Mais um episódio da série “Me engana que eu gosto”. Em decisão proferida em março/2012, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou posição hipergarantista que facilita a vida de qualquer um que queira usar o Judiciário para obter ganhos ilícitos, mediante o chamado “estelionato judiciário”, enquadrável no art. 171 do Código Penal.
O caso concreto é até compreensível, mas a ementa e seus fundamentos abrem a porteira para todo tipo de ilícitos por meio de ações judiciais que tenham em vista iludir juízes, fazendo-os propositalmente incorrer em erros de julgamento. Qualquer um percebe que uma alegação mentirosa perante um juiz atenta contra a dignidade da justiça e pode causar dano a outra parte e também ao erário. Porém, para a 6ª Turma do STJ:
PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 171 DO CP. OCORRÊNCIA. ESTELIONATO JUDICIÁRIO. CONDUTA ATÍPICA. DESLEALDADE PROCESSUAL. PUNIÇÃO PELO CPC, ARTS. 14 A 18. RECURSO ESPECIAL A QUE SE DÁ PROVIMENTO.
1. Não configura “estelionato judicial” a conduta de quem obtém o levantamento indevido de valores em ação judicial, porque a Constituição da República assegura à parte o acesso ao Poder Judiciário. O processo tem natureza dialética, possibilitando o exercício do contraditório e a interposição dos recursos cabíveis, não se podendo falar, no caso, em “indução em erro” do magistrado. Eventual ilicitude de documentos que embasaram o pedido judicial poderia, em tese, constituir crime autônomo, que não se confunde com a imputação de “estelionato judicial” e não foi descrito na denúncia.
2. A deslealdade processual é combatida por meio do Código de Processo Civil, que prevê a condenação do litigante de má-fé ao pagamento de multa, e ainda passível de punição disciplinar no âmbito do Estatuto da Advocacia.
3. Recurso especial a que se dá provimento, para absolver as recorrentes, restabelecendo-se a sentença (STJ, 6ª Turma, RESP 1.101.914/RJ, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 6/março/2012, unânime).
Dizer que para reprovar condutas como esta seria suficiente a multa civil por litigância de má-fé é o mesmo que dizer que um homicídio culposo não precisaria ser punido porque há a reparação civil e a multa pela infração de trânsito.
Outro fundamento da decisão é o direito de acesso à Justiça, que, segundo tal raciocínio, poderia ser usado inclusive para iludir o juiz, com base na primeira Lei de Gerson. Parece que o Judiciário tem poucas causas para julgar e ainda pode dar-se ao luxo de tolerar petições fraudulentas.
A relatora do RESP 1.101.914/RJ foi a ministra Maria Thereza de Assis Moura, a mesma que proferiu o voto condutor no julgamento no qual a 3ª Seção do STJ “tolerou” o estupro de menores prostituídas quando cometido com violência presumida na redação do Código Penal anterior à reforma promovida pela Lei 12.015/2009 (STJ, 3ª Seção, ED no RESP, j. 14/dez/2011).
A tese acolhida pelo STJ no RESP 1.101.914/RJ está longe de ser pacífica. Em recurso especial que manejou contra decisão semelhante, proferida por uma das turmas do TRF da 2ª Região na ação penal 2005.51.01.503954-3, o procurador regional da República Rogério Nascimento, da 2ª Região (RJ e ES), ensinou:
Não se ignora que a posição adotada pela Turma do E. Tribunal Regional tem prevalecido na 6ª Turma deste Colendo Superior Tribunal, como se vê do provimento dado ao Recurso Especial nº 1.101.914/RJ, relatado pela Ministra Maria Thereza de Assim Moura, em 06/03/2012, centrado nos argumentos de que: 1) a formulação de pedido é incompatível com ardil, pois é função do juiz apreciar a postulação; 2) sentença não é vantagem ilicitamente obtida; 3) há resposta extra-penal para a deslealdade da parte, no CPC e, 4) a subsidiariedade recomenda que se afaste a incidência do direito penal quando há meio de tutela extra-penal do bem jurídico.
Todavia, a exemplo do que sustenta Nilo Batista – legitimado por indiscutível autoridade –, no artigo Estelionato Judiciário, publicado em 1997 na Revista da Faculdade de Direito da UERJ, Rio de Janeiro, v. 5, p. 209-217, e sem demérito para a communis opinio, este órgão ministerial acredita que a negação da tipicidade do estelionato judiciário não se sustenta. Toma-se, por isso, a liberdade de se valer, na sequência desta razões, do rico e atualizado exame da matéria feito no artigo supracitado. No mesmo sentido, aliás, decidiu a Primeira Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no acórdão depois reformado pelo STJ, relatado pelo Des. Federal Abel Gomes (ACR nº 20001.02.01.007383-8), razão pela qual, também se toma a liberdade de rememorar, adiante, trechos do voto condutor.
Conforme demostrou Nilo Batista, no direito estrangeiro a aceitação do estelionato judiciário (Prozessbetrug, truffa processuale ou estafa procesal) “é, hoje, posição doutrinal predominante”, merecendo destaque, no cenário brasileiro, ao lado do próprio, a voz abalizada de Magalhães Noronha (Crimes contra o Patrimônio, v. 2, p. 321). Assim se posicionaram Binding, von Lizt, Maurach, Wessels, Welzel, Antolisei, Martuchi, Giuseppe Ragno, Qintano Ripollés, Jiménez Huerta e Sebastían Soler. Na Espanha que possui um Código relativamente recente há até expressa previsão legal (art. 248.1 c/c art. 250.1, 2º da Lei Orgânica n. 10, de 1995).”
Citando Batista, conclui:
O estelionatário judicial não é um delirante como Calígula, que postulava a lua, nem um “desobediente civil”, como Thoreau, que questionava a lei; é um espertalhão que apresenta ao juiz um elemento falso ou omite um elemento verdadeiro – em ambos os casos, violando os deveres de lealdade e verdade – levando-o a uma decisão que não seria prolatada sem a consideração desse elemento. (Nilo Batista, ob. cit. p. 212).
Assim, em tempos como estes de muitas falácias e pouco siso, a decisão da 6ª Turma do STJ sobre o “171 judicial” é um estímulo ao uso do Judiciário para chicanas e golpes processuais, em detrimento da dignidade da Justiça, do tempo das autoridades e das partes e do patrimônio de terceiros.
O espanto do leitor com tal decisão só não é maior porque o acórdão abaixo, relativo ao crime de homicídio, ainda não foi publicado:
DUELO – LICITUDE – EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO – HOMICÍDIO NÃO CONFIGURADO – CONDUTA ATÍPICA – CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA – APLICAÇÃO DO ART. 5º, INCISO LXXIX DA CONSTITUIÇÃO. Não configura o crime de homicídio a conduta do agente que desafia outrem a duelo em praça pública e acaba matando-o. O direito de acesso a armas de fogo é garantido pela Constituição e pelo Estatuto do Desarmamento. O embate contraditório é próprio do duelo, entrevero tradicional nas sociedades modernas e pacíficas. Trata-se de indiferente penal. O ofendido é o único responsável pelo desfecho morte porque aceitou dolosamente o desafio do paciente e não foi exímio o bastante para desviar-se dos projeteis deflagrados contra sua cabeça. Aplicação da teoria matrix de autodefesa. Tiro pelas costas e a queima-roupa. Irrelevância. Bala mágica do caso Kennedy. Precedentes. Desculpa esfarrapada. Validade. Habeas corpus concedido para anular a ação penal. Inteligência do art. 5º, inciso LXXIX, da Constituição Federal, que assegura o direito fundamental à impunidade. (STI, HC 121.171/PM – País das Maravilhas, rel. min. Alice Wonderland, j. em 01/04/2012, p. Em 01/04/2013).