Por Vladimir Aras
Já o protesto realizado no Rio de Janeiro, em 27/jul, contra a Igreja Católica converteu-se numa agressão aos católicos, dado o conteúdo sexual, mais do que pornográfico, do ato que envolveu simulação de masturbação com uma imagem e introdução real de um crucifixo no ânus de um dos manifestantes. À luz do dia, em Copacabana, diante de uma multidão, inclusive crianças, adolescentes e senhoras.
Sou pela liberdade de manifestação e expressão, mas há alguns limites civilizatórios a respeitar, limites estes traçados em tratados de direitos humanos. O arts. 12 e 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) (Decreto 678/1991) não deixam dúvidas sobre a necessidade de respeitar e fazer respeitar a liberdade de consciência e de religião, no mesmo patamar que a liberdade de expressão e de manifestação do pensamento:
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.
2. Ninguém pode ser submetido a medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças.
3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.
1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar:
5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.
2, “qualquer apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou a violência.”.
Código Penal brasileiro, qualquer ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo:
a) não se impõe prisão em flagrante se o autor do fato se comprometer a comparecer ao Juizado Especial Criminal assim que notificado (art. 61)
b) não se impõe o pagamento de fiança para obtenção de liberdade (art. 61)
c) permite-se a transação penal (acordo com o Ministério Público), que implica a imposição imediata de pena não privativa de liberdade, normalmente uma prestação pecuniária ou prestação de serviços à comunidade (art. 76)
d) é possível a suspensão condicional do processo, o que implica a sustação do andamento da ação penal, mediante o cumprimento de certas condições previstas em lei (art. 89 da Lei 9.099/1995)
e) na remota hipótese de condenação, caberá a conversão da pena privativa de liberdade em pena alternativa (art. 44, inciso I, do CP).
f) cabe sursis, isto é, a suspensão condicional da pena (art. 77 do CP)
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Quanto ao crime de ato obsceno (art. 233 do CP), há um ótimo precedente do STF, que considerou atípica a conduta do diretor teatral Gerald Thomas, denunciado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. Após a apresentação de sua montagem de Tristão e Isolda, Thomas foi vaiado e, em represália ao público, simulou uma masturbação e depois mostrou as nádegas ao público. No HC 83.996/RJ, impetrado contra a decisão da Turma Recursal Criminal do Rio de Janeiro, o Supremo pontificou:
Logo depois do voto de Ellen Gracie, o ministro Gilmar Mendes complementou: “[…] devemos ter, talvez, uma cautela para não tentar criminalizar as condutas ou solver, mediante o direito penal, conflitos que podem ser resolvidos de outra maneira por uma sociedade madura. Daí ter colocado no meu voto a possibilidade de que a repulsa, a reprovação a semelhante atitude se traduza também por mecanismos sociais outros que não aqueles decorrentes da aplicação do direito penal”. Muito bem dito.
Maior penalista brasileiro, o papa do direito penal, Nelson Hungria ensinava – ainda ensina – em seus Comentários ao Código Penal que “Não é indispensável que o ato represente uma expansão erótica ou vise à excitação ou lascívia alheia; desde que, sob o prisma objetivo, se apresente em colisão com o pudor público, ou idônea a suscitar o sentimento comum de vergonha (verecundia), pouco importa que o agente embora deva ter a consciência disso, haja procedido, por exemplo, jocandi animo ou demonstrandi causa, ou para exercer uma vingança, sem qualquer intuito de lubricidade”.
Outro penalista de renome, Magalhães Noronha concorda: “Falando-se em ato sexual, é mister ter presente não ser imprescindível que ele sirva ao desafogo da luxúria ou sensualidade do agente, como, aliás, já se disse no atentado violento ao pudor. Basta que conflite com o pudor público, pouco importando o móvel do agente: lubricidade, gracejo, vingança”.
Sobre o conceito de obscenidade, é de se lembrar a lição do ministro Aliomar Baleeiro – citado por Mendes no HC 83.996/RJ: “Mas o conceito de obsceno, imoral, contrário aos bons costumes é condicionado ao local e à época. Inúmeras atitudes aceitas no passado são repudiadas hoje, do mesmo modo que aceitamos sem pestanejar procedimentos repugnantes às gerações anteriores” (STF, RMS 18.534, rel. Aliomar Baleeiro).
Assim, embora a conduta dos manifestantes de 27/jul não tenha tido conteúdo lúbrico ou lascivo (melhor dizendo, não tenha tido o intuito de provocar tais sentimentos), parece ter havido ofensa ao pudor público médio, naquele contexto social. Era um sábado, os manifestantes tinham conhecimento de que a JMJ era um acontecimento religioso. Havia senhoras crentes, homens de vida dedicada à religião, sacerdotes, freiras e menores no local. A performance foi em cena aberta, à luz do dia, na presença desse público e de outras pessoas de vários backgrounds culturais, vindas de diversas partes do mundo, onde os conceitos de pudor público podem ser mais rigorosos que os vigentes na sociedade brasileira. Definitivamente, não era um clube noturno nem um teatro.
Os manifestantes podiam protestar daquele jeito? Sim, podiam, mas não ali. Os manifestantes podiam protestar ali? Sim, mas não daquele jeito. Este é o sentido, imagino, do artigo 13, n. 2, da Convenção Americana de Direitos Humanos:
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar:
a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
A História registra incontáveis episódios de perseguição por motivos de religião. A Igreja Católica é uma das mais profusas nesta prática, tanto por ter sido vítima nos primeiros anos do Cristianismo quanto por ter-se convertido em algoz em inúmeras cruzadas e autos de fé ao longo de dois milênios. De logo nos vem a memória a Inquisição, que perseguia judeus e muçulmanos, apóstatas e hereges em geral. O Martelo das Feiticeiras (Malleus Maleficarum), de 1487, é um dos marcos da literatura religiosa dedicada à caça às bruxas na Idade Moderna europeia. Por sua vez, o Directorium Inquisitorium de Nicolau Eymerich (1378) e a Copilación de las Instruciónes del Offico de la Sancta Inquisición, do inquisidor
Tomás de Torquemada (1420-1498) entraram para os anais do processo penal inquisitivo como horrendos manuais que ensinavam a torturar para obter confissões.
Também um caso de intolerância religiosa e preconceito racial, no sentido que lhe deu o STF no caso Ellwanger, oportunidade em que a Corte assentou:
13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica (STF, HC 82.424/RS, rel. Moreira Alves, rel. para o acórdão Maurício Corrêa, j. em 17/09/2003).
Mas de todos os relatos de caçadas “em nome de Deus”, um dos meus “preferidos” – se assim se pode dizer – é a perseguição dos católicos aos cátaros, cristãos considerados heréticos pela Igreja de Roma. Em 1209, o papa Inocêncio III ordenou o início da Cruzada Albigense que durou 35 anos e resultou no massacre de milhares de cátaros no sul da França e no norte da Itália. Só porque pensavam diferente da doutrina de Roma.
Certo então que a Igreja Católica cometeu muitos abusos ao longo de sua história milenar. Mas o que aquelas pessoas que participavam pacífica e ordeiramente da JMJ no Rio em 2013 têm a ver com isto? Nada! A não ser que você acredite em reencarnação…
Fonte: Wikipedia
Foi em 1995 que o bispo Sérgio von Helder, da Igreja Universal do Reino de Deus, fez a sua demonstração de intolerância religiosa em relação aos católicos. No programa Despertar da Fé exibido em 12 de outubro daquele ano (dia da padroeira do Brasil), o sacerdote chutou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Para ele era apenas um “boneco feio, horrível e desgraçado”.
Embora se tratasse de uma imagem não consagrada (e não um objeto de culto em sentido estrito), o bispo foi processado pelo Ministério Público de São Paulo pelos crimes do artigo 20 da Lei 7.716/1989 e do artigo 208 do CP, tendo sido condenado por ambas as infrações penais a 2 meses e 2 anos de detenção. Já estávamos em 1997. Em grau de recurso, o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a condenação, porém reconheceu a prescrição do crime de vilipêndio. A pena privativa de liberdade foi suspensa mediante sursis.
Não duvidemos. A intolerância religiosa é um problema de direitos humanos. Os principais alvos têm sido as religiões afrobrasileiras, tanto é que no no art. 158 do Código Penal de 1890, o primeiro da
República, constava:
Penas – de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.
Ainda hoje o preconceito contra tais religiões é uma realidade. Por isto, a Lei 11.635/2007 estabeleceu o 21 de janeiro como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Naquele dia, no ano 2000, a respeitada ialorixá Gildásia dos Santos e Santos – Mãe Gilda de Ogum, morreu vítima de infarto, em Salvador. Pouco antes, em outubro de 1999, o jornal Folha Universal publicara a reportagem “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. A fotografia que ilustrava a matéria era da mãe-de-santo. Dias depois, seu terreiro, o Ilê Axé Abassá de Ogum, em Itapuã, foi invadido por fiéis neopentecostais. Aquele episódio resultou na condenação da IURD ao pagamento de danos morais à família da falecida ialorixá (STJ, 4ª Turma, RESP 913.131/BA, j. em 16/09/2008). Trata-se de um marco na luta contra a discriminação religiosa, alcançado graças à ong Koinonia – Presença Ecumênica e Serviço (aqui).
E, então, como fica o caso do protesto antirreligioso durante a Marcha das Vadias em Copacabana? Ali pode ter havido o crime de ato obsceno (veja aqui algumas fotos nas quais um crucifixo é introduzido num manifestante e a imagem de uma santa é usada num “ritual” de masturbação), ou o delito de vilipêndio a ato ou a objeto religioso, ou o crime de preconceito do art. 20 da Lei 7.716/1989. Ou todos juntos em concurso. Ou nada. Pode ter sido apenas um forma tosca – bem tosca – de protestar, ao modo dos Orcs. O fato é que mesmo blogs feministas criticaram a performance (“A dimensão do estrago”).
O tema é realmente controvertido. Veja e decida sabendo que, mesmo que alguém venha a ser denunciado e punido pelo grotesco “auto de fé” de Copacabana, ninguém será preso. Não estamos na Rússia do meu xará Владимир Пyтин. Amém.