Segundo a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Bahia, no ano passado o estado registrou 2.423 casos de violência contra a mulher, 510 foram feminicídios.
A delegada Clécia Vasconcelos, titular da Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam), em Feira de Santana, ressalta que para um ato de violência contra a mulher não há justificativa, o que infelizmente existe é um ódio gratuito que foi ensinado coletivamente pela sociedade.
“Motivação é uma coisa, justificativa é outra. Não há justificativa. Em geral, para a violência contra a mulher a motivação é sempre corriqueira, ciúmes, achar que a mulher é posse, desentendimentos fúteis, mas a verdade que está por trás de tudo isso é a misoginia, achar que a mulher não tem vontade própria, que ela é objeto e está ali só para servir”, pontuou a delegada em entrevista ao Acorda Cidade.
Clécia Vasconcelos também explicou como se configura o feminicídio na sociedade.
“São duas formas. É uma qualificadora, a morte da mulher no âmbito doméstico, proveniente de uma violência doméstica e também quando esta mulher vem a perder a vida em decorrência da questão de gênero, simplesmente porque é mulher”, explicou.
Ela ressaltou que em muitos casos, o homem não aceita separação e parte para violência.
“O ponto-chave é esse. A mulher passa uma vida toda de violência, humilhada, agredida, quando ela decide separar-se é o ápice dessa violência, ele não aceita. Muitas vezes ele tem uma vida de traições e simplesmente porque a mulher não quer mais, esse ápice acontece, muitas chegam a perder a vida”, colocou.
A violência contra a mulher estarrece a falta de humanidade e de igualdade na sociedade em geral. Dados da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI) a partir de dados fornecidos pela Secretaria da Segurança Pública (SSP-BA) revelam que as mulheres negras são as mais atingidas pela violência. Como um todo, o agressor está ao lado da mulher, dentro do lar ou já foi seu parceiro em algum momento da vida.
“Não é a solução para o feminicídio, mas para toda e qualquer violência contra a mulher. Porque essa condição cultural estrutural de achar que aquela mulher vale menos que ele. Está ali somente para servir-lo. A violência de gênero acontece quando essa pessoa não quer mais servir, não atende mais os seus interesses como acostumado. E aí ela passa a sofrer essa violência”, explicou.
A delegada diz ser essencial uma atuação conjunta da rede de proteção, políticas públicas e educação para combater e erradicar a violência contra a mulher, especialmente em casos de feminicídios.
“O que se busca não é atenuar, mas erradicar a violência contra a mulher. Então essa violência como um todo, o combate a ela está em situações e momentos como esses que a mídia toca no assunto, para aquela mulher que está em casa refletir, o agressor refletir; políticas públicas específicas, a educação, uma mudança de cultura porque isso já é estrutural e quando a gente vê aqui na delegacia da mulher agressores com 18, 19 anos, jovens que repetem as condutas dos lares que foram criados, então a gente percebe que muita coisa precisa ser feita”, declarou.
Ela ainda reforça que as forças de segurança não conseguem agir sozinhas em um problema estrutural que perpetua por séculos, gerações e gerações.
“A contrário de outros delitos como homicídio e tráfico, a questão da mulher nesse contexto perpassa por outras instituições, porque olha como no nome diz ‘doméstica’ e aí a gente está tratando do que é o mais caro para o indivíduo, que deve ser a família, um ambiente saudável. Então culturalmente, a mulher só veio ter direito a voto agora em 1922, a condição dela era de escrava, na Grécia antiga e em tantas outras civilizações, então eu acho que a educação e políticas públicas específicas são o caminho para se combater efetivamente. Essa mulher precisa ser autossuficiente para provar a própria subsistência, ela precisa de apoio psicológico para se ver como vítima, resistir a violência. São vários fatores, o combate é multifacetado, são várias frentes que precisam atuar”, complementou.
Para as mulheres que estão sofrendo de violência e que precisam garantir sua segurança, as medidas protetivas existem e elas podem solicitar, inclusive virtualmente, sem sair de casa. Clécia deu mais detalhes de como as mulheres podem prosseguir.
“Ela pode procurar a defensoria pública, ela pode procurar uma delegacia, ela pode usar qualquer porta. Essa rede de proteção é composta pela SPM, pela ronda Maria da Penha, pela sociedade civil organizada, pela delegacia da mulher, MP, vara da violência, defensoria pública, centro de referência Maria Quitéria, ela pode ir lá que fazem o encaminhamento e trazem aqui. Ela pode fazer uma denúncia anônima pelo 180, disque 100. Pode registrar um boletim de ocorrência ou uma medida protetiva de casa virtual. Tem uma aba que ela clica e aparece todo o passo a passo. Denunciar é o caminho”, alertou a delegada em entrevista ao Acorda Cidade.
Segundo Clécia, muitas temem denunciar por medo de represálias até mesmo da família e pela exposição da vida pessoal. Por isso, passar por uma rede de apoio é fundamental para se fortalecer diante de uma situação de violência.
“Muitas porque é um processo sofrido, você vai expor sua vida íntima, os problemas da sua casa e muitas vezes esse problema é o homem que você ama, que um dia amou, o pai dos seus filhos, é aquela pessoa que você vai conversar com a sogra, com a irmã, com a cunhada, ‘olha ele está me agredindo, me xingando’ e elas dizem ‘é você que não está sabendo levar, quando ele chegar exaltado, fique calada’, quer dizer então que ela se culpa e não se vê como vítima. O apoio psicológico que a gente dá na Deam o CRMQ tem sido um aliado nisso, porque a mulher precisa passar pela terapia para se entender como vítima e se fortalecer, porque ao contrário do que muitos dizem que chamam a polícia e que ele nega, que mulher gosta de apanhar, o que existe é uma mulher tão fragilizada, a autoestima lá em baixo que não tem nem forças para reagir, que não tem para onde ir, não tem uma casa para ir com os filhos, então estamos falando as duas formas mais cruéis a dependência financeira e a emocional”, alertou.
Além disso, a delegada fez uma comparação com o ano de 2022 e pontuou que o tráfico de drogas tem sido um diferencial a mais no fortalecimento das violências contra as mulheres.
“Eu posso destacar seguramente que as motivações têm mudado, tem havido essa flexibilização. O que faz com que o número de ocorrências em Feira seja elevado? Hoje a gente tem um fator, que quase 70% das mulheres que vem aqui, elas relatam o uso de drogas por parte de seus parceiros, então a gente tem que ver e trabalhar para entender o fenômeno do tráfico de drogas como algo que está minando as relações sociais, íntimas e domésticas, não é apenas um mal amplo social, é muito mais perverso do que a gente imagina”, revelou.
Com informações do repórter Ed Santos do Acorda Cidade
Siga o Acorda Cidade no Google Notícias e receba os principais destaques do dia. Participe também dos nossos grupos no WhatsApp e Telegram