Cárcere privado

O sequestrador de Ohio

Aqui a expressão “dignidade da pessoa humana” tem titulares muito evidentes: o réu como sempre, mas, principalmente, as mulheres vítimas.

Por Vladimir Aras

Saiu em 1º/agosto a sentença de Ariel Castro, o sequestrador de Cleveland, que manteve em cárcere privado três mulheres que ele mesmo sequestrara entre 2002 e 2004. Duas eram adolescentes quando foram capturadas. Tinham 16 e 14 anos.
 
Aqui a expressão “dignidade da pessoa humana” tem titulares muito evidentes: o réu como sempre, mas, principalmente, as mulheres vítimas. Não há como negar: este é um atroz episódio de violência de gênero, que se encaixa naquilo que a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará de 1994) quer evitar.
 
Art. 1º. Para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado.
 
Não nos esqueçamos disto, já que é habitual no Brasil o discurso unilateral (daí caolho), que só enxerga um lado, o do réu. Neste Blog o garantismo é integral. As vítimas também têm vez, como teve Maria da Penha Maia Fernandes, mas só depois que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) considerou o Brasil culpado por violação de direitos humanos e por negar-lhe proteção judicial, tendo então recomendado ao País o cumprimento do dever de persecução criminal contra seu agressor. Aqui a decisão da Comissão IDH/OEA no Caso 12.051 (2000).
 
Fecho o parêntese. Voltemos a Ohio à história do motorista do ônibus escolar (!) que servia àquela região de Cleveland.
 
Milhares de dias foram subtraídos das vidas de Amanda Berry, Georgina DeJesus e Michelle Knight. Por quase uma década, elas viveram como escravas sexuais de Ariel Castro. Mais do que isto no caso de Michelle, que permaneceu enclausurada por 11 anos. Três famílias destruídas pela dor da ausência e pelo horror da falta de informação. Ponha-se no lugar dos pais: – O que aconteceu com minha filha?
Na verdade, são quatro as vítimas (as três mulheres e a filha de uma delas com o abusador, nascida no cativeiro como se fosse um bichinho). Todas foram libertadas da terrível masmorra em 6 de maio de 2013.
 
Menos de três meses depois, a Justiça de Ohio já proferiu sua sentença condenatória. No Brasil teríamos longos debates sobre o sexo dos anjos, morosas discussões acadêmicas, extensos arrazoados forenses em estilo barroco. Outra vida passaria na vida das vítimas. O caso Pimenta Neves é um exemplo: 10 anos de espera (veja aqui). Em nosso País, Ariel Castro provavelmente seria solto para responder ao processo em liberdade, logo nos primeiros dias da investigação – que duraria meses – ou durante a tramitação da ação penal – que tardaria anos. Neste último caso, qualquer soltura seria justa, porque o réu tampouco pode esperar até as calendas gregas que seu julgamento ocorra. Foi mais ou menos assim com outro abusador de mulheres, o dr. Roger Abdelmassih, que, após quatro meses de prisão, recebeu um habeas corpus do STF e ganhou o mundo. Agora suas vítimas sequer têm esperança de vê-lo cumprir a enorme pena que uma juíza reconhecidamente garantista, Kenarik Boujikian Felippe, aplicou-lhe: 278 anos de reclusão.
 
Claro que há muitos réus comuns presos além do tempo devido nas nossas masmorras, do horrendo sistema penitenciário brasileiro. Mas isto não infirma uma realidade: ainda somos uma país em que a Lei de Gerson é cumprida; as leis criminais não. Por isto, não resisto a fazer algumas notas sobre o caso de Ohio, tão rapidamente resolvido. Tal solução processual célere só foi possível porque:
a) não existe inquérito-papelada na Polícia americana. Não se conhece investigação cartorial como a nossa. Os policiais, que em regra não são juristas, cuidam do que importa (quem, quando, como, onde e por quê?), e não de formalidades inúteis e protocolos morosos.
 
b) por sua vez, o Ministério Público americano tem ampla liberdade de negociação penal (princípio da oportunidade). Aqui nos amarramos a questiúnculas procedimentais por gosto ou obrigação legal.
c) os juízes criminais norte-americanos decidem e o que eles decidem vale desde então sem o império parnasiano das formalidades inventadas ou alcantiladas e das nulidades de ocasião, o que torna a atividade judicante nos países de common law muito diferente do modelo inepto imposto aos magistrados brasileiros, especialmente os de primeiro grau, por nossa legislação ineficiente e por nossa cultura jurídica baseada na desculpologia.
 
Preso em maio, Ariel Castro compareceu à audiência de apresentação (arraignment) no mesmo mês e declarou-se inocente. Sua fiança foi fixada em oito milhões de dólares. Um exagero, é claro. Mas nada que se aproxime do irrisório montante das fianças brasileiras, estimadas em valores tão desproporcionais (para baixo) quanto a vultosa soma que se exigiu de Castro no condado de Cuayahoga.
 
Diante da prisão preventiva e das incontáveis provas rapidamente reunidas contra ele em sucessivos indictments perante o grand jury (jurados de acusação), já estávamos em 26 de julho. Foi quando o acusado mudou de ideia e resolveu fazer uma guilty plea (confissão), graças a um plea bargain (acordo penal) firmado com a Promotoria de Cuyahoga County. Com isto, o réu reconheceu 937 dos 977 (!) reiterados fatos ilícitos dos quais era acusado. Como chegaram a essa quantidade estrondosa de infrações? Clique aqui para ler o texto integral do plea agreement de Ariel Castro, com todas as acusações lançadas contra o réu, entre elas 446 estupros. Ali se vê que, em troca da confissão, Castro livrou-se da pena de morte, mas concordou em ser classificado como “abusador sexual violento” (sexually violent predator) e não escapou da perpétua “numa cela sem chaves”. Jamais terá direito a progressão de regime ou a livramento condicional.
 
Sou contra a pena de morte e o encarceramento perpétuo de quem quer que seja. Acho-as degradantes. Mas os favoráveis a tais sanções mais drásticas perguntam: o que fazer com criminosos como Ariel Castro? Cada democracia que estabeleça seus limites. O fato incontestável é que as vítimas foram condenadas à prisão, sem o devido processo legal. Dificilmente terão uma vida normal, mesmo fora do cativeiro.
 
Voltando ao ponto, digo que a vantagem dos acordos penais em casos irrefutáveis como este de Cleveland é evitar julgamentos caríssimos, que durariam meses e que levariam a penas duríssimas. Neste caso, a pena capital, permitida pela legislação de Ohio. A vantagem adicional do plea deal é que as vítimas ficam livres da inquirição (cross examination) em sessão pública, momento processual que é sempre doloroso para quem é inquirido, especialmente para quem passou por um tormento como as três moças de Cleveland. Assim, o acordo penal evita que as ofendidas sejam revitimizadas.
 
No contexto consensual, para o réu, o devido processo legal torna-se sumário, mas sua confissão só é admitida pelo juiz depois de confirmar sua voluntariedade e que seu consentimento é informado (ciência consciente), assim como após verificar que a confissão, respaldada pela defesa técnica, está apoiada em elementos probatórios concretos apresentados pelo Ministério Público ao juízo. Abusos podem ocorrer em tal procedimento, mas o processo penal longo também pode ser injusto e frequentemente o é, com condenações indevidas ou absolvições descabidas.
 
Como Ariel Castro confessou voluntariamente parte dos crimes que cometeu, o assunto está encerrado. Não haverá um julgamento convencional (trial) por meio de júri. O réu renunciou ao julgamento pelos seus pares (waiver of jury trial, aqui). Tampouco haverá prazos para recursos a perder de vista para instâncias sem fim. No Brasil, a partir do julgamento do HC 84.078/MG (STF, rel. Eros Grau, 2009) temos quatro. Lá, somente duas (duplo grau!) e, muito excepcionalmente, alguém consegue alçar um caso criminal à Suprema Corte em Washington. O fato é que, no acordo firmado com a assistência de seu advogado, Castro renunciou ao direito de apelar, o que é uma consequência lógica da pactuação penal. Isto também é o devido processo legal.
 
Além da prisão perpétua, Ariel Castro não poderá escrever nenhum livro sobre o caso ou vender direitos de sua história macabra para um roteiro de cinema. É uma consequência de leis do tipo Son of Sam laws – referência ao serial killer David Berkowitz, que se autodenominou “Filho de Sam” e aterrorizou Nova York nos anos 1970. Tais leis proíbem que condenados lucrem com sua carreira criminal ou com a fama obtida na sociedade do espetáculo. Pelo acordo, Castro também sofreu confisco de US$22 mil e de sua casa, considerada “instrumento do crime”. Ou seja, para ele valeu a máxima: o crime não compensa. Crime doesn’t pay. Mesmo.
 
Outro ponto interessante do processo penal norte-americano — e que também se viu no caso Castro — é a existência da audiência de sentencing. O veredito (verdict) do caso saiu em 26/jul, apenas com o sentido do julgado. O réu fora condenado por estupros, cárcere privado, lesões corporais graves e uma série de outros delitos. Para proferir a sentença, há um momento distinto, quando é declarada a pena aplicada. Para isto, o juiz marca uma nova audiência. Entre um e outro momento (veredito e fixação da reprimenda), a autoridade judicial colhe elementos necessários à dosimetria da pena. O juiz ouve pessoas que o auxiliam a individualizar a pena. Foi o que aconteceu neste 1º de agosto, quando foram inquiridos peritos, policiais, as partes, uma das vítimas e familiares das demais ofendidas, de modo a se chegar ao tamanho da pena, observados os critérios garantistas de necessidade e suficiência. Aqui no Brasil o juiz tem de adivinhar as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP. Lá não: existe uma fase própria de aferição dos elementos dosimétricos. O juiz não decide às cegas.
 
Uma última comparação. As três moças passaram entre 9 e 11 anos encarceradas com o eu-ia-dizer-monstro-de Cleveland-mas-não-direi. Se Ariel Castro fosse réu no Brasil, haveria o risco de ele ficar menos tempo preso em regime fechado do que as suas vítimas.
O crime de sequestro e cárcere privado está previsto no art. 148 do CP brasileiro. A pena para quem priva outrem de sua liberdade e causa à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da detenção, grave sofrimento físico ou moral, é de 2 a 8 anos de reclusão. Foram quatro as vítimas. Somemos a isto os crimes de lesões corporais (vários) e mais de 400 estupros, cuja pena varia de 6 a 10 anos (art. 213 do CP). Foram incontáveis violações sexuais ao longo de uma década, numa sucessão de eventos capaz de atormentar um masculinista.
 
Aí está. Por mais paradoxal que pareça para alguns, o direito penal também serve à tutela dos direitos humanos. Serve à proteção das vítimas atuais e evitação de futuras vítimas. Não por outro motivo a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Comissão em Washington têm determinado ou recomendado aos Estados Parte da CADH a persecução criminal em casos que tais. É um dever do Estado, um direito de cada cidadão. Foi o que se viu em Escher vs. Brasil, em Sétimo Garibaldi vs. Brasil, em Damião Ximenes vs. Brasil, em Gomes Lund vs. Brasil e em Maria da Penha vs. Brasil.
 
Pois bem. A horrenda epopeia criminosa de Ariel Castro está encerrada. Seu tormento carcerário – que não deve alegrar ninguém – começa agora. A Justiça norte-americana aplicou-lhe a pena de prisão perpétua e outros mil anos de reclusão. Pelo visto, Castro terá de reencarnar muitas vezes..
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