Por Vladimir Aras
homicídio
Kiss: o beijo da morte
As avós sempre dizem: não se brinca com fogo. Um sinalizador teria dado ignição a essa tragédia: mais de 230 pessoas mortas. Foram asfixiadas, queimadas, pisoteadas. Para quê? Para uma banda obter um tolo efeito visual em sua (agora sim!) inesquecível apresentação.
Um celular toca na madrugada. Uma mãe aflita está do outro lado da linha. Ninguém atende. Nunca mais atenderá. Seu filho estava na boate “Kiss” e recebeu o beijo da morte.
As avós sempre dizem: não se brinca com fogo. Um sinalizador teria dado ignição a essa tragédia: mais de 230 pessoas mortas. Foram asfixiadas, queimadas, pisoteadas. Para quê? Para uma banda obter um tolo efeito visual em sua (agora sim!) inesquecível apresentação.
A casa de shows transformou-se num forno, numa câmara de gases tóxicos, quase um crematório. A festa “Agromerados” – uma alusão aos cursos de ciências agrárias da UFSM que promoveram o encontro de universitários – terminou com mais de duas centenas de vítimas aglomeradas e amontoadas, sem vida, à espera de reconhecimento. Outros ainda poderão perecer nos próximos dias por pneumonia química. Infelizmente, essa contagem ainda não parou.
Pelo que a imprensa publica neste primeiro dia, esse horrendo evento teve diversas causas e concausas. A boate não teria condições de funcionamento por falta de alvará. Tampouco teria uma brigada de incêndio ou bombeiros civis, profissão regulada pela Lei 11.901/2009. Vítimas relatam nos jornais que não havia sinalização de pânico para as rotas de fuga e só uma porta separava suas vidas da morte certa. E esta ficou alguns instantes cerrada por seguranças. Queriam impedir calotes.
Um dos integrantes da banda que ocupava o palco teria utilizado aparatos pirotécnicos no recinto fechado e apinhado de gente. Bastou uma fagulha de insensatez e o morticínio se fez, atingindo o isolamento acústico do teto, formado por material inflamável, uma espuma. Os donos do estabelecimento certamente sabiam disto. Sabiam também que o risco era acentuado numa casa superlotada, onde quase sempre há pessoas sob influência de álcool e por isto mesmo mais vulneráveis.
Eis uma receita explosiva. Não foi só uma “gurizada” reunida que armou esse circo de horrores. Em erros sucessivos, homens irresponsáveis se juntaram para tocar uma marcha fúnebre. As falhas de alguns custaram a vida de muitos. Bastou aquela faísca. Não a faísca da ideia que acende mentes e alumia caminhos. Não a ideia luminosa que enriquece o mundo. Mas a ideia tenebrosa, irrefletida, mortiça; a ideia que entristece, que apaga vidas e que lançou sombras e o véu do luto sobre centenas de famílias. Que Santa Maria os conforte. Que Deus os acalente. A dor também queima e asfixia.
Os culpados haverão de ser identificados. A resposabilização civil da casa de shows e da Prefeitura é inevitável. Não há apólice de seguro (se é que havia) que dê conta desse dano. No campo criminal, a hipótese primeira é o homicídio culposo (não intencional), previsto no art. 121, §3, do CP, com a causa de aumento do §4, por inobservância de regra técnica, delito sancionado neste caso com até 4 anos de detenção.
Mas uma acusação por múltiplos homicídios dolosos não é uma carta fora da mesa, considerando a “cegueira deliberada” daqueles que concorreram para que a grande boîte (caixa, em francês) Kiss se transformasse num enorme e escuro caixão. Luz negra sobre todos.
Em casos assim, é possível imputar homicídio doloso aos organizadores e promotores do evento. Os donos da festa deverão dançar conforme a música que escolheram. Agindo como agiram, esses indivíduos (que o MP/RS e a Polícia gaúcha identificarão) podem ter assumido o risco de produzir o resultado. É uma hipótese, não sei.
Até mesmo aqueles que se omitiram quanto a deveres legais ou contratuais podem ser acusados de ter dado causa a essa tragédia. É o que diz o artigo 13, §2, do CP, que cuida da relevância causal da omissão. Tais pessoas são “garantidores” da segurança dos consumidores e contribuintes que usavam o espaço e pagaram por isto. Primeiro pagaram em reais; depois com a vida.
Art. 13. […]
§ 2º – A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.
O crime de incêndio agravado (com dolo eventual) também é uma hipótese que o Ministério Público do Rio Grande do Sul certamente considerará. É a espécie prevista no art. 250, §1, inciso II, `b`, do CP com pena de 4 a 8 anos de reclusão, que pode ser aplicada em dobro se resulta morte (art. 258, CP).
Não é cedo para pensar em responsabilidades. O rescaldo da tragédia é também o momento das perícias. Essas provas técnicas definirão o encadeamento do episódio. Imagino que a esta altura Polícia Civil e Ministério Público já estão em campo buscando os culpados.
Empresários gananciosos, músicos irresponsáveis, seguranças despreparados, fiscais relapsos ou coniventes? Não se sabe ao certo se concorreram para o crime. Todos são inocentes até prova em contrário, como diz a Constituição. Mas sabemos que essa tragédia, típica de cidades mal administradas, podia ter sido evitada.
Em 2004, 174 pessoas morreram numa discoteca em Buenos Aires, em circunstâncias muitíssimo semelhantes ao horror de Santa Maria, depois que um rojão foi disparado na boate República Cromañón, que estava superlotada para um show de rock. O teto também pegou fogo. Processado criminalmente, seu proprietário foi sentenciado a 8 anos de reclusão; já o dono do prédio foi condenado a 4,5 anos de prisão. O governador da Cidade Autônoma de Buenos Aires, Aníbal Ibarra, foi cassado pelo Legislativo local em função das omissões do poder público. Houve acusações de corrupção ativa (contra empresários) e passiva contra servidores públicos que facilitaram o funcionamento da boate portenha. Veja aqui a sentença do Tribunal Oral en lo Criminal, proferida em agosto de 2009. Relembrar o caso argentino é quase ler a crônica dessas mortes anunciadas no Brasil.
Infelizmente, empresários e governantes brasileiros não aprenderam essa lição, talvez porque na nossa história episódios como o do Bateau Mouche (Rio de Janeiro, 1988, 55 mortos), o do desabamento do edifício Palace I (Rio, 1998, 8 mortos); e a queda do voo Gol 1907 (Mato Grosso, 2006, 154 mortos) tenham ficado, na prática, impunes. A lista, como todos sabemos, tem um longo et coetera.
Evitar dramas desta monta não custa muito. Há alguns anos, na cidade de Feira de Santana, funcionava regularmente uma força-tarefa de órgãos públicos com missão prevencionista. Era a Fiscalização Preventiva Integrada (FPI). Reunia o CREA, a Prefeitura, a DRT, a PRF, o Ministério Público, bombeiros, policiais militares, órgãos ambientais e de segurança do trabalho. Tenho certeza de que grupos semelhantes existem noutras partes do País. É essencial que eles funcionem, especialmente nas vésperas de grandes eventos, como o Carnaval e as micaretas, com seus camarotes e arapucas por todo o lado.
Este episódio em terras gaúchas é um desconsolo. É também um novo alerta aos nossos governantes. Que tal proibir definitivamente fogos de artifício em locais fechados? Que tal fechar imediatamente essas ratoeiras humanas? Que tal cumprir todas as leis de prevenção a incêndio e pânico? Lugares em que se paga para entrar e se reza para sair não podem funcionar. Fiscalização rigorosa das condições de segurança de empreendimentos, públicos ou privados, destinados a grandes públicos, salva vidas. O “jeitinho”, a ganância, a vista grossa, o desleixo, a negligência e a propina matam.
Assuntos
Inscrever-se
0 Comentários
mais recentes