É Verão, mas não vim para a praia. Vim para a Cidade da Praia, capital da República de Cabo Verde, país lusófono da África Ocidental. Cheguei ontem, numa viagem de trabalho a serviço da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), que mantém um programa de cooperação técnica com a Procuradoria-Geral da República deste país.
Esta é minha segunda viagem de trabalho à África. Na primeira vez, em 2011, lecionei sobre crime organizado num curso promovido pelo Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ), em Maputo, Moçambique, para membros do MP e juízes. Posso dizer que estas são duas experiências enriquecedoras, especialmente porque temos com esses PALOP – Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa uma fascinante herança comum.
Aqui na Cidade da Praia, darei o Workshop sobre Lavagem de Capitais e Recuperação de Ativos, que começa neste 15/jan. O evento, copatrocinado pela ESMPU do Brasil e pela PGR de Cabo Verde, é destinado a magistrados do Ministério Público. Não estranhe. Salvo no Brasil, em todos os outros países lusófonos, os membros do Ministério Público são chamados de magistrados. Está na linguagem comum e na Constituição:
Artigo 227º (Magistratura do Ministério Público)
1. Os representantes do Ministério Público constituem uma magistratura autónoma e com estatuto próprio, nos termos da lei.
2. Os representantes do Ministério Público actuam com respeito pelos princípios da imparcialidade e da legalidade e pelos demais princípios estabelecidos na lei.
3. Os representantes do Ministério Público são magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados.
Cabo Verde é um Estado arquipélago composto por 10 ilhas. As mais populosas são Santiago (onde está a capital), S. Vicente e Santo Antão. O país foi uma possessão portuguesa desde o século XV até sua independência em 1975.
A vinda para cá de africanos de várias etnias e a junção do elemento português levou ao surgimento de um pidgin e depois ao desenvolvimento de uma língua nacional, aqui denominada de crioulo. O português é o idioma oficial, mas toda a gente se comunica em cabo-verdiano, língua semelhante ao papiamento falado em Curaçao e Aruba.
Nos 400 anos de história colonial e devido à sua importância estratégica no Oceano Atlântico, Cabo Verde foi fundamental para a exploração e o povoamento do Brasil. Serviu como base para aas navegações portuguesas e depois como entreposto para o tráfico de escravos da África Ocidental, especialmente da Guiné, para o continente americano.
Segundo o historiador e diplomata cabo-verdiano Daniel A. Pereira,
“Para o nordeste brasileiro vieram de igual modo, e ao longo dos séculos milhares e milhares de escravos ladinizados em Cabo Verde, já que o comércio escravocrata da costa ocidental de África era controlado a partir da ilha de Santiago, onde na sua capital, a Cidade da Ribeira Grande (hoje Cidade Velha), era obrigatório o despacho dos escravos, para pagamento dos competentes impostos devidos à Coroa portuguesa. Nessa mesma ilha, deviam ter um longo processo de transformação, sendo simultaneamente catequizados e batizados, antes da nova largada em direção às terras de Vera Cruz, às ilhas caribenhas, Colômbia, Honduras…”.
Porto de passagem para a diáspora africana durante o período escravagista, Cabo Verde sofreu sua própria dispersão populacional a partir do fim do tráfico marítimo, imposto pelo Reino Unido. Nas 9 ilhas habitadas residem 500 mil pessoas, a população de Feira de Santana, na Bahia. Mas estima-se que um milhão de cabo-verdianos vivem no exterior.
Essa corrente migratória expressiva tem repercussões importantes na economia, porque a comunidade cabo-verdiana emigrada costuma fazer remessas significativas ao país, por meio de sistemas formais e informais de envio de capitais. Este quadro, sem dúvida, facilita a movimentação de valores à margem dos controles oficiais e o fortalecimento de tipologias como a dollar-to-dollar ($-2-$), semelhante ao nosso dólar-cabo, que tem suas raízes no sistema internacionalmente conhecido como hawala. Os sistemas alternativos de envio de valores merecem especial atenção das recomendações do GAFI.
Inserido no regime global de prevenção à lavagem de dinheiro, Cabo Verde aprovou sua nova Lei Anti-Branqueamento de Capitais em 2009. Em 2008, criou sua Unidade de Informação Financeira (UIF), congênere ao COAF, e dirigida por uma magistrada do MP. É um dos Estados mais estáveis da África. Sua Constituição é de 2010 e tem minuciosas e interessantes disposições sobre processo penal. Pretendo tratar disto noutro post.
Cabo Verde pertence à ONU, à União Africana, à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), ao Grupo Intergovernamental de Acção contra o Branqueamento de Capitais em África (GIABA) e à Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO). Sua seleção de futebol é conhecida como “tubarões azuis”. Rede Record e Rede Globo disputam a audiência com a TV local e emissoras de Portugal.
Cabo Verde e Brasil estão ligados no presente por relações econômicas, culturais e políticas cada vez mais intensas. Mas estiveram também ligados no passado, em vários episódios, especialmente num que todos os brasileiros conhecem: a Inconfidência Mineira. Três dos inconfidentes condenados pelo crime de lesa-majestade (Livro V das Ordenações Filipinas) acabaram degredados em Cabo Verde.
“Lesa-majestade quer dizer traição cometida contra a pessoa do Rei, ou seu Real Estado, que é tão grave e abominável crime, e que os antigos Sabedores tanto estranharam, que o comparavam à lepra; porque assim como esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar, e empece ainda aos descendentes de quem a tem, e aos que ele conversam, pelo que é apartado da comunicação da gente: assim o erro de traição condena o que a comete, e empece e infama os que de sua linha descendem, posto que não tenham culpa.“
A sentença criminal proferida ao final da sedição condenou 12 conjurados à morte. Era abril de 1782. Porém, a rainha Maria I de Portugal comutou as penas de todos eles, salvo a de Tiradentes. Foi assim que Domingos Vidal Barbosa, José Dias Mota e José de Resende Costa (e também seu filho de mesmo nome) aportaram em Cabo Verde.
O professor Márcio Jardim, da UFMG, autor de “Inconfidência mineira – uma síntese factual” relata que:
“Domingos Vidal Barbosa e José Dias Mota foram para Cabo Verde. Resende Costa foi primeiro para Guiné-Bissau e depois para Cabo Verde. Os três foram reunidos na Ilha de Santiago em janeiro de 1793. Lá ninguém sabia qual era a sentença deles.”
Os três morreram no
exílio. Em 1932, a
pedido do
cônsul brasileiro em
Dacar, no Senegal,
suas ossadas foram exumadas e
enviadas ao Brasil.
Os desposos haviam sido encontrados a
partir de
relatos de
moradores locais da Guiné-Bissau.
Graças a
peritos em
odontologia forense,
entre eles o
prof. Eduardo
Daruge da Unicamp,
os restos mortais foram identificados e
os três foram sepultados no
Panteão da Inconfidência em
Ouro Preto/MG, no
dia 21 de
abril de 2011.
Eis os dados biográficos desses heróis brasileiros, segundo o Ministério da Cultura:
“José de Resende Costa (1728-1798) – Era capitão do Regimento de Cavalaria Auxiliar da Vila de S. João e fazendeiro em Arraial da Laje, hoje chamado Resende Costa (MG). José de Resende Costa, pai, foi preso em 1789, junto com seu filho de mesmo nome, e condenado à morte com outros inconfidentes. No degredo, foi contador e distribuidor forense até 1798, quando morreu. Seu filho voltou ao Brasil em 1803.
João Dias da Mota (1744 – 1793) – Nasceu em Vila Rica. Foi capitão do Regimento da Cavalaria Auxiliar da Vila de S. João e fazendeiro. Era amigo de Tiradentes. Morreu em setembro de 1793, nove meses após chegar à Vila de Cacheu (Guiné Portuguesa), de uma epidemia que assolou a região.
Domingos Vidal de Barbosa (1761-1793) – Nasceu em Capenduva, de família abastada. Estudou medicina em Bordeaux, na França. Participou de forma discreta na conspiração. Encontrou-se com Thomas Jefferson (então embaixador na França e depois presidente americano) na Europa, quando teria obtido apoio à causa dos inconfidentes.”
Esses três homens lutaram pela liberdade em terras sem mar, nas Minas Gerais, e foram mandados para as ilhas da África, onde o oceano é uma imensidão. Como disse B. Leza, músico e compositor local, Cabo Verde é um pedacinho do Brasil. É um pequeno grande mundo no meio do mar, com muita História para contar.