Direito Processual Penal

Um corpo como troféu

É bem provável que tenha sido este o enredo, o que situa a operação policial nos limites da legalidade.

Por Vladimir Aras

Quando Bin Laden foi morto por forças especiais dos Estados Unidos, publiquei este post: A cabeça de Lampião, no qual chamei o líder da Al-Qaeda de “cangaceiro árabe”. Para uns, herói; para outros, vilão.

Lampião podia ser o “terrorista sertanejo”. Herói ou vilao? Até hoje o Nordeste se pergunta…

Para ilustrar o post, utilizei a imagem ao lado, famosíssima foto que retrata o tratamento dado pela briosa Volante do Tenente João Bezerra da Silva (PM/AL) ao líder do Cangaço, Virgulino Ferreira, morto em Poço Redondo/SE, no semi-árido nordestino, lá pelos idos de 1938.

Sua cabeça e as de seus companheiros mortos foram tratadas como prêmio e exibidas na escadaria da Prefeitura de Piranhas/AL, no que ficou conhecido como o “Altar de Lampião”. Em seguida, sua cabeça e a de sua esposa Maria Bonita ficaram expostas por anos no Museu Antropológico do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, em Salvador. Exótico e bizarro troféu.

A volante que, nos anos 1930, consumou o histórico cerco à Gruta de Angicos, perto do Rio São Francisco, entre Alagoas e Sergipe, posou para uma foto igualmente famosa, ao lado dos corpos dos cangaceiros do grupo de Lampião.
 
É o corpo de “Coninho“, membro de uma quadrilha que assaltou o Banco do Brasil na cidade de Mucugê, na Chapada Diamantina, no início deste mês de novembro de 2013. Diz a imprensa que a PM foi levada a matar o bandido. Este teria atirado nos policiais para não ser preso. É bem provável que tenha sido este o enredo, o que situa a operação policial nos limites da legalidade.
 
Parabéns aos policiais que rastrearam o assaltante. Até aí cumpriram seu dever. Mas não posso cumprimentá-los pela foto que tiraram. Sei que as emoções ficam em alta num momento de confronto. Mas não é este o tipo de imagem que uma corporação policial deve produzir num local de morte violenta.

As fotos devem documentar a ação policial para que se investigue a dinâmica do evento, e não um feito heróico ou algo semelhante. Não é fotografia para Facebook.


Não sei se foi este o caso, mas não são poucos os relatos de “autos de resistência” que não correspondem à realidade. Se o bandido em questão reagiu à ação da PM, a perícia poderá dizer, desde que tenha sido preservado o local do fato, como há mais de 70 anos determina o artigo 6º, inciso I, do CPP.

Obviamente, o breve ”Coninho” não se compara a Lampião. Segundo dizem, era um bandido comum, violento e que merecia cadeia. A PM baiana cumpriu seu papel ao localizá-lo e encurralá-lo. Há, contudo, uma incômoda semelhança entre as duas imagens: o orgulho dos homens da lei junto ao cadáver, em 1938 e em 2013. E esta é também a diferença relevante em ambas: o tempo que as separa, 75 anos.

A Polícia é a mesma (a Militar, mas a da Bahia). A região é similar: o semi-árido do Nordeste, na região de Bonito, comarca de Utinga. Foi onde comecei minha vida profissional como promotor de Justiça.
Do mesmo modo que caçadores ainda fazem com animais bravios nas selvas africanas, forças da lei aqui e alhures abatem seus alvos e provam o feito. Muitas vezes, não se tem um preso, mas uma presa.

A “satisfação” de muitos brasileiros com uma imagem como esta reflete a insatisfação de outros tantos com a ineficiência e a benevolência do nosso sistema penal-processual, que, a pretexto de garantir direitos dos acusados (muitos legítimos e devidos), sempre costuma arrumar desculpas, às vezes esfarrapadas, mas tão desejadas pelo “coitadismo penal”. Há que se encontrar um meio termo. Nem execuções sumárias nem o cafuné processual.

Embora esta seja uma imagem impactante, é menos chocante do que a das vítimas inocentes de todos os dias. Não é preciso que me lembrem. Eu sei! Cinquenta mil mortos por ano só no Brasil. Muitos destes são ou podem ser nossos parentes ou amigos.

Mesmo assim, é válida uma reflexão. Como em 1938, eles, os bandidos, os maus (e muitos são maus mesmo) continuam sanguinários e violentos. Nós também, os bons, mudamos pouco. Lampião, Bin Laden, “Coninho”… O corpo do criminoso continua sendo um troféu
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