Para o relator do recurso, ministro Luiz Fux, a matéria não é novidade na Corte, tendo sido apreciada algumas vezes nas instâncias inferiores da Justiça, sem que possa, contudo, afirmar que se estabeleceu jurisprudência. Essa pauta, que é de interesse de todos, foi tema em 2010 de uma monografia do curso de Direito da Universidade Estadual de Feira de Santana.
Com o tema, “Perspectiva Constitucional a cerca da Tutela Jurídica de Famílias Simultâneas no Âmbito da Conjugalidade”, a monografia foi aprovada com nota 10. O advogado Érico Viana, autor do trabalho, falou sobre o assunto.
Roberta Costa: Erico, porque a escolha desse tema?
Érico Viana: Eu sempre questionei os padrões e modelos sociais, procurando olhar por determinados temas que a sociedade e a moral cristã, muitas vezes segrega e marginaliza. O tema me chamou a atenção quando eu estudei o direito de família, pois não é cabível que o direito feche os olhos para uma situação tão corriqueira na sociedade brasileira. Apesar do Código Civil não tratar da questão, constitucionalmente podemos dar uma resposta, ou seja, o direito precisa tutelar, reconhecer como família entidades familiares paralelas.
RC: O que é uma relação paralela?
EV: É uma relação estável, onde há a necessidade de constituir família. Não são relações furtuitas, mas sim, marcadas pela habitualidade. O indivíduo tem o matrimônio e, paralelo a isso, tem outro.
RC: Então, o homem que sai, trai a esposa apenas por uma noite, não é uma relação paralela?
EV: É interessante sua pergunta, para esclarecer que, só é relação paralela quando se estabelece um vínculo, quando a relação se caracteriza como uma família.
RC: Por que as amantes são tão descriminadas na nossa sociedade?
EV: Como eu mostro na monografia, a descriminação da mulher tida como “a outra”, possui raízes históricas, baseada no modelo de colonização que nós tivemos. Primeiro chegaram no Brasil, os brancos portugueses. Só depois de muito tempo, as mulheres chegaram. Aqui, os homens estabeleceram vínculos com as indígenas. Só que pela moral cristã, cultural e a sociedade machista patriarcal da época, o homem só poderia casar com a mulher branca vinda de Portugal. Então, isso foi se perpetuando como costume. A desvalorização da chamada amante possui uma questão racial muito forte.
RC: Hoje em dia ainda existe esse conceito?
EV: Não posso responder cientificamente, porque não fiz nenhuma pesquisa sociológica e antropológica nesse sentido. Nós percebemos que a sociedade modificou determinados valores e que a questão social e racial está menos atrelada.
RC: A menina que vai para a balada, transa com vários homens, possui filhos fora do casamento…Você considera que ela é vista pela sociedade como a mulher para “não casar”?
EV: Do ponto de vista jurídico pode ter ainda muito disso. Pois, os juristas somos nós, que somos reflexo de nossa sociedade. O juiz ou a juíza, que decide um caso, estão carregados de valores. Então, podem entender que uma mulher que sai com vários homens e se submeteu a ter uma relação com um homem casado, moralmente não merece uma proteção estatal como tutela.
RC: Quais os direitos que uma mulher que vive relação paralela pode ter?
EV: No âmbito previdenciário, ela pode ter direito a pensão por morte. E, no caso de separação ainda em vida, pensão alimentícia.
RC: E a esposa? Como fica nessa situação?
EV: Alguns tribunais, o que eu pessoalmente discordo, têm entendido a possibilidade de recompensar a mulher que se julga traída, enganada, por danos morais e afetivos. Eu entendo que ela pode pleitear essa recompensa, mas não condenar a outra a invisibilidade.
RC: Mas, ela realmente foi traída…
EV: Mas, um erro não justifica o outro. Eu não faço julgamento de moral na monografia, mas por causa dessa traição, a outra não pode ficar sem seus direitos.
RC: E o homem?
EV: Se o Superior Tribunal de Justiça (STJ) deseja proteger a monogamia, deixar do jeito que está, vai enfraquecê-la. A situação atual privilegia o homem. Mas, se for possível o reconhecimento de famílias paralelas, talvez ele pense duas vezes antes de estabelecer outros vínculos, porque ele será responsabilizado.
RC: Érico, você acredita que o machismo da nossa sociedade também parte das mulheres?
EV: O direito reflete um pouco da sociedade. A mulher é vítima e algoz do próprio machismo. Quando eu conversava com mulheres sobre o tema do meu trabalho, sentia muita rejeição em relação a outra. A Constituição de 1988 positivou o princípio da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade. O Estado não pode entrar em uma seara tão privada, tão íntima como é a forma que os indivíduos estabelecem seus vínculos. Cabe ao Estado regular e não dizer modelos, tipo, “o casamento é monogâmico e vai ser dessa forma. Se for de outra forma, não vale.
RC: Por exemplo, uma mulher se relaciona durante um ano com um homem casado e eles se separam. Ela possui direitos?
EV: O STJ entende que, por mais que você junte testemunhas, mostre fotografias, prove que possuía vínculos com o homem, ali não há relação familiar. O STF, através do ministro Luis Fux, reconheceu o tema como repercussão geral e agora vai decidir se a amante vai ter direitos ou não.