Reiterando sua jurisprudência, a Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS) decidiu que o exame de alcoolemia pode ser feito contra a vontade do motorista que dirige embriagado.
A decisão foi tomada pela SCOTUS em 17 de abril de 2013 no caso Missouri v. McNeely.
Nos EUA, havendo justa causa, o juiz competente pode obrigar o suspeito a fornecer amostra de material biológico (sangue ou urina) para o exame de alcoolemia. A realização da coleta, baseada na existência de fundado motivo, aferido por um magistrado independente, não viola a 4ª Emenda à Constituição americana, que integra o Bill of Rights de 1789:
The right of the people to be secure in their persons, houses, papers, and effects, against unreasonable searches and seizures, shall not be violated, and no Warrants shall issue, but upon probable cause, supported by Oath or affirmation, and particularly describing the place to be searched, and the persons or things to be seized.
Além disso, segundo aquela Corte, excepcionalmente, a Polícia americana pode providenciar a “apreensão” do material orgânico diretamente, sem mandado (warrantless search), quando estiver diante de uma situação de “agora ou nunca”.
No Brasil, a posição que tem prevalecido é a de que isto não seria possível, nem com ordem judicial, pois violaria a garantia contra a auto-incriminação. Este foi o entendimento da Procuradoria-Geral da República (PGR), do qual divirjo, no pronunciamento que lançou na ADI 4103 (aqui). De acordo com a Resolução 432/2013 do Contran somente é obrigatória “a realização do exame de alcoolemia para as vítimas fatais de acidentes de trânsito“.
No caso Missouri v. McNeely (2013) (aqui), a SCOTUS rediscutia se é possível a coleta involuntária de sangue sem mandado judicial. Este ponto é fundamental: não foi objeto de debate a possibilidade de o Judiciário americano obrigar o suspeito a fornecer amostras de sangue. Isto é factível há muito tempo: desde que haja justa causa (probable cause) expede-se um mandado judicial (warrant). O tema a ser decidido, portanto, era mais restrito: se a Polícia poderia obter coercitivamente tal prova biológica, sem mandado.
Em Schmerber v. California (1966) (aqui), a Suprema Corte americana confirmou a validade de um teste de alcoolemia realizado sem mandado judicial, para a comprovação de que o suspeito dirigia embriagado. Na ocasião, o policial que prendeu Schmerber “might reasonably have believed that he was confronted with an emergency, in which the delay necessary to obtain a warrant, under the circumstances, threatened the destruction of evidence.”
Tyler G. McNeely foi preso por dirigir em estado de embriaguez (drunk driving ou drive under influence) em outubro de 2010. O motorista recusou-se a soprar o etilômetro e a submeter-se a exame de sangue. Mesmo não dispondo de um mandado, o policial Mark Winder ordenou que profissionais médicos fizessem a coleta hematológica. Segundo McNeely, o Estado violou o seu direito constitucional de não ser submetido a “buscas e apreensões” injustificadas, conforme a 4ª Emenda. O Ministério Público do Estado do Missouri rebateu a tese defensiva, alegando que a ação do seu policial fora legítima porque caía na exceção das “exigent circumstances”, algo como o estado de necessidade que surge em situações de flagrante delito, incêndio ou desastre, tal como se vê no art. 5º, inciso XI, da Constituição brasileira.
Ainda segundo o Estado do Missouri, o mandado judicial poderia ser dispensado devido ao risco iminente de desaparecimento da prova da embriaguez, pela dissipação natural do álcool na corrente sanguínea do suspeito. Acrescentou que o exame de sangue era a prova mais eficiente da infração de embriaguez ao volante. Por sua vez, McNeely argumentou que o direito à integridade corporal está no núcleo da 4ª Emenda e afirmou que exames sanguíneos sem mandado judicial são rechaçados em vários Estados americanos, nos quais não haveria dificuldade de aplicar as leis secas (DUI – Drive Under Influence laws), embora neles sempre se exija a expedição de ordem judicial.
A associação civil MADD – Mothers Against Drunk Driving atuou como amicus curiae, ao lado do Missouri.
A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu então, por maioria, de acordo com o voto condutor da ministra Sonia Sotomayor, que “in drunk-driving investigations, the natural dissipation of alcohol in the bloodstream does not constitute an exigency in every case sufficient to justify conducting a blood test without a warrant.” (aqui). Ou seja, não basta que a Polícia alegue que o álcool rapidamente desaparecerá da corrente sanguínea do suspeito para coletar material biológico sem mandado. Buscas sem mandado são uma exceção. A regra é que tal extração se dê sempre após a obtenção de mandado judicial, ou mediante o consentimento do suspeito.
Tal decisão garantista da Suprema Corte norte-americana equilibra o direito individual do motorista suspeito e o direito da sociedade de velar pela segurança viária. O caso Missouri v. McNeely veio na sequência de outro julgado recente do mesmo tribunal, no sentido de limitar o poder punitivo do Estado. No caso Jardines v. Florida (2013) (aqui), com base no voto condutor do ministro Antonin Scalia, a SCOTUS decidiu que a Polícia não pode, sem escusa legítima, aproximar-se do pórtico de uma casa com um cão farejador (drug-sniffing dog) para obter indícios motivadores de uma busca domiciliar. No caso concreto, o réu tinha uma plantação de Cannabis sativa em sua casa. Devido ao seu “jardim” de maconha, o Sr. Jardines foi acusado de narcotráfico. Porém, sua condenação caiu na Suprema Corte em virtude da exclusão da prova material, obtida, segundo se entendeu, mediante a violação da 4ª Emenda à Constituição (direito à privacidade). Em suma, a área frontal e delimitada de uma casa (em inglês, curtilage), como um alpendre, átrio, saguão, varanda, adro ou jardim, só pode ser acessada pela Polícia com mandado judicial.
Em Missouri v. McNeely, o tema de fundo é muito semelhante, pois, em suma, coube ao tribunal decidir sobre a existência ou não de ofensa à referida garantia constitucional, quando a Polícia, agindo sem mandado, obtém diretamente material biológico para exame de alcoolemia para aferir situações de flagrante em delitos de trânsito. Diferentemente do que vem ocorrendo no Brasil, a Justiça americana permite que a coleta se faça validamente mediante ordem judicial. Em consequência da prevenção e da repressão adequadas, nos EUA, os acidentes de trânsito causados por embriaguez ao volante têm caído ano a ano.
Segundo o Portal do Trânsito, “em 2008, enquanto os Estados Unidos obtiveram uma taxa de 12,5 mortes a cada 100.000 habitantes, o Brasil obteve uma taxa de 30,1, sendo que a frota de carros norte americana é o triplo da brasileira”. Dados do Trânsito.BR indicam que o Brasil assiste a 45 mil mortes no trânsito por ano. Em 70% dessas mortes, o fator álcool estava presente. Conforme a MADD, nos Estados Unidos, esse número foi de apenas 10 mil mortos em 2010, em acidentes que custaram US$132 bilhões àquele país. Estimemos os ônus sócio-econômicos dessa criminalidade para um país como o Brasil…
A violência no trânsito neste País clama por uma solução semelhante à norte-americana e à europeia, países de onde importamos a regra relacionada ao direito contra a auto-incriminação, embora renegando as exceções que são lá previstas para a mesma situação. A embriaguez ao volante tem ceifado milhares de vidas todos os anos em nosso País, muitas delas de jovens. As vítimas que ficam com sequelas também contam-se às centenas de milhares. Um quadro de calamidade. Uma sequência de leis de trânsito brasileiras tem tentado resolver um falso problema, baseado na falsa premissa de que o exame de alcoolemia compulsório violaria o direito ao silêncio (direito de não produzir prova contra si mesmo).
Desde 1997, quando foi sanciono o CTB, as reformas legislativas neste ponto se sucedem. Em 2008, veio a Lei 11.305, que pretendia por fim à celeuma. Não pôs. Com a Lei 12.760/2012, o art. 306 do CTB passou a contar com um novo §2º, segundo o qual “a verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova“, que, ampliou, como se isso fosse necessário, os meios de comprovação da embriaguez. Teríamos voltado ao tempo da prova legal ou das provas tarifadas? Com isto, criou-se grande insegurança jurídica porque bastará a prova testemunhal para provar o crime de embriaguez, a partir da equivocada ideia de tolerância zero: nem uma gota sequer de álcool é permitida. Vejam o risco penal: qualquer concentração de álcool pode acabar em condenação criminal!
Se, antes, o art. 306 do CTB exigia comprovação científica de que o condutor tinha mais de 6 decigramas de álcool por litro de sangue, agora basta ao Ministério Público provar que o suspeito conduziu veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa. Tal prova pode ser feita mediante a indicação de quaisquer sinais externos de alteração da capacidade motora, definidos no Anexo II da Resolução 432/2013 do Contran (aqui). São exemplos: sonolência, olhos vermelhos, vômitos, soluços, odor etílico, desorientação, dificuldade de equilíbrio, fala alterada, etc. Esses sinais serão avaliados, sem qualquer rigor científico, pelo agente de trânsito.
Esse é um dos motivos para a introdução da tolerância zero no Código de Trânsito. Se não há como provar cientificamente uma certa quantidade de álcool no sangue do motorista, recorre-se a esses sinais externos, que podem significar qualquer coisa. Um motorista com olhos vermelhos, sonolência e vômitos não está necessariamente embriagado. Pode estar doente…
Esse malabarismo legislativo é desnecessário.
Soprar o bafômetro não tira pedaço de ninguém. Embriaguez ao volante é que tira pedaços; e tira vidas inteiras.
Uma lei seca juridicamente segura e equilibrada deve conter a exigência de comprovação de um percentual mínimo de álcool no sangue, mantida a obrigação correlata de fornecer o material biológico para comprovação ou não da ebriez. Esta solução não deve escandalizar nem horrorizar nenhum jurista, especialmente aqueles que, quando visitam o Velho Continente, submetem-se às estritas leis de trânsito europeias.
Por exemplo, na Espanha, o artigo 383 do Código Penal tipifica entre os crimes contra a segurança viária a conduta de recusar-se a submeter-se ao exame legal de alcoolemia. Trata-se de uma espécie do crime de desobediência, decorrência do princípio da legalidade, segundo o qual uma pessoa só pode ser obrigada a uma ação ou omissão por lei. Conforme Juan Antonio Carreras Espallardo, ”los supuestos de negativa del conductor a someterse a las pruebas legalmente establecidas (se realizan mediante etilómetros calibrados) para la comprobación de las tasas de alcoholemia y la presencia de las drogas tóxicas, estupefacientes y sustancias psicotrópicas será castigado con la penas de prisión de seis meses a un año y privación del derecho a conducir vehículos a motor y ciclomotores por tiempo superior a uno y hasta cuatro años. Es este un supuesto agravado de la alcoholemia ya que el hecho de negarse – independientemente de que el conductor haya bebido o no – supone una violación agravada de la obligación de los conductores de realizar las pruebas de detección alcohólica” (ESPALLARDO, Juan Antonio C. La reinserción de los delincuentes viales, 2012).
De fato, segundo o art. 21 do Reglamento General de Circulación, em solo espanhol, “todos los conductores de vehículos y de bicicletas quedan obligados a someterse a las pruebas que se establezcan para la detección de las posibles intoxicaciones por alcohol. Igualmente quedan obligados los demás usuarios de la vía cuando se hallen implicados en algún accidente de circulación”.
Algo semelhante se vê no art. 277, §3º do CTB. As penalidades administrativas do art. 165 do código são aplicadas ao condutor de veículo automotor que se recusar a se submeter a teste exame clínico, perícia ou outro procedimento que, por meios técnicos ou científicos, permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa. A recusa gerará a aplicação de multa, suspensão do direito de dirigir, retenção do veículo e recolhimento da carteira de habilitação.
Assim, tanto nos EUA (casos Schmerber e McNeely), quanto na Espanha entende-se que o dever de submeter-se ao controle de alcoolemia – como também ao controle da existência de licença para conduzir – não ofende o direito de não declarar contra si mesmo, pois o suspeito não é obrigado à admissão de sua culpabilidade, senão a submeter-se a uma perícia, exigindo-se uma colaboração não equiparável a uma declaração verbal, esta sim abrangida pelo direito ao silêncio. Eis o contorno da garantia.
Desde o caso Schmerber (1966), a SCOTUS vem mantendo esse entendimento: “The privilege against self-incrimination is not available to an accused in a case such as this, where there is not even a shadow of compulsion to testify against himself, or otherwise provide the State with evidence of a testimonial or communicative nature.”. Na verdade, ainda no início do século XX, em Holt v. United States (1910) (aqui), a mais alta Corte americana assentou que:
“[T]he prohibition of compelling a man in a criminal court to be witness against himself is a prohibition of the use of physical or moral compulsion to extort communications from him, not an exclusion of his body as evidence when it may be material. The objection in principle would forbid a jury to look at a prisoner and compare his features with a photograph in proof.” (Holt v. United States)
Em lugar algum, o direito ao silêncio tem a extensão que lhe damos no Brasil. Tais limites ficam ainda mais claros em Saunders v. United Kingdom (1996). Neste precedente, a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) decidiu que a garantia contra a autoincriminação liga-se primordialmente ao direito de permanecer em silêncio, mas não impede o uso em ações penais de elementos materiais obtidos compulsoriamente do acusado e que existam independentemente de sua vontade, como amostras de ar alveolar, sangue ou urina. Abaixo, no original, a decisão do Tribunal europeu em Estrasburgo:
“68. The Court recalls that, although not specifically mentioned in Article 6 of the Convention (art. 6), the right to silence and the right not to incriminate oneself are generally
recognisedinternational standards which lie at the heart of the notion of a fair procedure under Article 6 (art. 6). Their rationale lies, inter alia, in the protection of the accused against improper compulsion by the authorities thereby contributing to the avoidance of miscarriages of justice and to the
fulfilment of the aims of Article 6 (art. 6) (see the above-mentioned John Murray judgment, p.
49, para. 45, and the above-mentioned Funke judgment, p. 22, para. 44). The right not to incriminate oneself, in particular, presupposes that the prosecution in a criminal case seek to prove their case against the accused without resort to evidence obtained through methods of coercion or oppression in defiance of the will of the accused. In this sense the right is closely linked to the presumption of innocence contained in Article 6 para. 2 of the Convention (art. 6-2).
69. The right not to incriminate oneself is primarily concerned, however, with respecting the will of an accused person to remain silent. As commonly understood in the legal systems of the Contracting Parties to the Convention and elsewhere, it does not extend to the use in criminal proceedings of material which may be obtained from the accused through the use of compulsory powers but which has an existence independent of the will of the suspect such as, inter alia, documents acquired pursuant to a warrant, breath, blood and urine samples and bodily tissue for the purpose of DNA testing.” (íntegra do julgado aqui).
Trocando em miúdos, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa há uma compreensão mais equilibrada do direito à privacidade e da garantia contra a autoincriminação, direitos que aqui na Terra de Santa Cruz são tidos como absolutos e santificados como dogmas num altar que contribui para o “perdão” aos motoristas bêbados que sacrificam milhares de vidas todos os anos em acidentes viários.
Com o aditamento à petição inicial da ação direta, a “nova” Lei Seca (Lei 12.760/2012) será examinada pelo STF na ADI 4103/DF (aqui). O relator é o ministro Luiz Fux.
Espera-se que a jurisprudência da SCOTUS e o julgado da CEDH em Saunders influenciem positivamente a nossa Suprema Corte, de modo que haja uma interpretação razoável da garantia nemo tenetur se detegere, tal como ela é entendida nos países que a edificaram! Aqui a mutilação das doutrinas estrangeiras concorre com sua pitada de sal para a impunidade dos motoristas irresponsáveis que tiram milhares de vidas todos os anos.
Uma ponderação de interesses há de prevalecer, acima dos falsos dogmas que costumamos repetir sem maior reflexão ou sem conhecer ou examinar as soluções dadas por outros povos, especialmente na América do Norte e na Europa, aos problemas comuns da sociedade de massa.
Não pretendo revigorar o art. 386 do Decreto 848/1890, segundo o qual “Os estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações jurídicas na República dos Estados Unidos da America do Norte, os casos de common law e equity, serão tambem subsidiários da jurisprudência e processo federal“.
Mas é inegável que foi da tradição jurídica norte-americana, britânica e europeia continental que retiramos esses princípios, garantias e direitos e os inserimos no art. 5º da CF. Lá também foram gestadas as exceções. Aqui, regras ponderadas foram deturpadas. Como sempre, certa doutrina brasileira rejeita aprioristicamente tal realidade constitucional e convencional, devidamente equilibrada. É preciso expor tais incongruências, da importação seletiva, parcial e atécnica de lições estrangeiras, que, quando aqui introduzidas pela metade ou menos, ignoram deliberadamente a completude de tais soluções civilizatórias.
Do lado de cá, não se trata de promover uma doutrina de “lei e ordem” (sic). E não quero crer que aos do lado de lá sirva o rótulo de embriagados pelos dogmas, ou que os sacerdotes dessa escola estejam ainda entorpecidos pela ideia de que o Estado é sempre mau. O direito comparado das democracias liberais aponta soluções compatíveis com as cartas de direitos fundamentais. Não é à toa que o símbolo da Justiça é uma balança. Mas continuam a sustentar que soprar um bafômetro violaria a “dignidade da pessoa humana”. Ser esmagado ou destroçado na calçada por um motorista embriagado parece que não…