Por Vladimir Aras
“Art. 80. A extradição será requerida por via diplomática ou, quando previsto em tratado, diretamente ao Ministério da Justiça, devendo o pedido ser instruído com a cópia autêntica ou a certidão da sentença condenatória ou decisão penal proferida por juiz ou autoridade competente.
§ 1o O pedido deverá ser instruído com indicações precisas sobre o local, a data, a natureza e as circunstâncias do fato criminoso, a identidade do extraditando e, ainda, cópia dos textos legais sobre o crime, a competência, a pena e sua prescrição.
§ 2o O encaminhamento do pedido pelo Ministério da Justiça ou por via diplomática confere autenticidade aos documentos.
§ 3o Os documentos indicados neste artigo serão acompanhados de versão feita oficialmente para o idioma português.” (NR)
“Art. 81. O pedido, após exame da presença dos pressupostos formais de admissibilidade exigidos nesta Lei ou em tratado, será encaminhado pelo Ministério da Justiça ao Supremo Tribunal Federal.
“Art. 82. O Estado interessado na extradição poderá, em caso de urgência e antes da formalização do pedido de extradição, ou conjuntamente com este, requerer a prisão cautelar do extraditando por via diplomática ou, quando previsto em tratado, ao Ministério da Justiça, que, após exame da presença dos pressupostos formais de admissibilidade exigidos nesta Lei ou em tratado, representará ao Supremo Tribunal Federal.
§ 1o O pedido de prisão cautelar noticiará o crime cometido e deverá ser fundamentado, podendo ser apresentado por correio, fax, mensagem eletrônica ou qualquer outro meio que assegure a comunicação por escrito.
§ 2o O pedido de prisão cautelar poderá ser apresentado ao Ministério da Justiça por meio da Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol), devidamente instruído com a documentação comprobatória da existência de ordem de prisão proferida por Estado estrangeiro.
§ 3o O Estado estrangeiro deverá, no prazo de 90 (noventa) dias contado da data em que tiver sido cientificado da prisão do extraditando, formalizar o pedido de extradição.
§ 4o Caso o pedido não seja formalizado no prazo previsto no § 3o, o extraditando deverá ser posto em liberdade, não se admitindo novo pedido de prisão cautelar pelo mesmo fato sem que a extradição haja sido devidamente requerida.” (NR)
A extradição é um procedimento de cooperação internacional em matéria penal. Pode ser passiva (Brasil como Estado requerido) ou ativa (Brasil como Estado requerente). Pode ser instrutória (para que o agente responda a processo na Justiça criminal do Estado requerente) ou condenatória (para que o extraditando cumpra pena no Estado requerente).
Sempre tem uma fase administrativa e uma fase judicial. Nesta cabe ao STF decidir se autoriza, ou não, a extradição de alguém (geralmente um estrangeiro, ou, em alguns casos, um brasileiro naturalizado).
Naquela, compete ao Poder Executivo (Ministério da Justiça e Presidência da República) realizar ou não a entrega do extraditando ao país estrangeiro. Em suma, não há entrega sem prévia autorização do STF. Mas, por decisão política do Executivo, pode haver recusa de entrega, mesmo que o STF haja antes autorizado a extradição. Foi exatamente este o pomo da discórdia no caso Cesare Battisti (Extradição 1085).
As alterações realizadas pela Lei 12.878/2013 são importantes porque a prisão cautelar extradicional é uma espécie de condição de procedibilidade do pedido de extradição. Por isto mesmo, o art. 208 do Regimento Interno do STF declara que “Não terá andamento o pedido de extradição sem que o extraditando seja preso e colocado à disposição do Tribunal“. Não faz sentido a condução de um procedimento de extradição perante o STF sem que o procurado esteja submetido à jurisdição brasileira (preso ou vinculado de outra maneira à autoridade do Tribunal). Em regra, os pedidos deste tipo exigem a decretação da prisão cautelar extradicional, que pode ser imposta independentemente dos requisitos da prisão preventiva, previstos nos arts. 312 e 313 do CPP, porque outros os seus pressupostos e finalidade. Vide o art. 84, único, do EE: “A prisão perdurará até o julgamento final do Supremo Tribunal Federal, não sendo admitidas a liberdade vigiada, a prisão domiciliar, nem a prisão albergue“.
A propósito, o Supremo Tribunal Federal decidiu:
A prisão preventiva decretada pelo Ministro-Relator em sede extradicional tem por finalidade específica submeter o extraditando ao controle jurisdicional do Supremo Tribunal Federal até o julgamento final da extradição (art. 84, parágrafo único, da Lei n. 6.815/80). Concedida a extradição, a prisão do extraditando tem por objetivo viabilizar a sua remoção do território nacional pelo Estado-requerente (art. 86, da Lei nº 6.815/80) (STF, HC 73.023, rel. min. Maurício Correa, j. em 30.11.1995).
Após a nova Lei a situação é a seguinte:
a) autoridade central: A autoridade central para fins de extradição (ativa e passiva) continua sendo o Ministério da Justiça (Departamento de Estrangeiros). Conforme o art. 80, §2ºdo EE, a tramitação por esse canal dispensa a autenticação consular dos documentos que instruem o pedido de extradição. Porém, ainda é possível o trânsito de documentos pelo Ministério das Relações Exteriores. Tramitarão pelos dois canais tanto os pedidos de extradição quanto os pedidos de prisão extradicional de caráter urgente (art. 80 e art. 82).
b) papel do MRE: o Itamaraty continua a desempenhar papel relevante na tramitação dos pedidos de extradição quando não houver tratado entre o Brasil e o Estado interessado. Nestes casos, o procedimento se baseia em promessa de reciprocidade. Porém, ao receber as solicitações estrangeiras, o MRE os encaminha ao Ministério da Justiça.
c) exame pelo Ministério da Justiça dos requisitos legais de admissibilidade: na primeira fase administrativa referente a um pedido de extradição, o MJ examina suas condições de admissibilidade. Tais pressupostos formais (idioma, documentos obrigatórios, nacionalidade) são indicados na Lei ou no tratado invocado. A regra do caput do artigo 81 do EE não traz qualquer dificuldade. Porém, o seu parágrafo único agora diz que: “Não preenchidos os pressupostos de que trata o caput, o pedido será arquivado mediante decisão fundamentada do Ministro de Estado da Justiça, sem prejuízo de renovação do pedido, devidamente instruído, uma vez superado o óbice apontado”. Na prática, é o que já ocorria, mas, nos termos do art. 5º, XXXV, da CF, tal decisão pode ser contestada perante o Poder Judiciário (STF), mediante provocação do
Estado interessado ou do Ministério Público Federal (PGR). Por isto, o ideal é que o PGR sempre seja cientificado de arquivamentos desta espécie, em nome de um mecanismo de checks and balances e para que se dê maior densidade ao princípio “in dubio pro solicitudine“, que rege a cooperação jurídica internacional. Ademais, importa observar que uma extradição inviável no Brasil não impede que o Ministério
Público processe o extraditando em nosso País, conforme o princípio “aut dedere aut iudicare” (extradite ou processe), o que reforça o interesse da instituição em tomar ciência da decisão do MJ.
d) representação para decretação de prisão extadicional: A postulação em juízo pelo Ministério da Justiça em matéria de prisão para fins de extradição soa inconstitucional, uma vez que não se trata de mero encaminhamento do pedido ao STF no seu legítimo papel da autoridade central, mas de requerimento de prisão para extradição passiva (art. 82 do EE), tarefa que se confunde com a atribuição criminal da
Procuradoria-Geral da República. Assim, parece-me que este trecho do artigo em questão merece interpretação conforme, para que o pedido de prisão passe pelo crivo do MPF que atua perante o STF, isto é, o PGR. Nada impede que o MJ encaminhe diretamente o pedido ao STF, mediante aviso ministerial, mas não lhe cabe requerer a prisão em nome do Estado estrangeiro. Essa possibilidade remonta ao regime constitucional vigente em 1980, quando os membros do MPF eram também responsáveis pelo patrocínio da
União em juízo. Com a separação das atribuições do MPF e da AGU em 1988, a entrega de atribuições criminais a esta instituição passou a carecer de legitimidade constitucional, por força do art. 129, I, CF.
Assim, o §1º do art. 82 da Lei 6.815/80 merece especial atenção do STF, especialmente porque se trata de procedimento que interfere sob o jus libertatis de pessoas presentes em território brasileiro (art. 5º, caput, CF). De qualquer modo, este tema de iniciativa foi objeto da questão de ordem na Extradição 478 (Suíça), e está regulamentado no âmbito do MJ por meio da Portaria MJ 737/1988. No entanto, no precedente de 1988 relatado pelo min. Moreira Alves, o STF reconheceu que cabia ao MJ “encaminhar” o pedido estrangeiro à Corte, verbo compatível com a posição de simples autoridade central, diferente de atos de postulação.
e) papel do PGR: como visto no item anterior, o requerimento de prisão para fins extradicionais se amolda às funções constitucionais do Ministério Público (art. 109, I e IX, CF), não parecendo conforme a CF a nova redação do artigo 82, que dá essa tarefa ao MJ. Ainda que este seja o hábito, o PGR deverá ser ouvido sobre o pedido de prisão para fins extradicionais, como custos legis;
f) competência para autorizar a extradição: continua sendo do Supremo Tribunal Federal, conforme o art. 102, inciso I, letra ‘g’, da CF. Desde 5 de outubro de 1988 (art. 5º, LXI, CF), o Ministério da Justiça não pode sequer decretar a prisão cautelar (antes uma espécie de prisão administrativa), como autorizava o Estatuto do Estrangeiro. Tal tema foi objeto do segunte julgado do STF:
EXTRADIÇÃO. QUESTÃO DE ORDEM SOBRE A COMPETÊNCIA PARA A DECRETAÇÃO DA PRISÃO DO EXTRADITANDO. – EM FACE DA ATUAL CONSTITUIÇÃO, TORNOU-SE O MINISTRO DA JUSTIÇA INCOMPETENTE PARA DECRETAR A PRISÃO DO EXTRADITANDO, ESTANDO, ASSIM, DERROGADA A LEI 6815/80. – ESSA COMPETÊNCIA PASSA A SER DO RELATOR SORTEADO PARA, SE FOR O CASO, DECRETÁ-LA, O QUAL FICARA PREVENTO PARA A DIREÇÃO DO PROCESSO DE EXTRADIÇÃO, APÓS SER A PRISÃO EM CAUSA EFETIVADA. QUESTÃO DE ORDEM DECIDIDA NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR. (STF, Pleno, Ext-QO 478, Relator Min. Moreira Alves, julgado em 30/11/1988, publicado em 09/12/1988).
g) tramitação do pedido passivo: conforme a nova redação do art. 80 do EE, o MJ/DEEST poderá receber diretamente os pedidos de extradição originados no exterior, quando houver tratado (bilateral ou multilateral) entre o Brasil e o Estado requerente. Atualmente, o Brasil tem tratados bilaterais com 27 países; e é parte de 3 convenções multilaterais de extradição (Mercosul; Mercosul, Bolívia e Chile; e CPLP). Além disso, é membro de convenções internacionais que contêm regras subsidiárias em matéria de extradição, a exemplo da CIFTA, da Convenção da OCDE sobre corrupção transnacional e das convenções de Viena, de Palermo e de Mérida. Confira aqui.
h) tradução: o §3º do art. 80 do EE passou a exigir tradução oficial do pedido para o idioma português. O que se entende por tradução oficial? Exige-se tradutor juramentado ou basta a versão feita pelo Estado requerente. Entendo que basta esta última solução, contanto que a tramitação se dê por um dos canais oficiais previstos na Lei ou no tratado. Porém, não posso deixar de registrar que a Lei poderia ter autorizado, na fase do pedido de prisão extradicional, a utilização de um idioma de correspondência, como o inglês ou o francês, a fim de acelerar a tramitação do procedimento. Tal solução não é inovadora, sendo admitida por alguns tratados, especialmente quando os idiomas de origem e destino são pouco conhecidos, difíceis ou incomuns, a exemplo do art. 7º, §9 da Convenção de Viena de 1988 (aqui). Algo semelhante pode ser visto no art. 5º, §3º, do MLAT Brasil/China (Decreto 6.282/2007) (aqui). Imagine, por exemplo, a dificuldade de realizar-se uma tradução urgente para o português em um país como o Camboja ou a Tailândia. O inglês poderia servir como idioma de conexão.
i) prazo da prisão extradicional: caso o pedido de prisão para fins extradicionais chegue ao Brasil antes da apresentação do pedido de extradição em si mesmo, tal prisão cautelar só poderá durar por 90 dias. Findo esse prazo sem que o Estado interessado requeira a extradição, o procurado será posto em liberdade pelo STF (art. 82, §3º e §4º, EE), e novo pedido prisional pelo mesmo motivo só tramitará no bojo do processo extradicional formalmente instaurado.
]j) eficácia imediata da difusão vermelha no Brasil: o autor do projeto que se converteu na Lei 12.878/2013, deputado João Campos (GO), acredita que agora há a possibilidade de execução direta da prisão cautelar do extraditando por meio da chamada difusão vermelha (red notice): “A lei brasileira passa a reconhecer o mandado de prisão divulgado pela chamada difusão vermelha como autêntico”, explicou à Agência Câmara.
Segundo o deputado, “Para a polícia efetivar a prisão, não precisa emissão de mandado da Corte brasileira e o processo de extradição passa a ter outra velocidade“. Não me parece correta esta avaliação.
Estados estrangeiros e tribunais internacionais normalmente inserem no sistema Interpol informações sobre a existência de mandados de prisão expedidos por suas autoridades competentes. A esse registro informático se dá o nome de “red notice” (difusão vermelha), que é na verdade uma lista internacional de “wanted persons” (procurados).
Criadas em 1946, hoje as difusões deste tipo só são implantadas após a verificação da cumprimento da legislação da Interpol, especialmente os arts. 2 (1) e 3 da Constituição da OIPC, e a observância dos princípios do direito internacional, de modo que são exigidas garantias judiciais mínimas para a incorporação de um mandado de prisão à base de dados. Se estas exigências não forem observadas, corre-se o risco de o sistema ser utilizado para perseguições políticas ou religiosas, ou para proveito de Estados corruptos.
Conforme o art. 3º da Constituição da OIPC, a Interpol não pode envolver-se em atividades de cunho político, militar, religioso ou racial. Porém, em certos casos, as difusões vermelhas infelizmente têm sido utilizadas por algumas nações para a procura e captura de ativistas ligados a causas de direitos humanos, defesa da privacidade e do meio ambiente.
Como quer que seja, alguns países dão eficácia imediata e direta a tais notícias, impropriamente chamadas de “mandados internacionais de captura” (veja aqui a difusão expedida contra o deputado Paulo Salim Maluf), porque, na verdade, reconhecem diretamente a validade dos mandados de prisão que as justificam.
O Brasil, porém, não age de tal forma, exigindo, para a captura, um mandado judicial local (brasileiro), ou ordem de prisão expedida pelo STF em caso de extradição passiva.
As red notices são objeto, no âmbito da Interpol, da Resolução AG-2011-RES-06, que passou a vigorar em 1° de julho de 2012. Uma de suas metas é conclamar os Estados-membros, “if permitted under their national laws and in accordance with applicable international treaties, to take the necessary steps to encourage the appropriate authorities in their countries to recognize the red notice as a valid request for provisional arrest pending extradition or to enable similar lawful actions to be taken on the basis of a red notice“. Observe o trecho que grifei. Foi justamente isto o que fez a Lei 12.878/2013, isto é, reconheceu a difusão vermelha como um pedido válido de assistência em matéria penal para a decretação de prisão cautelar para fins de extradição.
Ou seja, o objetivo da Lei 12.878/2013 foi alterar o status das red notices no ordenamento jurídico brasileiro, sem transformá-las em mecanismo de cooperação semelhante às euro-ordens, estas, sim, mandados internacionais de captura válidos entre os Estados-membros da União Europeia.
Embora seja desejável dar maior eficácia às red notices, como mecanismo de difusão de mandados de prisão expedidos por autoridades estrangeiras competentes ou tribunais penais internacionais, creio que essa interpretação não será acolhida pelo STF, que hoje é a autoridade judiciária competente para o deferimento de prisões cautelares para fins extradicionais (art. 102, I, ‘g’, CF).
O problema (ou a solução) está no artigo 5º, inciso LXI, da Constituição:
Por “autoridade judiciária competente“, entende-se um juiz criminal brasileiro. Nos termos da Constituição, em matéria de extradição, este juiz é necessariamente um ministro do STF (art. 102, I, ‘g’, CF). Todavia, é possível interpretar de forma diferente o inciso LXI do art. 5º, da CF, se admitirmos que “autoridade judiciária competente” pode ser qualquer juiz ou tribunal estrangeiro ou uma corte internacional. Em tal cenário, haveria o reconhecimento no Brasil do mandado prisional emitido pela autoridade competente estrangeira, e a Polícia Federal brasileira poderia realizar a prisão (na verdade a captura), com base em tal documento, circularizado no canal Interpol, e aguardaria a expedição do mandado (confirmatório) pelo STF.
O princípio do mútuo reconhecimento das decisões estrangeiras no campo penal ampliou-se na Europa após a adoção da euro-ordem, ou mandado europeu de captura. Algo semelhante ocorrerá na América do Sul quando entrar em vigor o Acordo de Foz do Iguaçu de 2010 que criou o Mandado Mercosul de Captura (veja este post). No entanto, a Lei 12.878/2013 não autoriza a captura imediata do extraditando pela Polícia. Ademais, devido à CF/1988 e à reforma da Lei 6.815/80, o MJ não pode e já não podia desde 1988 decretar prisões, ainda que para atender difusões vermelhas. Neste sentido, veja o que decidiu o STF no HC 80.923/SC, relator min. Néri da Silveira, em 15/08/2001: