Não é todo dia que uma corte internacional expede ordens de prisão contra governantes de Estados soberanos, ainda nos cargos. Por isso causou alvoroço planetário o anúncio feito, em 17 de março de 2023, pelo juiz presidente do Tribunal Penal Internacional (TPI), Piotr Hofmański (Polônia), de que uma turma de três magistrados havia expedido um mandado de prisão contra o presidente russo Vladimir Putin.
A prisão foi requerida pela Procurador do TPI, Karim Khan (Reino Unido), em 22 de fevereiro de 2023, um ano após o inicio da guerra. A acusação contra Putin e a Comissária para os Direitos da Criança da Rússia, Maria Alekseyevna Lvova-Belova, é de deportação em massa de crianças ucranianas. Segundo a Procuradoria, o governo russo tem promovido transferências forçadas de crianças do leste da Ucrânia para o território russo. Esta prática é proibida pela IV Convenção de Genebra de 1949, relativa à Proteção das Pessoas Civis em Tempo de Guerra, e se enquadra como crime de competência do TPI.
O mandado foi expedido pela Câmara de Questões Preliminares II (Pre-Trial Chamber II), uma espécie de juízo de garantias colegiado, com base no art. 48 do Estatuto de Roma, pela existência de indícios da prática do crime de guerra previsto no art. 8.2.a.viii e 2.b.viii do ER, que tipificam como crimes de guerra a deportação e a transferência forçadas de pessoas protegidas. A segunda turma de questões preliminares (juízo de instrução, na versão brasileira do tratado), é composta pela juíza Tomoko Akane (Japão) e pelos juízes Rosario Salvatore Aitala (Itália) e Antoine Kesia-Mbe Mindua (Congo). O conteúdo dos dois mandados de prisão por eles expedidos é sigiloso, tendo em vista a necessidade de proteção das crianças vítimas dos crimes e das testemunhas desses fatos.
No âmbito do TPI, a prisão no início da persecução pode ocorrer após a abertura da investigação, sempre que a câmara preliminar deferir pedido da Procuradoria que revele a existência de motivos suficientes para crer que a pessoa visada cometeu um crime da competência do Tribunal; e que a prisão cautelar dessa pessoa se mostra necessária para garantir o seu comparecimento ao Tribunal. A finalidade da medida cautelar, com base no art. 58 do ER, será garantir que o investigado não obstruirá, nem porá em perigo a investigação ou a atuação do Tribunal; ou impedir que tal pessoa continue a cometer esse crime ou um crime conexo de competência do Tribunal.
No vídeo em que anunciou a medida cautelar contra Putin, o presidente do TPI disse que a Corte fizera o seu papel ao decidir. De fato, a execução dos mandados dependerá dos Estados Partes da ONU, mediante cooperação internacional com o Tribunal, e, principalmente dos 123 Estados que ratificaram o Estatuto de Roma de 1998, entre os quais está o Brasil. Evidentemente, ninguém espera que uma coalizão internacional invada Moscou, se acerque do Kremlin e capture Putin.
A probabilidade de execução de um mandado dessa natureza é baixa. Em fatos igualmente violadores da ordem internacional, relativos à Situação em Darfur, no Sudão, o TPI não conseguiu a cooperação de países africanos para a prisão de Omar Al-Bashir, então ditador do país. Devido aos mandados de prisão expedidos pelo TPI em 2009 e 2010 – um deles por genocídio –, Omar Al-Bashir se tornou o primeiro líder de um país a ser alcançado por uma ordem de prisão quando ainda no cargo. Putin é o segundo a lograr esse feito.
Mesmo assim, dificilmente veremos uma operação internacional, seja dos Estados Unidos ou da União Europeia, para prender o presidente da Rússia, um país que é uma potência nuclear e que, do mesmo modo que EUA e China, não é parte do Estatuto de Roma. Na prática, porém, Putin e Maria Lvova-Belova ficam desde já com seus movimentos limitados. Teoricamente só poderão sair da Rússia para visitar países satélites, os que se tornaram independentes depois da dissolução da URSS, como a Bielorrússia (Belarus); algumas pequenas repúblicas separatistas do Cáucaso, como a Abecásia, Artsaque e Transnístria; e talvez a Venezuela e a China, que, além de não integrarem o TPI são aliados de Moscou.
Rússia e Ucrânia não são partes do Estatuto de Roma de 1998, mas Kiev reconheceu voluntariamente, por duas vezes, em 2014 e 2015, a jurisdição do TPI, nos termos do art. 12, §2º e 3º, do tratado, para os eventos que se iniciaram em 21 de novembro de 2013 em Lugansk, Donestk e na Crimeia e que culminaram com a invasão mais ampla, por Moscou, em 2022.
Tal medida ucraniana permitiu que a Procuradoria do TPI iniciasse uma investigação preliminar, sobre crimes de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, apuração esta que dependeria de aval de uma das câmaras de questões preliminares. Contudo, a rota foi abreviada porque inúmeros Estados Partes do ER/1998, valendo-se do art. 14 do tratado, fizeram representações à Procuradoria (“denúncias” ou referrals) para que a jurisdição do TPI pudesse ser afirmada no caso “Situação na Ucrânia”. O apoio desses 43 Estados Partes acelerou o procedimento preliminar a cargo da Procuradoria e levou à medida cautelar divulgada em meados de março de 2023. A Republica da Lituânia abriu a lista de Estados noticiantes, que é integrada também por Alemanha, Bélgica, Chile, Dinamarca, Espanha, França, Geórgia, Hungria, Islândia, Japão, Luxemburgo, Macedônia do Norte, Nova Zelândia, Portugal etc.
O mecanismo art. 12.3 do ER/1998 alcança os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade e o crime de genocídio. Contudo, o crime de agressão – que foi delimitado pela Emenda de Kampala, de 2010 e agora está nos arts. 8º-bis, 15-bis e 15-ter do ER/1998 – não pode ser julgado pelo TPI em relação a Estados que não sejam partes do Estatuto de Roma. De fato, nos termos do art. 15 bis, § 5º do Estatuto, “em relação a um Estado que não seja Parte deste Estatuto, a Corte não exercerá sua jurisdição sobre o crime de agressão quando for cometido por nacionais desse Estado ou no seu território”.
Por essa razão, há um movimento internacional para criar um tribunal penal internacional ad hoc para julgar o presidente Putin, o chanceler Serguei Lavrov, o ministro da Defesa Serguei Choigu, entre outras autoridades responsáveis pela agressão à soberania ucraniana. Uma pessoa comete o “crime de agressão”, na forma do art. 8º-bis do ER quando, “estando em condições de controlar ou dirigir efetivamente a ação política ou militar de um Estado, planeje, prepare, inicie ou pratique um ato de agressão que, pelas suas características, gravidade e dimensão, constitui uma violação manifesta da Carta das Nações Unidas”. Foi o que ocorreu em 2022, sendo robustas e fartas as provas de que a decisão de invadir a Ucrânia partiu do Kremlin e foi executada sob seu comando.
Embora seja muito difícil, quase impossível, que vejamos a prisão de Putin enquanto ele tiver uma cadeira no Kremlin, a posição do TPI tem um importante efeito dissuasório sobre as práticas criminosas adotadas por Moscou em território ucraniano e também pode inibir ações criminosas de outros indivíduos noutras partes do globo.
Do ponto de vista das relações internacionais, a medida serve de antídoto à crítica corrente de que o TPI só alcança crimes cometidos por líderes africanos ou em países do 3º Mundo, como as Filipinas ou a Venezuela. Ao mandar prender Putin, o TPI cumpriu seu mandato, declarou sua vontade e reafirmou o propósito de Justiça Internacional almejado desde a Primeira Grande Guerra, quando fracassou o plano das Potências Aliadas de julgar o kaiser alemão Guilherme II, pelos crimes contra a paz cometidos naquele contexto (Tratado de Versalhes, de 1919), e também se frustrou a ideia de levar a julgamento os líderes do Império Turco-Otomano, responsáveis pelo genocídio armênio (Tratado de Sèvres, de 1920).
Não é pouca coisa mandar prender o líder de uma das maiores potências do Planeta, e que é também integrante do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Se, ao menos agora, nada acontecerá na prática, situações políticas são mutáveis como nuvens, como dizia Magalhães Pinto. Putin está no poder desde 1999, ora como primeiro-ministro, ora como presidente russo. Ninguém sabe o que ocorrerá na Rússia nos próximos meses ou anos. Entretanto, com essa decisão do TPI, Putin se torna oficialmente um pária na comunidade internacional. Sua participação em foros externos, como os BRICs ou a ONU, fica inviabilizada, a menos que os Estados sedes de eventos internacionais não sejam partes do Estatuto de Roma ou se os Estados Partes resolverem ignorar a obrigação de cumprir as ordens de prisão expedidas pelo Tribunal, nos termos do art. 86 (“Os Estados Partes deverão, em conformidade com o disposto no presente Estatuto, cooperar plenamente com o Tribunal no inquérito e no procedimento contra crimes da competência deste”), para detenção e posterior entrega.
No mapa abaixo, vemos em verde todos os Estados Partes do ER/1998, que estão obrigados a cumprir os mandados. Hoje são 123 países. Os demais não estão sujeitos a esse dever internacional pelo Estatuto de Roma. Em vermelho, vemos os Estados não partes, a exemplo da China. Em laranja: os ex-signatários, entres eles Rússia e Estados Unidos. Em amarelo: os Estados signatários sem ratificação, como a Argélia. O Brasil integra o rol dos Estados Partes. O ER/1998 foi promulgado pelo Decreto 4.388/2002.
Quando um mandado de prisão internacional é expedido pelo TPI, a Procuradoria pede seu envio a todos os Estados Partes, para cumprimento como um pedido de detenção e entrega, nos termos do art. 91 do ER/1998. Foi assim com a decisão de 2009, no caso Al Bashir.
No Brasil, o pedido de cooperação internacional vertical feito pela Corte para a prisão do líder sudanês foi distribuído ao STF como PET 4625, como se fosse um pedido extradicional, por analogia. Ocorre que os institutos da extradição e da entrega são diversos, como expliquei nesse post de 2014. Para piorar, o Brasil ainda não havia aprovado (e não aprovou até hoje) a lei de implementação do Estatuto de Roma, que deveria instituir, entre outras coisas, regras de cooperação internacional. A falta de um enabling legislation dificulta a cooperação passiva do Brasil com o TPI. O PL 301/2007 está na Câmara dos Deputados desde 2013, sem andamento. Sua última movimentação legislativa fará dez anos em junho de 2023. A aprovação dessa lei é essencial para nosso relacionamento com o Tribunal, pois, segundo o art. 88 do ER, “os Estados Partes deverão assegurar-se de que o seu direito interno prevê procedimentos que permitam responder a todas as formas de cooperação especificadas” no Capítulo IX do tratado. Ali estão os pedidos de entrega (art. 89) e de prisão preventiva (art. 92), por exemplo.
O problema de tratar um pedido de entrega ao TPI como se fosse uma solicitação de extradição é que isso representaria a ampliação da competência do STF, por analogia. Quando decidiu a PET 4625, a ministra Rosa Weber disse que a competência originária do STF “está prevista taxativamente na Constituição Federal, submetida ao regime de direito estrito, não sendo passível de ampliação por interpretação analógica”. Lembrou a eminente relatora que a jurisprudência da Corte “é pacífica em reconhecer a impossibilidade de ampliação da competência originária constitucional”. Por isso mesmo, Rosa Weber afirmou ser “impossível aplicar à entrega o procedimento previsto para a extradição, o que torna imperioso o reconhecimento da incompetência desta Corte para o processamento do pedido de cooperação internacional — ao menos enquanto permanecer a lacuna legislativa sobre a matéria.” Disso decorre que, na falta da lei brasileira de implementação, e caso haja a necessidade de cumprir um pedido de assistência internacional do TPI, a competência para fazê-lo é do juiz federal de primeiro grau, “dado o preceituado no art. 109, inciso III, da Constituição Federal.” (PET 4625). Na indicação do juízo competente, a Min. Rosa Weber seguiu a lição de Valério Mazzuolli, com quem concordo. Na falta de lei que determine o procedimento a ser adotado no Brasil, a decisão sobre a entrega de pessoas procuradas pelo TPI cabe aos juízes federais.
Assim, teoricamente, a decisão sobre a execução no Brasil da prisão de Al Bashir deveria ficar com um juiz federal, especificamente da seção judiciária do Distrito Federal, já que o réu nunca residiu no Brasil. Vale aí o disposto no art. 88, parte final, do CPP. Porém, Al Bashir foi preso no Sudão e atualmente cumpre pena em Kartum por crimes cometidos naquele país. Assim, o pedido de prisão expedido ao Brasil pelo TPI perdeu seu objeto e foi arquivado pela ministra Rosa Weber em 2020: “o advento da prisão de Omar Hassan Al Bashir em seu país de origem, no curso deste processo, constitui fato superveniente que repercute sobre o interesse processual do peticionante”, adicionando-se que “a custódia do requerido sob a jurisdição do Sudão torna o pedido de sua detenção em território brasileiro materialmente inexequível, implicando a perda superveniente do objeto da ação.” (STF, PET 4625, Rel. Min. Rosa Weber, d. em 20/06/2020).
Mutatis mutandi, quando o pedido de detenção e entrega de Putin chegar ao Brasil, o Ministério da Justiça deverá tramitá-lo à Procuradoria-Geral da República para que o MPF peticione a um juiz federal de 1ª instância, em Brasília, conforme a orientação do STF na PET 4625.
Ao ser informado da existência dos mandados, o Procurador-Geral da República da Ucrânia, Andriy Kostin, comemorou a decisão do TPI, que é histórica para a afirmação do direito penal internacional. Já o vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, Dmitri Medvedev, reagiu de forma grosseira. Alguns críticos reclamaram da falta de medidas semelhantes contra ex-presidentes norte-americanos ou outros governantes do passado. Estes são sinais de que a impunidade dos poderosos ainda é a tônica aqui e alhures. Adolf Hitler, Pol Pot e Idi Amin Dada, só para citar alguns dentre os piores déspotas da História, nunca foram julgados pelas atrocidades que ordenaram. Sobre o passado, não há mais o que fazer, mas o futuro está em construção hoje.
Putin será preso? Muito provavelmente não. Não enquanto estiver no poder em Moscou, encastelado no Kremlin, em seu interminável mandato como homem forte da Rússia. Apesar das dificuldades conjunturais do cenário mundial, a decisão cautelar do TPI é uma condenação à política de guerra de Putin; é um alerta para outros criminosos internacionais; e é um alento para a justiça penal internacional.
[Publicado originalmente no Conjur em 3 de abril de 2023]