Justiça criminal

Jurisdição extraterritorial e competência criminal federal

O instituto da transferência de procedimentos criminais de um Estado nacional a outro não é desconhecido no País.

Por Vladimir Aras

Introdução
Na data em que foi publicada a Lei 12.878/2013 (aqui), que dispõe sobre a prisão cautelar para fins de extradição passiva, escrevo sobre um tema pouco debatido pela doutrina brasileira.
Na berlinda, a extradição e um mecanismo de assistência internacional cada vez mais importante nas relações entre Estados soberanos, mas pouco conhecido: a transferência, de uma jurisdição a outra, de processos penais, o que inclui a transmissão da investigação ou da ação penal (rectius: seus documentos indiciários ou as provas coligidas), no interesse da Justiça criminal.

O instituto da transferência de procedimentos criminais de um Estado nacional a outro não é desconhecido no País. Fenômeno semelhante resulta da inextraditabilidade de nacionais, ou seja, da impossibilidade de extradição de suspeitos ou réus em função de sua nacionalidade (originária ou adquirida).

Alguns países – entre eles o Brasil – não extraditam os seus nacionais. Grande contingente de nações, porém, o faz. Por exemplo, Estados Unidos, Colômbia, Quênia, Bangladesh, Argentina e vários países europeus extraditam os seus cidadãos, caso haja reciprocidade. No nosso caso, não extraditamos brasileiros natos, salvo os naturalizados. Tal proibição resulta do artigo 5º, inciso LI, da Constituição Federal:

“LI – Nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”.

Assim, costumam ocorrer casos como o do brasileiro E.D.N., cuja prisão no Brasil foi recentemente divulgada pela imprensa. Em dezembro de 2006, na cidade de Shizuoka, o “homem mais procurado do Japão” (aqui e aqui) teria assassinado Sônia Misaki e seus dois filhos, Hiroaki e Hiroyuki, de 15 e 10 anos. Como no Japão – onde estou no momento em que escrevo – há prisão perpétua e pena de morte por enforcamento e condenações ocorrem em índices superiores a 90% dos casos, ficou fácil para E.D.N. fazer as contas. Nem precisou de soroban: melhor fugir para o Brasil, onde a Constituição proíbe (acertadamente) a pena capital e veda a prisão perpétua, e onde o garantismo à brasileira (não o verdadeiro garantismo) e um emaranhado de leis processuais mal-ajambradas asseguram a impunidade em grande número de casos.

O princípio aut dedere aut judicare
Em face da regra da inextraditabilidade de nacionais, as nações que a aplicam são obrigadas, por um princípio geral do direito internacional público, a tomar a si a jurisdição sobre o crime ocorrido no exterior. Esta diretriz foi incorporada a diversos tratados de extradição: “Se não extraditar, processe” é o significado do brocardo latino “aut dedere aut judicare” ou “extraditare vel iudicare” ou “extradite or prosecute”, que atesta uma obrigação dos Estados no direito internacional público (jus cogens) ou, para outros, uma regra do direito costumeiro.

Assim, se um brasileiro cometer um crime no estrangeiro e fugir para o Brasil, não poderá ser extraditado (é a sua garantia constitucional). O STF negará a extradição, caso seja veiculada, com base no art. 5º, inciso LI, da CF e na Lei 6.815/80. Porém, a garantia da sociedade (nacional e estrangeira) é a de que este indivíduo será processado em território brasileiro, pelo crime que cometeu em solo alienígena. A inextraditabilidade do nacional não é uma cláusula de garantia de impunidade, devendo imperar o critério de justiça penal universal, de modo a evitar a existência de “safe havens”, especialmente para crimes internacionais, mas também para outros crimes graves.

Em tal cenário, afirma-se a jurisdição brasileira para o processo penal, ainda que não haja tratado de extradição entre o Brasil e o Estado interessado na persecução do brasileiro que cometeu crime em seu território. É de novo o caso de E.D.N., acusado do triplo homicídio em 2006, em Shizuoka. Embora Brasil e Japão não tenham tratado de extradição (veja lista completa aqui), o princípio “extraditare vel iudicare” aplica-se no seu caso.

De fato, ficam sujeitos à lei penal brasileira, embora cometidos no estrangeiro, os crimes praticados por brasileiros (artigo 7°, inciso II, CP). Porém, esta extensão da jurisdição nacional depende do implemento de certas condições (§2º):
a) entrar o agente no território nacional (premissa necessária para a utilidade da ação penal no Brasil);
b) ser o fato punível também no país em que foi praticado (dupla tipicidade);
c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição (crimes extraditáveis são aqueles cuja pena de prisão máxima é superior a um ano, na forma do art. 77, inciso IV, da Lei 6.815/1980);
d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena (para evitar o bis in idem);
e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável (princípio da lei penal mais favorável).

Havendo o concurso de tais condições, disto resultará a transferência da causa criminal do Estado estrangeiro para o Brasil (extraterritorialidade da lei penal), onde o processo e o julgamento do brasileiro que de lá fugiu terão curso, com base nas provas colhidas no exterior e, eventualmente, com outras aqui reunidas. Na verdade, a jurisdição brasileira passa a ser extraterritorial, para alcançar fatos ocorridos em solo estrangeiro.

Sede normativa do princípio
Além do art. 7º do Código Penal, a matéria é objeto de vários tratados, que contêm provisões para dar eficácia à regra “aut dedere aut iudicare”, como é o caso do Acordo de Extradição entre os Estados Partes do Mercosul (Decreto 4.975/2004):

ARTIGO 11
Da Nacionalidade
1. A nacionalidade da pessoa reclamada não poderá ser invocada para denegar a extradição, salvo disposição constitucional em contrário.
2. Os Estados Partes que não contemplem disposição de natureza igual à prevista no parágrafo anterior poderão denegar-lhe a extradição de seus nacionais.
3. Nas hipóteses dos parágrafos anteriores, o Estado Parte que denegar a extradição deverá promover o julgamento do indivíduo, mantendo o outro Estado Parte informado do andamento do processo, devendo ainda remeter, finalizado o juízo, cópia da sentença.
Aqui cabem duas observações. A primeira: tratados como este são diretamente executáveis no Brasil, pois recebidos como lei federal ordinária e porque cuidam de matéria processual. Não custa recordar que o artigo 1º, inciso I, do CPP, determina que tal código regula o processo penal no Brasil, ressalvados os tratados internacionais (lex specialis). A segunda: o artigo 11 do Acordo de Extradição do Mercosul impõe uma obrigação aos Estados Partes; e não uma opção. Se denegar a extradição, o Estado requerido “deverá” processar perante sua Justiça criminal a pessoa antes procurada.
O artigo 42 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC) contém regra semelhante no seu §3º, em que se evidencia o dever internacional de processar (“shall take measures”):
1. Each State Party shall adopt such measures as may be necessary to establish its jurisdiction over the offences established in accordance with this Convention when:
3. For the purposes of article 44 of this Convention, each State Party shall take such measures as may be necessary to establish its jurisdiction over the offences established in accordance with this Convention when the alleged offender is present in its territory and it does not extradite such person solely on the ground that he or she is one of its nationals.
Semelhantes dispositivos podem ser lidos, respectivamente, no artigo 4º, §2º, letra ‘a’, número ‘ii’, da Convenção das Nações Unidas contra o Narcotráfico (Convenção de Viena) (Decreto 154/1991) e no artigo 10 da Convenção Internacional para Supressão do Financiamento do Terrorismo (Decreto 5.640/2005):
Article 4. […]
2. Each Party:
a) Shall also take such measures as may be necessary to establish its jurisdiction over the offences it has established in accordance with article 3, paragraph 1, when the alleged offender is present in its territory and it does not extradite him to another Party on the ground that the offence has been committed by one of its nationals.
Artigo 10
1. O Estado Parte em cujo território o criminoso presumido estiver presente será obrigado, nos casos aos quais se aplica o Artigo 7, caso não extradite aquela pessoa, sem qualquer exceção e que o delito tenha ou não sido cometido em seu território, a submeter o caso, sem demora, às suas autoridades competentes, para fins de instauração de ação penal, em conformidade com procedimentos previstos na legislação daquele Estado. Essas autoridades tomarão sua decisão da mesma forma que no caso de qualquer outro delito de natureza grave previsto na legislação daquele Estado.

Transferência de procedimentos penais
Há uma sutil diferença entre o procedimento acima descrito, vinculado à inextraditabilidade de nacionais, e a transferência de processos criminais. Aquele é obrigatório, por força da lei (tratados) ou do costume e princípios do direito internacional; esta é voluntária, motivada por peculiaridades probatórias ou conveniência processual, e não se vincula à recusa de extraditar com base no critério da nacionalidade.

A transferência de procedimentos criminais é objeto da Convenção do Conselho da Europa firmada em Estrasburgo em 1972 (aqui) e se faz sempre em homenagem à boa administração da Justiça, observando-se a regra da dupla incriminação.

A premissa desta espécie de cooperação é também a prática de um crime no estrangeiro, isto é, fora do território brasileiro (o continente, suas ilhas e ilhotas, o mar territorial e o espaço aéreo sobrejacente). Normalmente, tal crime estará sob jurisdição estrangeira; às vezes, sujeitar-se-á à jurisdição de mais de um país, simultaneamente. A questão é saber em qual deles há melhores condições para a persecução criminal.

Então, no interesse da administração da Justiça criminal, o Estado que conduz a investigação ou o processo penal decide “renunciar” à sua jurisdição e ao direito de persecução criminal, em favor de outro Estado, para que neste seja conduzido o procedimento e realizado o julgamento do acusado.

No Brasil, nenhuma lei regulamenta o procedimento de transferência para nossos tribunais da questão penal iniciada no estrangeiro. Em tais casos a jurisdição brasileira também é afirmada a partir do exame do artigo 7º do Código Penal e dos tratados aplicáveis à espécie, inclusive as convenções de Viena (narcotráfico), Palermo (crime organizado transnacional) e Mérida (corrupção), que têm regras sobre a ampliação da jurisdição nacional, quando se tem em mira tais crimes. Este também é o caso de vários instrumentos internacionais antiterrorismo, a exemplo do artigo 7º da Convenção Internacional para
Supressão do Financiamento do Terrorismo.

O artigo 8º da Convenção das Nações Unidas contra o Narcotráfico (Convenção de Viena) (Decreto 154/1991); o artigo 47 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção ou UNCAC, na sigla em inglês (Convenção de Mérida), ou o artigo 21 da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, ou UNTOC (Convenção de Palermo) (Decreto 5.015/2004) cuidam da transferência de processos penais, a saber:

Artigo 8
Transferência dos Procedimentos Penais
As Partes considerarão a possibilidade de remeterem-se processos penais que dizem respeito aos delitos estabelecidos de acordo com o parágrafo 1 do Artigo 3, quando se estime que essa remissão será no interesse da correta administração da justiça.

Artigo 21
Transferência de processos penais
Os Estados Partes considerarão a possibilidade de transferirem mutuamente os processos relativos a uma infração prevista na presente Convenção, nos casos em que esta transferência seja considerada necessária no interesse da boa administração da justiça e, em especial, quando estejam envolvidas várias jurisdições, a fim de centralizar a instrução dos processos.

Article 47. Transfer of criminal proceedings
States Parties shall consider the possibility of transferring to one another proceedings for the prosecution of an offence established in accordance with this Convention in cases where such transfer is considered to be in the interests of the proper administration of justice, in particular in cases where several jurisdictions are involved, with a view to concentrating the prosecution1.
O artigo 42, §5º, da UNCAC serve a este propósito, porque determina que se um “State Party exercising its jurisdiction under paragraph 1 or 2 of this article has been notified, or has otherwise learned, that any other States Parties are conducting an investigation, prosecution or judicial proceeding in respect of the same conduct, the competent authorities of those States Parties shall, as appropriate, consult one another with a view to coordinating their actions”. Uma das formas de fazê-lo é exatamente mediante a transmissão do procedimento.
O artigo 7º, §5º, da Convenção Internacional para Supressão do Financiamento do Terrorismo (Decreto 5.640/2005) vai na mesma linha, ao dispor que: “Quando mais de um Estado Parte reivindicar jurisdição sobre os delitos previstos no Artigo 2, os Estados Partes interessados deverão empenhar-se para coordenar suas ações apropriadamente, em particular no que se refere às modalidades de assistência jurídica mútua”, o que pode acarretar a transferência de procedimentos.
Como vimos, os tratados de extradição preveem que, em caso de recusa do Estado requerido, com base no critério nacionalidade, este deve processar o foragido em seu território, perante suas próprias cortes. Isto significa que haverá nestes casos a extensão da jurisdição nacional para alcançar crimes cometidos fora de seu território. Algo semelhante ocorre com a transferência voluntária de causas criminais, quando se tem em mira a boa administração da justiça, especialmente em casos de corrupção, terrorismo, lavagem de dinheiro, narcotráfico ou criminalidade organizada transnacional.

A primeira questão: quem é o juiz natural?
Se um brasileiro cometer um crime no exterior e refugiar-se no País, ele não será extraditado. Isto é certo. Pergunta-se então: o Brasil terá jurisdição para julgar tal crime?
Esta pergunta, como vimos, exige o exame do artigo 7º do CP e dos tratados eventualmente aplicáveis ao caso concreto. Se respondida afirmativamente, em função do princípio “aut dedere aut iudicare”, surgem as questões centrais deste texto:
a) qual o juízo competente para julgar o brasileiro inextraditável?
b) qual o juízo competente para conduzir o procedimento criminal transferido para o Brasil?
Determinação da competência territorial
Não oferece dificuldade a identificação do juízo territorialmente competente para o julgamento do brasileiro inextraditável, e para a condução de processo penal “transferido”.
O artigo 88 do CPP define a competência territorial da Justiça brasileira para os crimes cometidos no exterior:
Art. 88. No processo por crimes praticados fora do território brasileiro, será competente o juízo da Capital do Estado onde houver por último residido o acusado. Se este nunca tiver residido no Brasil, será competente o juízo da Capital da República.

Assim, em regra, um crime praticado fora do território brasileiro será julgado na capital de um dos Estados da Federação ou em Brasília, a capital federal.
Tomando o caso de E.D.N. como exemplo, a ação penal deve ter curso em São Paulo pois foi neste Estado o último local de residência do réu, antes de mudar-se para o Japão.
A questão fundamental neste texto: competência estadual ou federal?
De quem é a competência ratione materiae para processar e julgar um crime cometido no exterior, fora das hipóteses do inciso V (crimes à distância) e do inciso IX (crimes a bordo de navios ou aeronaves), do artigo 109 da Constituição Federal?

A questão vem à tona quando se tem em mira o artigo 47 da Convenção de Mérida, ou o artigo 21 da Convenção de Palermo, ou o artigo 8º da Convenção de Viena de 1988, que tratam da transferência de procedimentos penais, assim como quando se tem em mira ações criminais que devam aqui tramitar em função da impossibilidade de extradição de nacionais. A quem cabe tocá-las?
Quando se trata de crime previsto em convenção internacional da qual o Brasil seja parte e que tenha sido cometido no território de duas ou mais jurisdições, uma delas sendo a brasileira, não há dúvida: a competência é federal, com base no art. 109, V, da CF. Tampouco há qualquer incerteza quanto à existência de competência federal quando o crime é praticado a bordo de navio ou aeronave aqui registrados, que estejam no exterior. O mesmo se diga quando o crime for cometido no exterior contra bens, interesses ou serviços da União, suas empresas públicas ou autarquias, caso em que a solução está no art. 109, IV, da CF.

Porém, qual é a solução nos demais casos, que abarcam os crimes praticados inteiramente no exterior, em solo estrangeiro? Os tribunais têm afirmado a competência da Justiça Estadual. Foi assim no caso E.D.N.,  brasileiro inextraditável, no qual o TJ/SP entendeu que a ação penal deveria tramitar no tribunal do júri da comarca da capital paulista. Veja, por todos, a decisão da 3ª Seção do STJ no Conflito de Competência 104.342/SP, publicada em 26/08/2009:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. HOMICÍDIOS QUALIFICADOS. CRIMES PERPETRADOS POR BRASILEIRO, JUNTAMENTE COM ESTRANGEIROS, NA CIDADE DE RIVERA – REPÚBLICA ORIENTAL DO URUGUAI. REGIÃO FRONTEIRIÇA. VÍTIMAS. POLICIAIS CIVIS BRASILEIROS. RESIDENTES EM SANTANA DO LIVRAMENTO/RS. EXTRATERRITORIALIDADE. AGENTE BRASILEIRO, QUE INGRESSOU NO PAÍS. ÚLTIMO DOMICÍLIO. CIDADE DE RIBEIRÃO PRETO/SP. O ITER CRIMINIS OCORREU NO ESTRANGEIRO. 1. Os crimes em análise teriam sido cometidos por brasileiro, juntamente com uruguaios, na cidade de Rivera – República Oriental do Uruguai, que faz fronteira com o Brasil. 2. Aplica-se a extraterritorialidade prevista no art. 7.º , inciso II , alínea b , e § 2.º, alínea a, do Código Penal , se o crime foi praticado por brasileiro no estrangeiro e, posteriormente, o agente ingressou em território nacional. 3. Nos termos do art. 88 do Código de Processo Penal , sendo a cidade de Ribeirão Preto/SP o último domicílio do indiciado, é patente a competência do Juízo da Capital do Estado de São Paulo.4. Afasta-se a competência da Justiça Federal, tendo em vista a inexistência de qualquer hipótese prevista no art. 109 da Carta da Republica , principalmente, porque todo o iter criminis dos homicídios ocorreu no estrangeiro. 5. Conflito conhecido para declarar a competência de uma das Varas do Júri da Comarca de São Paulo/SP. (STJ, 3ª Seção. CC 104.342/SP, p. em 26/08/2009).
Apesar disto, num caso com premissas muito semelhantes, julgado em 2002, a 6ª Turma do STJ decidira em sentido oposto:
HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. COMPETÊNCIA. HOMICÍDIO CUJA EXECUÇÃO SE INICIOU NO BRASIL E O RESULTADO SE ULTIMOU NO EXTERIOR. PRINCÍPIO DA EXTRATERRITORIALIDADE. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.
1. O crime cometido, no estrangeiro, contra brasileiro ou por brasileiro, é da competência da Justiça Brasileira e, nesta, da Justiça Federal, a teor da norma inserta no inciso IV do artigo 109 da Constituição Federal, por força dos princípios da personalidade e da defesa, que, ao lado do princípio da justiça universal, informam a extraterritorialidade da lei penal brasileira (Código Penal, artigo 7º, inciso II, alínea “b”, e parágrafo 3º) e são, em ultima ratio, expressões da necessidade do Estado de proteger e tutelar, de modo especial, certos bens e interesses. O atendimento dessa necessidade é, precisamente, o que produz o interesse da União, em detrimento do qual o crime cometido, no estrangeiro, contra ou por brasileiro é também praticado.
2. Por igual, compete à Justiça Federal julgar os crimes “previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente.” (Constituição Federal, artigo 109, inciso V).
3. Julgados já os executores do homicídio, a competência para o julgamento do mandante, quando questionada isoladamente, resta insulada no tema da continência. 4. Ordem denegada. (STJ, HC 18.307/MT, Rel. Ministro Hamilton Carvalhido, 6ª Turma, julgado em 18/04/2002, DJ 10/03/2003, p. 313).
Um brevíssimo exemplo para facilitar

Tomemos então um caso real como exemplo. “A”, cidadão brasileiro comum, comete crime de estelionato na Itália e foge para o Brasil. Presente está o critério da dupla incriminação, não há bis in idem nem extinção de punibilidade. As premissas para a extraterritorialidade da lei penal brasileira foram cumpridas. Logo, o Brasil tem jurisdição, segundo o art. 7° do CP.

Porém, o estelionato não está previsto em qualquer convenção internacional da qual o Brasil seja parte. Ademais, o crime ocorreu inteiramente em território italiano, e a vítima não é brasileira. Portanto, não se aplica o inciso V do art. 109 da CF. Tampouco há incidência do art. 109, inciso IX, CF, porque o crime não foi praticado em navio nem aeronave,

Duas perguntas se impõem de imediato:
a) o Brasil tem jurisdição? sim, por força do princípio aut dedere aut iudicare, segundo o qual o Estado que não extradita seus nacionais tem a obrigação de processá-los perante suas próprias cortes, para evitar a impunidade.
b) qual a Justiça brasileira competente? A Justiça Federal. Mas esta resposta exige um exame mais profundo.
Pois bem. A ideia que ora sustento – e que, creio, ainda não foi testada nos tribunais brasileiros – é a seguinte:
1. A responsabilidade pela observância do princípio aut dedere aut iudicare (extraditare vel iudicare) é da União, pois é a República Federativa do Brasil quem tem personalidade de direito internacional público. No caso em tela, a obrigação de processar o brasileiro inextraditável está clara no Tratado de Extradição Brasil/Itália. Disso resulta o interesse da União na causa, mas não só.
2. No Brasil, todos os casos de cooperação passiva são de competência federal, à luz do artigo 105 c/c o artigo 109, X, da CF, que dá aos juízes federais a tarefa de executar rogatórias recebidas pelo Brasil, após a chancela do STJ. Quando uma rogatória merece o exequatur do STJ, seu cumprimento se dá pelo juiz federal, justamente porque há interesse da União em manter boas relações diplomáticas com suas contrapartes e poder pedir reciprocidade em casos de interesse do Estado brasileiro.
3. Devido à sua estrutura federativa, o Estado nacional brasileiro não controla as Justiças dos Estados-membros. Logo, a entrega da jurisdição em tais casos às unidades federadas pode induzir a responsabilidade internacional da República Federativa do Brasil, em decorrência de eventual inércia de seus entes formadores. Se o Estado nacional é o responsável perante a comunidade das nações, é do interesse da União a persecução criminal.
4. O procedimento de transferência de procedimento criminal é uma forma de cooperação penal passiva e equipara-se às rogatórias passivas quanto à atribuição e competência. Logo, como todas as demais espécies de assistência passiva (sendo exemplo clássico a rogatória), a competência é federal.
5. Mutatis mutandi, a mesma vinculação processual deve ocorrer em razão da vedação de extradição de nacionais. Quando o Brasil é o Estado requerido, cabe ao STF autorizar ou não a extradição de tal trânsfuga, pois é evidente o interesse nacional (da União) na manutenção de boas relações internacionais. Outro forte indício do interesse da União está na delegação de atos instrutórios da extradição passiva a juízes federais, com fundamento no artigo 211 do Regimento Interno do STF: “É facultado ao Relator delegar o interrogatório do extraditando a juiz do local onde estiver preso”. Por “juiz do local” tem-se entendido o juiz federal. É o que se deu, por exemplo, na Extradição 835, requerida pela República Argentina e julgada pelo STF em 2002. Idem nas Extradições 1122 (Israel), 1114 (China) e 1165 (Espanha). Quase sempre é assim, salvo nas hipóteses em que o extraditando está preso em localidade distante da sede da Justiça Federal naquela região.
6. O processo penal contra um cidadão brasileiro que não tenha sido extraditado em função de sua nacionalidade (art. 5º, LI, CF) é uma “causa referente à nacionalidade”, o que faz valer a competência da Justiça Federal, com base no art. 109, X, da CF;
7. Além disso, a competência federal também resulta do fato de que se tem, em muitos casos, uma causa fundada em tratado internacional (artigo 109, inciso III, CF). Há hoje 27 tratados de extradição de que o Brasil é parte e outros tantos acordos multilaterais gerais (como as Convenções de Mérida e Palermo) ou específicos de extradição (como os acordos do Mercosul e da CPLP). Ademais, o instituto da transferência de procedimentos criminais também é objeto de vários outros tratados, como já demonstramos. Observe-se que a cláusula do inciso III do art. 109 da CF não costuma ser invocada para firmar a competência criminal federal, mas este é exatamente o caso aqui porque a causa (penal) a ser proposta perante o Poder Judiciário brasileiro se viabiliza em razão dos tratados que o País firmou neste campo. Logo, a ação penal a ser proposta se funda em tratado internacional que faculta a transferência de procedimentos criminais.
A competência federal no caso proposto: Brasil-Itália
Na hipótese em exame (estelionato praticado na Itália; réu brasileiro que foge para o Brasil), há dois tratados de cooperação firmados pelo nosso País e aquela nação europeia:
a) o MLAT Brasil/Itália, objeto do Decreto n. 862/1993; e
b) o Tratado de Extradição, objeto do Decreto 863/1993.
Conforme o art. 6º do tratado ítalo-brasileiro de extradição,
Artigo 6
Recusa Facultativa da Extradição
1. Quando a pessoa reclamada, no momento do recebimento do pedido, for nacional do Estado requerido, este não será obrigado a entregá-la. Neste caso, não sendo concedida a extradição, a Parte requerida, a pedido da Parte requerente, submeterá o caso às suas autoridades competentes para eventual instauração de procedimento penal. Para tal finalidade, a Parte requerente deverá fornecer os elementos úteis. A Parte requerida comunicará sem demora o andamento dado à causa e, posteriormente, a decisão final.
Sempre que houver um tratado com cláusula semelhante, a obrigação de processar criminalmente o brasileiro não extraditado (nem extraditável) será do Brasil, conforme a máxima aut dedere aut iudicare.
A jurisdição brasileira se afirma, caso preenchidos os requisitos do artigo 7º do CP (extraterritorialidade da lei penal pátria), ou alternativamente por força do próprio tratado, que viabilizará o processo penal (artigo 1º, inciso I, do CPP).
Esse mesmo tratado será o fundamento procedimental para que a ação penal tramite perante um tribunal brasileiro, o que faz surgir a competência federal, por força do artigo 109, inciso III, da Constituição de 1988, devido à existência de causa fundada em tratado.
Conclusão
Nos crimes cometidos inteiramente no território brasileiro, a competência será firmada a partir do artigo 109 da CF. Em regra estará a cargo da Justiça Estadual e do seu respectivo Ministério Público; e
Nos crimes cometidos parcialmente no território brasileiro e parcialmente no exterior (crimes à distância, consumados ou tentados), a competência será da Justiça Estadual, salvo se esta espécie delitiva for objeto de algum tratado firmado pelo Brasil (art. 109, V, CF);
Porém, nos crimes cometidos no exterior ou no estrangeiro e transferidos, por qualquer motivo (seja por denegação de extradição ou em nome da boa administração da Justiça), para a jurisdição brasileira, a competência para o processo e julgamento será da Justiça Federal (art. 109, III e X, CF).
———————–
1 Uma breve nota: desconsidere a péssima versão em português do texto brasileiro da Convenção de Mérida, que torna quase incompreensível o propósito do artigo 47. Para saber mais, veja este artigo: http://jus.com.br/artigos/12361/a-norma-fantasma-do-artigo-47-da-convencao-de-merida#ixzz2iXwtIgHUIntrodução
Na data em que foi publicada a Lei 12.878/2013 (aqui), que dispõe sobre a prisão cautelar para fins de extradição passiva, escrevo sobre um tema pouco debatido pela doutrina brasileira.
Na berlinda, a extradição e um mecanismo de assistência internacional cada vez mais importante nas relações entre Estados soberanos, mas pouco conhecido: a transferência, de uma jurisdição a outra, de processos penais, o que inclui a transmissão da investigação ou da ação penal (rectius: seus documentos indiciários ou as provas coligidas), no interesse da Justiça criminal.
O instituto da transferência de procedimentos criminais de um Estado nacional a outro não é desconhecido no País. Fenômeno semelhante resulta da inextraditabilidade de nacionais, ou seja, da impossibilidade de extradição de suspeitos ou réus em função de sua nacionalidade (originária ou adquirida).
Alguns países – entre eles o Brasil – não extraditam os seus nacionais. Grande contingente de nações, porém, o faz. Por exemplo, Estados Unidos, Colômbia, Quênia, Bangladesh, Argentina e vários países europeus extraditam os seus cidadãos, caso haja reciprocidade. No nosso caso, não extraditamos brasileiros natos, salvo os naturalizados. Tal proibição resulta do artigo 5º, inciso LI, da Constituição Federal:
“LI – Nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”.
Assim, costumam ocorrer casos como o do brasileiro E.D.N., cuja prisão no Brasil foi recentemente divulgada pela imprensa. Em dezembro de 2006, na cidade de Shizuoka, o “homem mais procurado do Japão” (aqui e aqui) teria assassinado Sônia Misaki e seus dois filhos, Hiroaki e Hiroyuki, de 15 e 10 anos. Como no Japão – onde estou no momento em que escrevo – há prisão perpétua e pena de morte por enforcamento e condenações ocorrem em índices superiores a 90% dos casos, ficou fácil para E.D.N. fazer as contas. Nem precisou de soroban: melhor fugir para o Brasil, onde a Constituição proíbe (acertadamente) a pena capital e veda a prisão perpétua, e onde o garantismo à brasileira (não o verdadeiro garantismo) e um emaranhado de leis processuais mal-ajambradas asseguram a impunidade em grande número de casos.
O princípio aut dedere aut judicare
Em face da regra da inextraditabilidade de nacionais, as nações que a aplicam são obrigadas, por um princípio geral do direito internacional público, a tomar a si a jurisdição sobre o crime ocorrido no exterior. Esta diretriz foi incorporada a diversos tratados de extradição: “Se não extraditar, processe” é o significado do brocardo latino “aut dedere aut judicare” ou “extraditare vel iudicare” ou “extradite or prosecute”, que atesta uma obrigação dos Estados no direito internacional público (jus cogens) ou, para outros, uma regra do direito costumeiro.
Assim, se um brasileiro cometer um crime no estrangeiro e fugir para o Brasil, não poderá ser extraditado (é a sua garantia constitucional). O STF negará a extradição, caso seja veiculada, com base no art. 5º, inciso LI, da CF e na Lei 6.815/80. Porém, a garantia da sociedade (nacional e estrangeira) é a de que este indivíduo será processado em território brasileiro, pelo crime que cometeu em solo alienígena. A inextraditabilidade do nacional não é uma cláusula de garantia de impunidade, devendo imperar o critério de justiça penal universal, de modo a evitar a existência de “safe havens”, especialmente para crimes internacionais, mas também para outros crimes graves.
Em tal cenário, afirma-se a jurisdição brasileira para o processo penal, ainda que não haja tratado de extradição entre o Brasil e o Estado interessado na persecução do brasileiro que cometeu crime em seu território. É de novo o caso de E.D.N., acusado do triplo homicídio em 2006, em Shizuoka. Embora Brasil e Japão não tenham tratado de extradição (veja lista completa aqui), o princípio “extraditare vel iudicare” aplica-se no seu caso.
De fato, ficam sujeitos à lei penal brasileira, embora cometidos no estrangeiro, os crimes praticados por brasileiros (artigo 7°, inciso II, CP). Porém, esta extensão da jurisdição nacional depende do implemento de certas condições (§2º):
a) entrar o agente no território nacional (premissa necessária para a utilidade da ação penal no Brasil);
b) ser o fato punível também no país em que foi praticado (dupla tipicidade);
c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição (crimes extraditáveis são aqueles cuja pena de prisão máxima é superior a um ano, na forma do art. 77, inciso IV, da Lei 6.815/1980);
d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena (para evitar o bis in idem);
e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável (princípio da lei penal mais favorável).
Havendo o concurso de tais condições, disto resultará a transferência da causa criminal do Estado estrangeiro para o Brasil (extraterritorialidade da lei penal), onde o processo e o julgamento do brasileiro que de lá fugiu terão curso, com base nas provas colhidas no exterior e, eventualmente, com outras aqui reunidas. Na verdade, a jurisdição brasileira passa a ser extraterritorial, para alcançar fatos ocorridos em solo estrangeiro.
Sede normativa do princípio
Além do art. 7º do Código Penal, a matéria é objeto de vários tratados, que contêm provisões para dar eficácia à regra “aut dedere aut iudicare”, como é o caso do Acordo de Extradição entre os Estados Partes do Mercosul (Decreto 4.975/2004):
ARTIGO 11
Da Nacionalidade
1. A nacionalidade da pessoa reclamada não poderá ser invocada para denegar a extradição, salvo disposição constitucional em contrário.
2. Os Estados Partes que não contemplem disposição de natureza igual à prevista no parágrafo anterior poderão denegar-lhe a extradição de seus nacionais.
3. Nas hipóteses dos parágrafos anteriores, o Estado Parte que denegar a extradição deverá promover o julgamento do indivíduo, mantendo o outro Estado Parte informado do andamento do processo, devendo ainda remeter, finalizado o juízo, cópia da sentença.
Aqui cabem duas observações. A primeira: tratados como este são diretamente executáveis no Brasil, pois recebidos como lei federal ordinária e porque cuidam de matéria processual. Não custa recordar que o artigo 1º, inciso I, do CPP, determina que tal código regula o processo penal no Brasil, ressalvados os tratados internacionais (lex specialis). A segunda: o artigo 11 do Acordo de Extradição do Mercosul impõe uma obrigação aos Estados Partes; e não uma opção. Se denegar a extradição, o Estado requerido “deverá” processar perante sua Justiça criminal a pessoa antes procurada.
O artigo 42 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC) contém regra semelhante no seu §3º, em que se evidencia o dever internacional de processar (“shall take measures”):
1. Each State Party shall adopt such measures as may be necessary to establish its jurisdiction over the offences established in accordance with this Convention when:
3. For the purposes of article 44 of this Convention, each State Party shall take such measures as may be necessary to establish its jurisdiction over the offences established in accordance with this Convention when the alleged offender is present in its territory and it does not extradite such person solely on the ground that he or she is one of its nationals.
Semelhantes dispositivos podem ser lidos, respectivamente, no artigo 4º, §2º, letra ‘a’, número ‘ii’, da Convenção das Nações Unidas contra o Narcotráfico (Convenção de Viena) (Decreto 154/1991) e no artigo 10 da Convenção Internacional para Supressão do Financiamento do Terrorismo (Decreto 5.640/2005):
Article 4. […]
2. Each Party:
a) Shall also take such measures as may be necessary to establish its jurisdiction over the offences it has established in accordance with article 3, paragraph 1, when the alleged offender is present in its territory and it does not extradite him to another Party on the ground that the offence has been committed by one of its nationals.
Artigo 10
1. O Estado Parte em cujo território o criminoso presumido estiver presente será obrigado, nos casos aos quais se aplica o Artigo 7, caso não extradite aquela pessoa, sem qualquer exceção e que o delito tenha ou não sido cometido em seu território, a submeter o caso, sem demora, às suas autoridades competentes, para fins de instauração de ação penal, em conformidade com procedimentos previstos na legislação daquele Estado. Essas autoridades tomarão sua decisão da mesma forma que no caso de qualquer outro delito de natureza grave previsto na legislação daquele Estado.
Transferência de procedimentos penais
Há uma sutil diferença entre o procedimento acima descrito, vinculado à inextraditabilidade de nacionais, e a transferência de processos criminais. Aquele é obrigatório, por força da lei (tratados) ou do costume e princípios do direito internacional; esta é voluntária, motivada por peculiaridades probatórias ou conveniência processual, e não se vincula à recusa de extraditar com base no critério da nacionalidade.
A transferência de procedimentos criminais é objeto da Convenção do Conselho da Europa firmada em Estrasburgo em 1972 (aqui) e se faz sempre em homenagem à boa administração da Justiça, observando-se a regra da dupla incriminação.
A premissa desta espécie de cooperação é também a prática de um crime no estrangeiro, isto é, fora do território brasileiro (o continente, suas ilhas e ilhotas, o mar territorial e o espaço aéreo sobrejacente). Normalmente, tal crime estará sob jurisdição estrangeira; às vezes, sujeitar-se-á à jurisdição de mais de um país, simultaneamente. A questão é saber em qual deles há melhores condições para a persecução criminal.
Então, no interesse da administração da Justiça criminal, o Estado que conduz a investigação ou o processo penal decide “renunciar” à sua jurisdição e ao direito de persecução criminal, em favor de outro Estado, para que neste seja conduzido o procedimento e realizado o julgamento do acusado.
No Brasil, nenhuma lei regulamenta o procedimento de transferência para nossos tribunais da questão penal iniciada no estrangeiro. Em tais casos a jurisdição brasileira também é afirmada a partir do exame do artigo 7º do Código Penal e dos tratados aplicáveis à espécie, inclusive as convenções de Viena (narcotráfico), Palermo (crime organizado transnacional) e Mérida (corrupção), que têm regras sobre a ampliação da jurisdição nacional, quando se tem em mira tais crimes. Este também é o caso de vários instrumentos internacionais antiterrorismo, a exemplo do artigo 7º da Convenção Internacional para Supressão do Financiamento do Terrorismo.
O artigo 8º da Convenção das Nações Unidas contra o Narcotráfico (Convenção de Viena) (Decreto 154/1991); o artigo 47 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção ou UNCAC, na sigla em inglês (Convenção de Mérida), ou o artigo 21 da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, ou UNTOC (Convenção de Palermo) (Decreto 5.015/2004) cuidam da transferência de processos penais, a saber:
Artigo 8
Transferência dos Procedimentos Penais
As Partes considerarão a possibilidade de remeterem-se processos penais que dizem respeito aos delitos estabelecidos de acordo com o parágrafo 1 do Artigo 3, quando se estime que essa remissão será no interesse da correta administração da justiça.
Artigo 21
Transferência de processos penais
Os Estados Partes considerarão a possibilidade de transferirem mutuamente os processos relativos a uma infração prevista na presente Convenção, nos casos em que esta transferência seja considerada necessária no interesse da boa administração da justiça e, em especial, quando estejam envolvidas várias jurisdições, a fim de centralizar a instrução dos processos.
Article 47. Transfer of criminal proceedings
States Parties shall consider the possibility of transferring to one another proceedings for the prosecution of an offence established in accordance with this Convention in cases where such transfer is considered to be in the interests of the proper administration of justice, in particular in cases where several jurisdictions are involved, with a view to concentrating the prosecution1.
O artigo 42, §5º, da UNCAC serve a este propósito, porque determina que se um “State Party exercising its jurisdiction under paragraph 1 or 2 of this article has been notified, or has otherwise learned, that any other States Parties are conducting an investigation, prosecution or judicial proceeding in respect of the same conduct, the competent authorities of those States Parties shall, as appropriate, consult one another with a view to coordinating their actions”. Uma das formas de fazê-lo é exatamente mediante a transmissão do procedimento.
O artigo 7º, §5º, da Convenção Internacional para Supressão do Financiamento do Terrorismo (Decreto 5.640/2005) vai na mesma linha, ao dispor que: “Quando mais de um Estado Parte reivindicar jurisdição sobre os delitos previstos no Artigo 2, os Estados Partes interessados deverão empenhar-se para coordenar suas ações apropriadamente, em particular no que se refere às modalidades de assistência jurídica mútua”, o que pode acarretar a transferência de procedimentos.
Como vimos, os tratados de extradição preveem que, em caso de recusa do Estado requerido, com base no critério nacionalidade, este deve processar o foragido em seu território, perante suas próprias cortes. Isto significa que haverá nestes casos a extensão da jurisdição nacional para alcançar crimes cometidos fora de seu território. Algo semelhante ocorre com a transferência voluntária de causas criminais, quando se tem em mira a boa administração da justiça, especialmente em casos de corrupção, terrorismo, lavagem de dinheiro, narcotráfico ou criminalidade organizada transnacional.
A primeira questão: quem é o juiz natural?
Se um brasileiro cometer um crime no exterior e refugiar-se no País, ele não será extraditado. Isto é certo. Pergunta-se então: o Brasil terá jurisdição para julgar tal crime?
Esta pergunta, como vimos, exige o exame do artigo 7º do CP e dos tratados eventualmente aplicáveis ao caso concreto. Se respondida afirmativamente, em função do princípio “aut dedere aut iudicare”, surgem as questões centrais deste texto:
a) qual o juízo competente para julgar o brasileiro inextraditável?
b) qual o juízo competente para conduzir o procedimento criminal transferido para o Brasil?
Determinação da competência territorial
Não oferece dificuldade a identificação do juízo territorialmente competente para o julgamento do brasileiro inextraditável, e para a condução de processo penal “transferido”.
O artigo 88 do CPP define a competência territorial da Justiça brasileira para os crimes cometidos no exterior:
Art. 88. No processo por crimes praticados fora do território brasileiro, será competente o juízo da Capital do Estado onde houver por último residido o acusado. Se este nunca tiver residido no Brasil, será competente o juízo da Capital da República.
Assim, em regra, um crime praticado fora do território brasileiro será julgado na capital de um dos Estados da Federação ou em Brasília, a capital federal.
Tomando o caso de E.D.N. como exemplo, a ação penal deve ter curso em São Paulo pois foi neste Estado o último local de residência do réu, antes de mudar-se para o Japão.
A questão fundamental neste texto: competência estadual ou federal?
De quem é a competência ratione materiae para processar e julgar um crime cometido no exterior, fora das hipóteses do inciso V (crimes à distância) e do inciso IX (crimes a bordo de navios ou aeronaves), do artigo 109 da Constituição Federal?
A questão vem à tona quando se tem em mira o artigo 47 da Convenção de Mérida, ou o artigo 21 da Convenção de Palermo, ou o artigo 8º da Convenção de Viena de 1988, que tratam da transferência de procedimentos penais, assim como quando se tem em mira ações criminais que devam aqui tramitar em função da impossibilidade de extradição de nacionais. A quem cabe tocá-las?
Quando se trata de crime previsto em convenção internacional da qual o Brasil seja parte e que tenha sido cometido no território de duas ou mais jurisdições, uma delas sendo a brasileira, não há dúvida: a competência é federal, com base no art. 109, V, da CF. Tampouco há qualquer incerteza quanto à existência de competência federal quando o crime é praticado a bordo de navio ou aeronave aqui registrados, que estejam no exterior. O mesmo se diga quando o crime for cometido no exterior contra bens, interesses ou serviços da União, suas empresas públicas ou autarquias, caso em que a solução está no art. 109, IV, da CF.
Porém, qual é a solução nos demais casos, que abarcam os crimes praticados inteiramente no exterior, em solo estrangeiro? Os tribunais têm afirmado a competência da Justiça Estadual. Foi assim no caso E.D.N.,  brasileiro inextraditável, no qual o TJ/SP entendeu que a ação penal deveria tramitar no tribunal do júri da comarca da capital paulista. Veja, por todos, a decisão da 3ª Seção do STJ no Conflito de Competência 104.342/SP, publicada em 26/08/2009:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. HOMICÍDIOS QUALIFICADOS. CRIMES PERPETRADOS POR BRASILEIRO, JUNTAMENTE COM ESTRANGEIROS, NA CIDADE DE RIVERA – REPÚBLICA ORIENTAL DO URUGUAI. REGIÃO FRONTEIRIÇA. VÍTIMAS. POLICIAIS CIVIS BRASILEIROS. RESIDENTES EM SANTANA DO LIVRAMENTO/RS. EXTRATERRITORIALIDADE. AGENTE BRASILEIRO, QUE INGRESSOU NO PAÍS. ÚLTIMO DOMICÍLIO. CIDADE DE RIBEIRÃO PRETO/SP. O ITER CRIMINIS OCORREU NO ESTRANGEIRO. 1. Os crimes em análise teriam sido cometidos por brasileiro, juntamente com uruguaios, na cidade de Rivera – República Oriental do Uruguai, que faz fronteira com o Brasil. 2. Aplica-se a extraterritorialidade prevista no art. 7.º , inciso II , alínea b , e § 2.º, alínea a, do Código Penal , se o crime foi praticado por brasileiro no estrangeiro e, posteriormente, o agente ingressou em território nacional. 3. Nos termos do art. 88 do Código de Processo Penal , sendo a cidade de Ribeirão Preto/SP o último domicílio do indiciado, é patente a competência do Juízo da Capital do Estado de São Paulo.4. Afasta-se a competência da Justiça Federal, tendo em vista a inexistência de qualquer hipótese prevista no art. 109 da Carta da Republica , principalmente, porque todo o iter criminis dos homicídios ocorreu no estrangeiro. 5. Conflito conhecido para declarar a competência de uma das Varas do Júri da Comarca de São Paulo/SP. (STJ, 3ª Seção. CC 104.342/SP, p. em 26/08/2009).
Apesar disto, num caso com premissas muito semelhantes, julgado em 2002, a 6ª Turma do STJ decidira em sentido oposto:
HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. COMPETÊNCIA. HOMICÍDIO CUJA EXECUÇÃO SE INICIOU NO BRASIL E O RESULTADO SE ULTIMOU NO EXTERIOR. PRINCÍPIO DA EXTRATERRITORIALIDADE. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.
1. O crime cometido, no estrangeiro, contra brasileiro ou por brasileiro, é da competência da Justiça Brasileira e, nesta, da Justiça Federal, a teor da norma inserta no inciso IV do artigo 109 da Constituição Federal, por força dos princípios da personalidade e da defesa, que, ao lado do princípio da justiça universal, informam a extraterritorialidade da lei penal brasileira (Código Penal, artigo 7º, inciso II, alínea “b”, e parágrafo 3º) e são, em ultima ratio, expressões da necessidade do Estado de proteger e tutelar, de modo especial, certos bens e interesses. O atendimento dessa necessidade é, precisamente, o que produz o interesse da União, em detrimento do qual o crime cometido, no estrangeiro, contra ou por brasileiro é também praticado.
2. Por igual, compete à Justiça Federal julgar os crimes “previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente.” (Constituição Federal, artigo 109, inciso V).
3. Julgados já os executores do homicídio, a competência para o julgamento do mandante, quando questionada isoladamente, resta insulada no tema da continência. 4. Ordem denegada. (STJ, HC 18.307/MT, Rel. Ministro Hamilton Carvalhido, 6ª Turma, julgado em 18/04/2002, DJ 10/03/2003, p. 313).
Um brevíssimo exemplo para facilitar
Tomemos então um caso real como exemplo. “A”, cidadão brasileiro comum, comete crime de estelionato na Itália e foge para o Brasil. Presente está o critério da dupla incriminação, não há bis in idem nem extinção de punibilidade. As premissas para a extraterritorialidade da lei penal brasileira foram cumpridas. Logo, o Brasil tem jurisdição, segundo o art. 7° do CP.
Porém, o estelionato não está previsto em qualquer convenção internacional da qual o Brasil seja parte. Ademais, o crime ocorreu inteiramente em território italiano, e a vítima não é brasileira. Portanto, não se aplica o inciso V do art. 109 da CF. Tampouco há incidência do art. 109, inciso IX, CF, porque o crime não foi praticado em navio nem aeronave,
Duas perguntas se impõem de imediato:
a) o Brasil tem jurisdição? sim, por força do princípio aut dedere aut iudicare, segundo o qual o Estado que não extradita seus nacionais tem a obrigação de processá-los perante suas próprias cortes, para evitar a impunidade.
b) qual a Justiça brasileira competente? A Justiça Federal. Mas esta resposta exige um exame mais profundo.
Pois bem. A ideia que ora sustento – e que, creio, ainda não foi testada nos tribunais brasileiros – é a seguinte:
1. A responsabilidade pela observância do princípio aut dedere aut iudicare (extraditare vel iudicare) é da União, pois é a República Federativa do Brasil quem tem personalidade de direito internacional público. No caso em tela, a obrigação de processar o brasileiro inextraditável está clara no Tratado de Extradição Brasil/Itália. Disso resulta o interesse da União na causa, mas não só.
2. No Brasil, todos os casos de cooperação passiva são de competência federal, à luz do artigo 105 c/c o artigo 109, X, da CF, que dá aos juízes federais a tarefa de executar rogatórias recebidas pelo Brasil, após a chancela do STJ. Quando uma rogatória merece o exequatur do STJ, seu cumprimento se dá pelo juiz federal, justamente porque há interesse da União em manter boas relações diplomáticas com suas contrapartes e poder pedir reciprocidade em casos de interesse do Estado brasileiro.
3. Devido à sua estrutura federativa, o Estado nacional brasileiro não controla as Justiças dos Estados-membros. Logo, a entrega da jurisdição em tais casos às unidades federadas pode induzir a responsabilidade internacional da República Federativa do Brasil, em decorrência de eventual inércia de seus entes formadores. Se o Estado nacional é o responsável perante a comunidade das nações, é do interesse da União a persecução criminal.
4. O procedimento de transferência de procedimento criminal é uma forma de cooperação penal passiva e equipara-se às rogatórias passivas quanto à atribuição e competência. Logo, como todas as demais espécies de assistência passiva (sendo exemplo clássico a rogatória), a competência é federal.
5. Mutatis mutandi, a mesma vinculação processual deve ocorrer em razão da vedação de extradição de nacionais. Quando o Brasil é o Estado requerido, cabe ao STF autorizar ou não a extradição de tal trânsfuga, pois é evidente o interesse nacional (da União) na manutenção de boas relações internacionais. Outro forte indício do interesse da União está na delegação de atos instrutórios da extradição passiva a juízes federais, com fundamento no artigo 211 do Regimento Interno do STF: “É facultado ao Relator delegar o interrogatório do extraditando a juiz do local onde estiver preso”. Por “juiz do local” tem-se entendido o juiz federal. É o que se deu, por exemplo, na Extradição 835, requerida pela República Argentina e julgada pelo STF em 2002. Idem nas Extradições 1122 (Israel), 1114 (China) e 1165 (Espanha). Quase sempre é assim, salvo nas hipóteses em que o extraditando está preso em localidade distante da sede da Justiça Federal naquela região.
6. O processo penal contra um cidadão brasileiro que não tenha sido extraditado em função de sua nacionalidade (art. 5º, LI, CF) é uma “causa referente à nacionalidade”, o que faz valer a competência da Justiça Federal, com base no art. 109, X, da CF;
7. Além disso, a competência federal também resulta do fato de que se tem, em muitos casos, uma causa fundada em tratado internacional (artigo 109, inciso III, CF). Há hoje 27 tratados de extradição de que o Brasil é parte e outros tantos acordos multilaterais gerais (como as Convenções de Mérida e Palermo) ou específicos de extradição (como os acordos do Mercosul e da CPLP). Ademais, o instituto da transferência de procedimentos criminais também é objeto de vários outros tratados, como já demonstramos. Observe-se que a cláusula do inciso III do art. 109 da CF não costuma ser invocada para firmar a competência criminal federal, mas este é exatamente o caso aqui porque a causa (penal) a ser proposta perante o Poder Judiciário brasileiro se viabiliza em razão dos tratados que o País firmou neste campo. Logo, a ação penal a ser proposta se funda em tratado internacional que faculta a transferência de procedimentos criminais.

A competência federal no caso proposto: Brasil-Itália
Na hipótese em exame (estelionato praticado na Itália; réu brasileiro que foge para o Brasil), há dois tratados de cooperação firmados pelo nosso País e aquela nação europeia:
a) o MLAT Brasil/Itália, objeto do Decreto n. 862/1993; e
b) o Tratado de Extradição, objeto do Decreto 863/1993.
Conforme o art. 6º do tratado ítalo-brasileiro de extradição,

Artigo 6
Recusa Facultativa da Extradição
1. Quando a pessoa reclamada, no momento do recebimento do pedido, for nacional do Estado requerido, este não será obrigado a entregá-la. Neste caso, não sendo concedida a extradição, a Parte requerida, a pedido da Parte requerente, submeterá o caso às suas autoridades competentes para eventual instauração de procedimento penal. Para tal finalidade, a Parte requerente deverá fornecer os elementos úteis. A Parte requerida comunicará sem demora o andamento dado à causa e, posteriormente, a decisão final.

Sempre que houver um tratado com cláusula semelhante, a obrigação de processar criminalmente o brasileiro não extraditado (nem extraditável) será do Brasil, conforme a máxima aut dedere aut iudicare.

A jurisdição brasileira se afirma, caso preenchidos os requisitos do artigo 7º do CP (extraterritorialidade da lei penal pátria), ou alternativamente por força do próprio tratado, que viabilizará o processo penal (artigo 1º, inciso I, do CPP).

Esse mesmo tratado será o fundamento procedimental para que a ação penal tramite perante um tribunal brasileiro, o que faz surgir a competência federal, por força do artigo 109, inciso III, da Constituição de 1988, devido à existência de causa fundada em tratado.

Conclusão
Nos crimes cometidos inteiramente no território brasileiro, a competência será firmada a partir do artigo 109 da CF. Em regra estará a cargo da Justiça Estadual e do seu respectivo Ministério Público; e
Nos crimes cometidos parcialmente no território brasileiro e parcialmente no exterior (crimes à distância, consumados ou tentados), a competência será da Justiça Estadual, salvo se esta espécie delitiva for objeto de algum tratado firmado pelo Brasil (art. 109, V, CF);

Porém, nos crimes cometidos no exterior ou no estrangeiro e transferidos, por qualquer motivo (seja por denegação de extradição ou em nome da boa administração da Justiça), para a jurisdição brasileira, a competência para o processo e julgamento será da Justiça Federal (art. 109, III e X, CF).
———————–
1 Uma breve nota: desconsidere a péssima versão em português do texto brasileiro da Convenção de Mérida, que torna quase incompreensível o propósito do artigo 47. Para saber mais, veja este artigo: http://jus.com.br/artigos/12361/a-norma-fantasma-do-artigo-47-da-convencao-de-merida#ixzz2iXwtIgHU
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