Nesta segunda-feira, 29 de janeiro, é celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Trans, e traz a atenção para as reinvindicações da população travesti e trans brasileiras. A data mundial, celebrada em 31 de março, também reforça este coro ao trazer cenários e possibilidades diversas de políticas públicas para esta população em várias partes do mundo.
No dia 29 de janeiro de 2004, o Ministério da Saúde organizou, em Brasília, um ato nacional para lançamento da campanha “Travesti e Respeito”. Tendo em vista a trajetória dessa população, que foi e continua sendo uma das mais vulnerabilizadas, sofrendo todo tipo de estigma e discriminação, é fato que o cenário impacta diretamente no acesso aos bens e serviços de saúde.
A reportagem do Acorda Cidade conversou com Alice Victória Santiago Damasceno, 21 anos, jovem transexual que já enfrentou diversos desafios, até conseguir o direito à mudança do nome. Para ela, a família que se torna uma base, não agiu diferente, e seguiu no apoio durante todo o processo.
“Minha mãe e minha irmã, foram bem recepcionistas, até porque minha mãe sempre foi uma mulher muito guerreira, muito batalhadora, então ela me criou para ser esta pessoa, então o que importava para ela, era que eu me tornasse uma pessoa do bem, uma pessoa que buscasse trabalhar para conquistar os meus sonhos. De primeira, ela se colocou no mundo dela para tentar entender melhor a minha identidade, tentar entender esse mundo que estava chegando na nossa família, e logo ela me abraçou, me identificou, reconheceu a filha dela como Alice Victória”, declarou.
Foi através da moda e da maquiagem que Alice encontrou uma nova forma de viver.
“Eu entendi que a minha identidade vinha a se rebelar quando eu vinha aflorando um pouco mais. Como foi que eu aflorei isso? Eu fui me identificando particularmente com o mundo da maquiagem, com a moda, com as minhas vestes, e aí eu fui entendendo, fui aflorando, que a feminilidade existia já dentro de mim, eu só não deixava ela sair, eu só não expressava tanto. E aí eu fui conseguindo me libertar de todos os paradigmas que foram me associando desde a infância. E aí então eu fui conseguindo associar a minha feminilidade à minha identidade de gênero, que é ser travesti”, afirmou.
Ao contrário da família, alguns amigos de Alice decidiram se afastar. Segundo ela, esta situação não interferiu diretamente em sua vida, pois naquele momento da aceitação de ser uma mulher trans, o que importava era sua autoestima.
“O meu ciclo sempre foi bem enxuto. Logo depois da transição, enxugou-se muito, mais ainda, pois algumas pessoas não conseguiram associar a minha realidade à sua. As pessoas, elas tinham medo das reações alheias, então elas foram se afastando e me afastando mesmo, e o que também não significou tanto, porque o que era importante para mim, o que prevalecia, era a minha identidade, o meu conhecimento comigo mesma. De antemão eu fui tendo um apoio muito gigante de alguns amigos em particular, da minha mãe principalmente, que para mim era o principal, que era ter o afeto dela, que era, na verdade, um dos meus maiores medos, que o que é que a gente vê aí, que está nos números, que está em todas as pesquisas, é que somos expulsos de casa, assim que identificamos e assumimos a nossa identidade de gênero, então esse era o meu maior medo, então o mais importante para mim era o abraço, o afeto da minha mãe, que foi o que eu tive desde o início”, pontuou.
Para realizar a mudança do nome, Alice contou à reportagem do Acorda Cidade que encontrou mais uma grande barreira e todo processo foi finalizado dentro de 12 meses.
“A minha retificação de nome aconteceu através de uma ação da Secretaria da Mulher, bem burocrática na verdade. Ela aconteceu entre o mês de junho, porque é o mês da visibilidade LGBT, do ano de 2022, e só finalizou no mês de junho de 2023, então podemos ver que foi um processo bem longo, que não é para ser, é um processo que acontece de forma bem rápida, só precisa ter acesso a algumas informações, advogado e pagar alguns documentos que hoje já somos isentas, apesar de não sabermos dessa informação, mas já somos isentas, mas aconteceu nesse processo bem duradouro entre o período de junho de 2022 a 2023 para retificar o meu documento. Então, durante esse processo de um ano, eu passei por todo preconceito, toda uma dificuldade que é lidar com as pessoas já fazendo questão de errar seu pronome, de estar dando um documento com o nome no qual você não se identifica mais”, disse.
Ao Acorda Cidade, Alice Victória relatou que não é fácil ser uma pessoa trans, principalmente pela ausência de políticas públicas.
“Ser uma pessoa trans em Feira de Santana, assim como em todo o Brasil, é um processo muito árduo, é muito agressivo e vivemos num país que mais mata pessoas trans e travestis pelo 15º ano consecutivo, então quando se fala em Feira de Santana, apesar de ter mais de meio milhão de habitantes, ainda estamos falando do interior da Bahia, uma cidade que se faz ignorante, eu digo, tanto no processo de se fazer ignorante pela população, quanto pelo meio judiciário mesmo. Não temos políticas públicas, assim como em todo o Brasil, na verdade até temos, só não são seguidas as riscas, não temos acesso o direito à educação, porque as pessoas não são preparadas para poder lidar com a gente, não temos direito à saúde básica, estamos falando de uma cidade com mais de meio milhão de habitantes onde temos diversas outras cidades pequenas e vizinhas e nessa cidade que é o eixo, não temos nem um ambulatório trans para ter um suporte maior para a nossa comunidade, então podemos ver que é um processo bem árduo”, comentou.
Nas redes sociais, Alice utiliza uma conta intitulada como @transbordalice e na biografia se apresenta como ‘retificada’ e ‘afetuosa’. Ao Acorda Cidade, ela contou que o afeto precisa ter início ainda dentro de casa, como espaço para ter um verdadeiro acolhimento.
“Em minhas redes sociais eu não hesito em pautar que um dos principais caminhos para que a nossa existência se torne ainda mais real, é o afeto dentro de casa. O respeito começando dentro de casa, onde a gente tem um lugar para recorrer, onde a gente tem um lugar para ser acolhida, onde a gente tem um lugar para botar nossa cabeça no travesseiro e pensar como amanhã eu vou levantar para lidar com todas as divergências que eu vou viver, que eu vou passar, com todas as transfobias que eu vou passar ao entrar no ônibus. Enfim, ter um acolhimento para que a gente não precise fugir para a marginalidade, que é onde nos colocam”, destacou.
Além disso, Alice também compartilha uma rotina diária, mostrando a realidade da vida.
“O que eu trago muito no meu perfil é uma realidade de uma pessoa trans, porque na verdade, eu posso representar algumas, mas não todas, porque não são todas que sonham e anseiam para viver assim como é uma pessoa que sonha em construir uma família, casar, enfim, não são todas, mas eu acredito que a contribuição é falar sobre a nossa realidade um pouco distinta do que nós vemos nos noticiários, que são gente morrendo antes dos 30 anos, que são nossos corpos nas beiras das pistas, nas prostituições, é trazer a nossa realidade um pouco distinta, é mostrar mesmo o meu convívio, meu dia a dia, minha vida, uma jovem, travesti de 21 anos, proletariada, casada, irmã, amiga, esposa, filha, e que está vivendo, que está existindo, que está prosperando, e que essa sim é uma realidade. Então acredito que a minha contribuição com a comunidade trans hoje na internet é exatamente essa, mostrar a realidade que está saindo do imaginário, que está acontecendo no momento, tanto para a comunidade trans quanto para a comunidade cis”, declarou.
Casamento
Hoje casada, Alice Victória destacou o ato de amar e ser amada. Para ela, o maior sentimento que existe é o afeto.
“O afeto para mim, é algo muito relevante, falar sobre o afeto é e sentir o afeto, principalmente para nós, pessoas trans e travestis, que temos uma expectativa muito baixa de viver essa realidade. Então esse contato que eu tive com afeto desde a transição, com a minha mãe, com a minha família, com os meus amigos mais íntimos, e foi quando eu vim a conhecer o meu esposo hoje, que é o Miguel também Santiago Damasceno, pois herdamos o sobrenome um do outro. Mostrar essa troca de afeto que podemos possibilitar um ao outro como pessoas trans, essa troca de afeto que ressignifica a nossa existência todos os dias. Essa troca de afeto que traz para nós, um ar de eu estou viva, um ar de eu estou amando e sendo muito amada, assim como é para ser com todos nós”, concluiu.
Com informações do repórter Paulo José do Acorda Cidade
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