Artigo

Direito, história, memória e consciência (negra)

Este artigo busca refletir como o direito, a história e a memória contribuem para a consolidação da “consciência” (negra) como data e afirmação identitária.

consciência negra
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Por: Gabriel Andrade de Salles Maia*

O dia 20 de novembro ficou consagrado no calendário de datas “comemorativas” brasileiras como o “Dia da Consciência Negra” ou “Dia Nacional de Zumbi” em referência ao histórico líder do Quilombo dos Palmares que foi morto pela coroa portuguesa em 20 de novembro do ano de 1695 tornando-se herói e símbolo de resistência dos negros contra as opressões e violações sistemáticas aos seus direitos (como o direito de ser livre, no Brasil colônia, ou o direito de permanecer vivo, no Brasil do século XXI – apenas para efeitos de economia nos exemplos).

O objetivo deste artigo não é escrever diretamente sobre a data em si ou discorrer sobre evoluções legislativas que gradualmente consolidaram conquistas para a comunidade negra, mas refletir intelectualmente sobre como o direito, a história e a memória, uma vez postos em relação, contribuem para a consolidação da “consciência” (negra) como data e afirmação identitária.

A pergunta sobre aquilo que o direito “é”, ou seja, a respeito do conceito de “direito”, comportou ao longo da história séries de respostas às vezes divergentes, por vezes complementares, atestando, primeiro, que a palavra em sua etimologia não possui sentido preciso e fechado sendo análoga a si mesma (abrigando semelhanças e diferenças que permitem entendimento recíproco ainda que diferentes os conceitos) e, segundo, que o direito possui dimensão temporal, historicidade – mas isto é “lugar comum”, frivolidade inútil quando irrefletida.

Sou professor universitário de Direito e, nesta função, tenho consciência do quanto o ensino jurídico ainda é fortemente dogmático e inclinado a partir de cânones historicamente hegemônicos – como a ideia de que o direito é produzido de modo monopolizado pelo Estado segundo certas formas e procedimentos legislativos. Os cânones contem verdades, ainda que relativas e temporárias no amplo fluxo da história. É preciso estar atento as narrativas da “história única” e estar atento que o direito estatal-legal não representa o “fim da história”. E por quê? Bem, uma resposta inicial indicaria que os cânones reproduzem certas escolhas do poder jurídico-político, escolhas que privilegiam determinados aspectos do passado, certas memórias, sobre outros.

Pessoalmente compartilho um conceito de Direito originado da filosofia moral e filosofia analítica, o Direito como uma “prática social”. A noção de “prática social” permite intuitivamente a percepção de que o Direito e os direitos não possuem uma realidade externa autônoma e independente dos sujeitos que os criam e usam (já que é uma “prática”) e, em seguida, que o Direito e os direitos não existem isoladamente dependendo de uma complexa e ordenada cooperação por parte daqueles que os praticam (já que é “social”).

Esta vinculação do objeto (o Direito) aos sujeitos (os praticantes) atesta que o Direito possui uma dimensão compreensiva que abre espaço para interpretações que, uma vez aplicadas, atualizam o direito dando concretude e conferindo um sentido dinâmico ao mesmo. Aqui temos já uma noção mais complexa da vinculação entre Direito e História, pois, tanto juristas como historiadores interpretam os vestígios do passado. Contudo, se os juristas precisam olhar para o passado tentando compreender aquilo que faziam os praticantes (quando só então poderão interpretar conceitos, institutos e instituições), os historiadores precisam olhar para o passado tentando compreender não apenas aquilo que existia como um fato empírico hegemônico, como também aquilo que foi “apagado” pelo poder daqueles que escreveram a história dominante.

Permitam-me lançar mão do exemplo para tornar claro o que quero expressar.

Se olho, enquanto jurista, para as leis abolicionistas do período colonial brasileiro (Lei Diogo Feijó – 1831; Lei Euzébio de Queiroz – 1850; Lei do Ventre Livre – 1871; Lei do Sexagenário – 1885 e; Lei Áurea – 1888) é possível perceber como a dominação dos corpos negros estava à época legitimada por um conceito de “propriedade” que não era uma construção solitária individual ou meramente jurídica, mas o produto de uma construção social que também possuía fundamentos econômicos – daí o porquê das legislações abolicionistas terem sido meras declarações para “inglês” ver. O Direito formalmente era modificado, mas as práticas e hábitos (que construíram a memória escravista dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX) eram materialmente mantidos na mentalidade dos praticantes do Direito e da sociedade genericamente considerada.

Esta memória escravista foi transmitida na passagem da Monarquia para a primeira República, desta última para a Era Vargas, e ainda permanece entre nós porque ainda que o conceito de “propriedade” tenha sido modificado e consideremos como anacrônico, imoral e ilegal que os corpos negros sejam suscetíveis de domínio (a defesa pública de tese contrária incorreria moralmente no politicamente incorreto e juridicamente em crime de racismo) as nossas práticas e instituições ainda são fortemente dominadas por uma ideologia racista que subalterniza a população negra (quando negros estão menos inseridos no mercado de trabalho a despeito de serem maioria numérica da população brasileira; quando negros são menor remunerados que brancos para o exercício de funções profissionais semelhantes; quando os negros são alvos preferenciais das abordagens policiais, quando os negros formam a maioria da população carcerária etc.).

Não é possível “consciência” (e construção de uma identidade nacional democrática) sem a compreensão de que compartilhamos historicamente uma memória socialmente racista e sem a compreensão de que juridicamente as nossas práticas, institutos e instituições são moldados por este tipo de memória. Eu creio que talvez seja esta noção que está na base de um conceito de racismo não como um problema individual, mas como uma questão estrutural ou multidimensional. Sem esta consciência, continuaremos a atualizar a Casa Grande e a Senzala em pleno século XXI, continuaremos a reproduzir o mito da “democracia racial” brasileira, o mito de que os corpos negros são naturalmente sensuais ou naturalmente inclinados ao crime, o mito de que as religiões de matriz africana são primitivas e diabólicas, o mito de que os negros não são biologicamente inclinados a atividades intelectuais e uma série de outros “non senses”.

Não é possível “consciência negra” (e, portanto, construção da memória e identidade negra), sem a compreensão de como as tradições negras materializadas na música, na dança, na culinária, na moda, na literatura, na produção acadêmica, enfim, em tudo aquilo que compõe a “cultura” negra, foram sistematicamente apagados da história ou reduzidos ao âmbito do folclórico, do pitoresco, do exótico. Como juristas, precisamos olhar para o passado também ao modo de um historiador percebendo o apagamento de histórias alternativas e críveis pelo poder hegemônico dominante.

Se o direito à memória (e à construção da identidade) é um direito fundamental reconhecido em nosso ordenamento constitucional, então que modifiquemos o nosso direito não apenas em sua forma como em nossa prática.

Gabriel Andrade de Salles Maia* é Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); Pós-graduando em Direitos Humanos e Contemporaneidade (UFBA); Membro da Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito (ABRAFI), advogado e professor universitário.

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