contratos pela Administração Pública, de um lado, e por assegurar saudável concorrência entre empresários, do outro lado.
Em 1998, a Lei de Lavagem de Dinheiro, na sua versão original (Lei 9.613/1998), já inseria a corrupção (antigo inciso V) e os crimes contra a Administração Pública no rol de delitos antecedentes para fins de branqueamento de capitais. A Lei 10.467/2002 ampliou tal rol, com a inclusão dos crimes contra a Administração Pública estrangeira (antigo inciso VIII). A profunda alteração por que passou a LLD (Lei 12.683/2012) não desfez tal imbricação. Ao contrário, deixou claro que todas as formas de corrupção, sem sentido lato, são hoje antecedentes do crime de lavagem de capitais. Assim, nesta categoria estão os delitos do CP, da Lei de Licitações e também do DL 201/67.
A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000) também se insere neste cenário em que se edificou um regime de transparência e boa governança. Sua consequência penal levou à aprovação da Lei 10.028/2000, que alterou o Código Penal e o Decreto-lei 201/1967, ali introduzindo novos crimes contra as finanças públicas (arts. 359-A a 359-H, CP; e incisos XVI a XXIII do art. 1º do DL 201/67).
Pouco antes, em 1997, a Lei Geral das Eleições (Lei 9.504/1997) passou a prever no artigo 73 uma série de condutas vedadas aos agentes públicos, servidores ou não, quando tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais.
Dois anos depois, tal lei eleitoral foi aperfeiçoada, pela Lei 9.840/1999, Lei da Compra de Votos, que reforçou as sanções eleitorais contra candidatos que comprassem votos, estatuindo que “constitui captação de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive”, sob pena de multa e cassação do registro ou do diploma.
A Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010),somou-se a este arcabouço, tendo alterado a Lei das Inelegibilidades de 1990, para tornar inelegível por 8 anos quem for condenado por crime contra o patrimônio público (art. 1º, I, ‘e’, LC 64/90) ou por ato doloso de improbidade administrativa (art. 1º, I, ‘l’).
A Lei de Conflito de Interesses na Administração Pública Federal (Lei 12.813/2013), em vigor desde 1º de julho daquele ano, considera conflito de interesse “a situação gerada pelo confronto entre interesses públicos e privados, que possa comprometer o interesse coletivo ou influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública”; e informação privilegiada, “a que diz respeito a assuntos sigilosos ou aquela relevante ao processo de decisão no âmbito do Poder Executivo federal que tenha repercussão econômica ou financeira e que não seja de amplo conhecimento público”.
A atuação do Congresso Nacional na produção legislativa já refletia movimentos contra a corrupção no plano internacional. De fato, em 1996, foi firmada em Caracas a Convenção Interamericana contra a Corrupção, internalizada no Brasil quase sete anos depois, pelo Decreto 4.410/2002.
A Convenção da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE (Convenção de Paris de 1997), mais conhecida como Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais (Decreto 3.678/2000) repercutiu novamente sobre a legislação doméstica, na medida em que a Lei 10.467/2002, dela derivada, fez inserir três novos artigos no Código Penal (arts. 337-B, 337-C e 337-D), que tratam dos crimes de corrupção ativa em transação comercial internacional e tráfico de influência em transação comercial internacional e dão o conceito de funcionário público estrangeiro para fins penais.
Em 2003, veio a lume a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, conhecida por sua sigla em inglês UNCAC ou simplesmente “Convenção de Mérida” (Decreto 5.687/2006). Nela o Brasil se comprometeu a promover a transparência e o controle social da Administração Pública, assim como a criminalizar a corrupção (interna e transnacional), inclusive no setor privado (“suborno”), o peculato, o abuso de funções, o tráfico de influência, a lavagem de dinheiro, o enriquecimento ilícito, a obstrução da Justiça, e o favorecimento real. O País obrigou-se também no artigo 26 da UNCAC a prever em lei mecanismos de responsabilização das pessoas jurídicas, na esfera administrativa, civil e/ou penal.
Antes, porém, já no regime normativo da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (UNTOC ou Convenção de Palermo) (Decreto 5.015/2004), o Estado brasileiro já se obrigara nos artigos 6, 8 e 10 a criminalizar a corrupção e a lavagem de dinheiro e a instituir a responsabilização penal, civil ou administrativa de pessoas jurídicas que pratiquem tais delitos. O texto de Palermo foi firmado no ano 2000, mas o Brasil só deu os primeiros passos concretos para cumpri-la com a aprovação da Lei 12.694/2012 e da Lei 12.850/2013, a nova Lei do Crime Organizado.
Finalmente, com a entrada em vigor da Lei 12.846/2013, a Lei Anticorrupção brasileira, damos mais um passo adiante na luta contra esse flagelo que empobrece países, vilipendia populações e mata pessoas em todo o globo. A Lei dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
Algumas características da nova Lei Anticorrupção
Festejada pela Controladoria-Geral da União, como ferramenta fundamental para o desempenho do seu papel como órgão de controle da Administração Pública federal, esta nova legislação é resultado dos compromissos que o Brasil assumiu ao tornar-se parte da Convenção de Mérida (UNCAC) e, especialmente, da Convenção da OCDE. É também um texto em que se nota uma nítida influência da Foreign Corrupt Practices Act of 1977 (FCPA), dos Estados Unidos (
aqui).
São abrangidas todas as esferas de poder (Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público), dos três níveis da Federação. No plano federal, dois órgãos terão o protagonismo no enforcement desta lei não penal: a CGU e o MPF, sem prejuízo da atuação da AGU para consecução dos seus propósitos como órgão de defesa da União e de suas autarquias. Todavia, a lei também se aplica aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, que deverão baixar regulamentos próprios para a adequação de seus serviços à legislação federal.
Ao prever a responsabilização de pessoas jurídicas, num contencioso administrativo de caráter punitivo, a Lei 12.846/2013 exigirá das empresas que contratam com o Governo a instituição ou a (re)adequação de serviços e programas de compliance (conformidade normativa), para prevenir a corrupção no âmbito corporativo e nas relações dessas pessoas jurídicas com os órgãos públicos. A adoção de sistemas de compliance empresarial no Brasil tornou-se usual com a Lei Ambiental (Lei 9.5041997), fortaleceu-se com a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/1998) e agora se consolida com a Lei Anticorrupção.
Instrumento importante será o acordo de leniência, hoje comum na prevenção de práticas anticoncorrenciais, no âmbito da Lei do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (Lei 12. 529/2011). A celebração da leniência, na forma dos arts. 16 e 17 da Lei, resultará em redução da pena de multa e na isenção da pena de proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos do Poder Público. Tal acordo também se estende à Lei de Licitações. Em qualquer caso, o perdão ocorrerá sempre que a empresa acordante colaborar com a investigação dos atos de corrupção, sem prejuízo da reparação do dano.
No âmbito judicial, a Lei Anticorrupção (LAC) cria uma nova ação de responsabilização por ato ilícito, que terá curso como uma ação civil pública, na forma da Lei 7.347/1985, de titularidade do Ministério Público (MPF, MPDFT, MPs estaduais), da AGU e dos órgãos congêneres da advocacia pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Tal como a Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), de 1977, a nova Lei Anticorrupção (LAC) também pune atos viciosos contra a Administração Pública estrangeira, o que lhe dá uma inserção transnacional. De fato, conforme seu artigo 28, a LAC aplica-se aos atos lesivos praticados por pessoa jurídica brasileira (empresas brasileiras que atuam fora de nosso território) contra a administração pública estrangeira, ainda que cometidos no exterior. Tal regra torna a LAC adequada ao escopo da Convenção da OCDE, da qual o Brasil é parte. Em tais casos, caberá à CGU a formalização dos acordos de leniência (art. 16, §10) e a condução do processo administrativo punitivo (art. 9º), tendo em conta a cláusula de jurisdição prevista no artigo 4 da Convenção da OCDE (Decreto 3.678/2000).
Como se percebe no artigo 30, inciso I, da LAC, a nova legislação conviverá com a Lei de Improbidade Administrativa de 1992 (LIA), de modo que será possível cumular pedidos judiciais, com base nos dois textos, o que poderá ser feito numa só ação ou em feitos distintos.
É se observar, porém, que no âmbito da LAC, a responsabilidade das pessoas jurídicas é objetiva, nos campos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos na Lei, quando praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não. Ademais, a responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito. Tais dirigentes, todavia, somente serão responsabilizados por atos ilícitos na medida da suas culpabilidades.
Tenha-se ainda em conta que, por se cuidar de direito administrativo punitivo (sancionador), as sanções previstas na Lei 12.846/2013 são irretroativas, só valendo a partir de 29 de janeiro de 2014.
Em suma…
Está claro que a luta contra a improbidade, a peita e o suborno é uma tarefa de gerações e, hoje, um esforço de muitas nações ao redor do globo. Como vimos, o Brasil tem, não de agora, muitas leis anticorrupção. O problema é que a maioria delas não é observada por muitos de nós, os brasileiros, com exceção de duas: a Lei do Jeitinho e a Lei de Gerson. Estas, sim, são graciosa e religiosamente cumpridas no País, sem questionamentos, com fé e pecado. E já fizeram jurisprudência.