Direito Penal

'Enganei o juiz e me dei bem'

Eu não. Processo penal é coisa séria; é garantia do réu e instrumento de defesa da sociedade. Não é teatro. Por isto, volto ao tema do suposto “direito” de mentir.

Por Vladimir Aras

Dita a sério, a frase acima seria um acinte, um deboche. Mas muita gente no mundo jurídico brasileiro aceita ouvir histórias da carochinha, do tipo “me engana que eu gosto“.

Eu não. Processo penal é coisa séria; é garantia do réu e instrumento de defesa da sociedade. Não é teatro. Por isto, volto ao tema do suposto “direito” de mentir.

houve tempo em que o Superior Tribunal de Justiça, especialmente a 6ª Turma, admitia que um suspeitopor exemplo, um foragido – se identificasse falsamente à autoridade policial para não ser preso. Era, diziam placidamente, uma forma de autodefesa. Mentir para não ser preso seria um direito fundamental do condenado fujão, ainda que se tratasse de um homicida, um estuprador, um latrocida ou um corrupto. “Belo” incentivo do Tribunal da Cidadania…

O mesmo padrão ético ainda é tolerado por aqueles que afirmam, sem enrubecer, que o réu tem “direito” de mentir em seu interrogatório judicial.

Mas nem todo mundo tem a mesma condescendência com o pinoquismo. De São Paulo, veio a boa notícia. Na sentença (aqui), de 14/mar, que em primeira instância condenou M.B.S. a 20 anos de reclusão pela morte de Mércia Nakashima, o juiz de Direito Leandro Jorge Bittencourt Cano, da Vara do Júri de Guarulhos/SP, aumentou a pena-base do réu devido à sua personalidade mentirosa. Cano escreveu:

“Tem personalidade egoística voltada à satisfação de seus instintos mais básicos, sendo-lhe indiferente as consequências infaustas de seus atos sobre seus semelhantes.Infelizmente, não existe o crime de perjúrio no ordenamento jurídico pátrio. Por outro lado, não há dúvida sobre o direito ao silêncio, podendo o réu durante o seu interrogatório nada responder sobre uma ou todas as questões que lhe forem dirigidas, sem que isso possa lhe acarretar qualquer prejuízo. Todavia, uma coisa é permanecer em silêncio, ato nitidamente omissivo, outra bem diferente é mentir, conduta altamente ativa, antiética e contrária aos valores mais comezinhos da sociedade, não nos parecendo, assim, que exista uma garantia ao suposto direito invocado.

Na verdade, não estamos diante de um direito de mentir, mas simplesmente da não punição criminal da mentira, salvo se a sua postura redundar na inculpação de terceiros, no desvio da investigação para a busca de fatos inexistentes, ou mesmo se consubstanciar na assunção de ilícitos executados por outras pessoas (com o objetivo de inocentar o real criminoso, dando-lhe proteção em troca de uma promessa de recompensa ou qualquer outra espécie de benefício escuso). Com o devido respeito, não se pode tolerar o perjúrio como se fosse uma garantia constitucional, até pelo fato de o réu não precisar mentir para exercer o seu direito ao silêncio. A verdade é sempre um valor a ser defendido pelo Estado, o qual jamais poderá permitir e estimular a mendacidade.

Esclarecendo, caso silencie, nada lhe acarretará; logo, não precisa mentir. Ao mentir, o acusado o faz de modo intencional, notadamente para enganar o julgador, na espécie, os jurados, e beneficiar-se da própria torpeza, perfídia ou malícia, em detrimento de bens jurídicos relevantes para a Magna Carta e o processo penal. Se o réu não está obrigado a falar, está cristalino que não precisa mentir.

Como ensina Andrey Borges de Mendonça (Prisão e outras Medidas Cautelares Pessoais, 2011, Método, p. 194): “Parece-nos, assim, que se o juiz constatar que o réu mentiu, poderá considerar tal circunstância no momento da pena. Não é que se esteja estimulando a confessar – até porque para isto já há uma circunstância atenuante genérica -, mas apenas negando que ao juiz e ao Poder Judiciário possa se admitir que o réu venha em juízo e, perante um agente do Estado, possa mentir livremente, como se isto fosse algo normal e aceitável, como se entende atualmente”.

Ora, como a mentira tem por escopo iludir os jurados, ludibriar o “ex adverso”, enganar a coletividade e provocar um erro judiciário, tal circunstância negativa sobre a personalidade do acusado será sopesada pelo juiz-presidente na fixação da pena, nos termos do art. 59 do CP. A mentira jamais poderá ser interpretada como direito ínsito, mas como subterfúgio repudiável ao exercício da atividade investigativa e judicante.

Parafraseando Pedro Reis (Dever de verdade – Direito de mentir. História do pensamento jurídico. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa. Coimbra Editora. p. 457 e 462, respectivamente), “é de ter-se sempre em conta que onde o silêncio for útil, não se justifica a mentira”, pelo que “do direito de calar não decorre um direito de falsear uma declaração”.

Para Antônio Pedro Barbas Homem (O que é direito?, Lisboa. Principia Editora, Reimpressão, 2007, p. 66), a “verdade brilha e guia a nossa liberdade e a nossa vontade”, ao passo que a mentira, ao contrário, “conduz à escuridão e ao vazio”.

Não se exige o heroísmo do acusado de dizer a verdade auto incriminadora, ou seja, o comportamento de dizer a verdade não é imposto, mas isso não quer dizer que exista o direito de mentir.

De acordo com Theodomiro Dias Neto (O direito ao silêncio: tratamento nos direitos alemão e norte-americano. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 19, São Paulo: RT, 1997, p. 187” (“Apud” Thiago Bottino. O direito ao silêncio na jurisprudência do STF. São Paulo: Campus Jurídico, 2008, p. 73), a jurisprudência alemã tem, contrariamente da doutrina, “assumido posição diversa, no que se refere à pena, ao interpretar a mentira como indício da personalidade do acusado”.

Diga-se, por fim, que ao lado dos direitos fundamentais existe uma segunda dimensão, representada pelos deveres fundamentais, isto é, o dever do homem de respeitar determinados valores relevantes para a vida em comunidade, de tal modo que os direitos devem ser os canais institucionais que permitam a realização dos deveres (+ 2 anos).”
Reputo acertadíssima a decisão do juiz Cano. Ao examinar as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal, na individualização da pena, o julgador destacou a personalidade mendaz do acusado, para aumentar a pena-base.

No artigo “A mentira do réu e o art. 59 do CP”, publicado no livro “Garantismo Penal Integral” (JusPodivm, Salvador, 2009), organizado por CALABRICH, FISCHER e PELELLA (2ª edição no prelo), defendi esta tese. Não estou seguro, mas creio ter sido o primeiro autor brasileiro a sustentar claramente a possibilidade de incremento da pena, na primeira etapa da dosimetria, tendo em conta a mentira do acusado como traço revelador da sua personalidade.Voltei a sustentar a mesma ideia aqui no Blog, no post “O silêncio, a delação e a mentira no processo penal“, de junho de 2012.

Precisamos parar de “cafuné processual”. Se o devido processo legal for respeitado, tal como querem a Constituição e os tratados, não existe motivo para arranjar justificativas para comportamentos antiéticos do réu criminal. Todo acusado tem o sagrado e inafastável direito ao silêncio, que decorre da garantia democrática de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere ou privilege against self incrimination).

Este é o texto constitucional de 1988, este é o direito que se extrai do art. 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 e do art. 14 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966.

Em todas as democracias ocidentais, assegura-se ao acusado o direito ao silêncio. Mas em algumas delas, a mentira do réu chega a ser tipificada como crime: o perjúrio (perjury). Nem por isto se invalida a garantia contra a auto-incriminação. As duas regras coexistem.

Exemplificando: o Miranda warning do direito processual penal constitucional norte-americano – advertência derivada do caso Miranda vs. Arizona, de 1966 – presta-se a assegurar o direito do acusado ao silêncio e à assitência de um advogado. Mas se o suspeito renuncia ao direito ao silêncio e resolve falar – o que configura o waiver -, “tudo o que disser” pode ser e será usado contra ele em juízo, inclusive suas mentiras:

“You have the right to remain silent. Anything you say can and will be used against you in a court of law. You have the right to an attorney. If you cannot afford one, one will be provided for you by the court.”
Em parte alguma do planeta – deste planeta! – há o direito constitucional de mentir. Em lugar nenhum um réu pode usufruir de um “direito” fundamental de contar lorotas a um juiz, para enganá-lo e se dar bem. Só com base no art. 7º da Lei de Gerson seria possível sustentar um “direito” (direito, vejam bem) tão exótico.

Obviamente, se quiser, o réu pode mentir à vontade. Mas a isto não lhe corresponde um “direito”. Cada ser humano pode usar seu livre arbítrio como bem entender. Mas aprendemos cedo a arcar com as consequências de nossas ações. Em alguns países, o réu que mente responde pelo crime de perjúrio. Aqui o réu mendaz pode ter sua pena-base aumentada por revelar traços negativos de personalidade.

Em qualquer dos países civilizados, o direito ao fair trial, ao devido processo legal, se confirma com as garantias da ampla defesa, do contraditório, da assistência de um advogado ou defensor, com o direito ao duplo grau, ao juiz natural e a um acusador independente e com a prerrogativa de não se autoincriminar, isto é, ficar em silêncio na Polícia ou em juízo.

No dilema entre mentir ou confessar, ao réu criminal basta o direito ao silêncio. Nenhum prejuízo advirá se o acusado calar-se. É a lei. Por outro lado, a mentira é etica e juridicamente repudiável, dela podendo advir consequëncias nefastas para terceiros e para a sociedade.

“Amicus Plato, sed magis amica veritas” (“sou amigo de Platão, mas mais amigo da verdade”) (Aristóteles).
Não custa lembrar: ninguém pode beneficiar-se de sua própria torpeza. É uma lição tão antiga quanto o direito de defesa. A decisão do juiz Cano é pedagógica, mas não para os acusados mendazes. Para os seus colegas juízes, especialmente os que judicam nos tribunais! Por favor, senhores magistrados criminais: não tolerem a mentira como um “direito”. A ninguém deve ser dado enganar, ludibriar, iludir ou falsear. A mentira chancelada pela Justiça equivale a um erro judiciário. Erra-se quando se condena um inocente. Erra-se quando se absolve um culpado. Neste caso, a mentira prejudica direitos das vítimas e desprotege a sociedade. Mentir não é um direito fundamental do acusado! É hora de revogar este artigo da Lei de Gerson.

Façam como o juiz de Direito de Guarulhos. O acusado não teve ocasião de dizer-lhe a desaforada frase que dá título a este post. Por enquanto, este réu entrou pelo cano. Ainda cabe recurso.

 

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