A liberdade de expressão é um tema sensível nas democracias. Estabelecer seus limites é algo tormentoso para constitucionalistas, cientistas políticos e filósofos. Um deles, John Stuart Mill (1806-1873), foi o mote para este post sobre o tema. Os tribunais ao redor do mundo também têm sido chamados a tratar desse assunto, como se viu, por exemplo, no caso Brandenburg vs. Ohio, julgado pela Suprema Corte norte-americana, em 1969, sobre o qual escrevi aqui.
No particular, o art. 13 da CADH, ao assegurar a liberdade de expressão do pensamento, determina que o exercício desse direito não pode estar sujeito a censura prévia, mas se submete a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas, ou ainda à proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas. O §5º do art. 13 do tratado estabelece também que a legislação dos Estados Partes “deve proibir” toda propaganda em prol de guerras e qualquer forma de apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.
No mesmo tom, o art. 10 da Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), de 1950, vem dizer que o exercício da liberdade de expressão,
(…) porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.
No Brasil, certos autores preferem adotar a visão mais larga da liberdade de expressão, inspirando-se na Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, que assegura maior latitude ao free speech. Outros autores, porém, consideram que o modelo mais adequado ao Brasil para a aferição da liberdade de expressão é aquele fundado nas convenções internacionais de direitos humanos, sobretudo o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, e a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), de 1969.
Ao decidir casos relativos ao discurso de ódio (hate speech) e a abusos do direito de livre expressão, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem adotado em sua jurisprudência duas abordagens preponderantes, extraídas da Convenção Europeia.
Primeiramente, excluem-se do âmbito de proteção previsto no art. 10 da Convenção as situações de abuso do direito,[1] ou seja, os casos em que o discurso, a fala ou o escrito equivalem a incitação ao ódio, de qualquer natureza, ou quando negam ou rejeitam valores fundamentais previstos na CEDH.
Em segundo lugar, o TEDH costuma afirmar a valia das restrições contidas no art. 10.2 da Convenção, sempre que o discurso questionado, embora não tenha potencial de minar os valores convencionais, possa ser classificado como hate speech.
Da União Europeia vem um outro bom exemplo. Em 17 de fevereiro de 2024, passará a ser aplicável em todos os 26 Estados Membros da UE e tambem na Islândia, na Noruega e em Liechstenstein, o Regulamento de Serviços Digitais (DSA). Trata-se do Regulamento (UE) 2022/2065 do Parlamento Europeu e do Conselho de 19 de outubro de 2022 relativo a um mercado único para os serviços digitais e que altera a Diretiva 2000/31/CE, que estabelece mecanismos para controlar a disseminação de desinformação e suprimi-la das redes sociais, por due diligence corporativa, ou por decisão administrativa ou judicial, conforme o direito comunitário ou o direito interno dos Estados Partes.
O DSA traz o conceito de VLOPs (very large online platforms) ou plataformas on-line de muito grande dimensão e lhes atribui obrigações especiais para o controle e a remoção do conteúdo ilegal publicado ou da desinformação difundida. Motores de busca de grande dimensão também terão deveres especiais, com base no DSA, ato legislativo que, sendo um regulamento, aplica-se diretamente na ordem jurídica comunitária europeia.
Conforme o considerando 47 do Regulamento (UE) 2022/2065, busca-se um equilíbrio entre direitos e garantias institucionais, com vistas à proteção de todos os interesses e valores da sociedade europeoa.
(…) os fornecedores de plataformas em linha de muito grande dimensão deverão, em especial, ter devidamente em conta a liberdade de expressão e de informação, nomeadamente a liberdade e o pluralismo dos meios de comunicação social. Todos os prestadores de serviços intermediários deverão também ter em devida conta as normas internacionais pertinentes em matéria de proteção dos direitos humanos, como os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos.
(DSA – Regulamento 2022/2065)
Como se nota ao longo do DSA, as medidas que visem a suprimir ou bloquear o acesso a certos elementos de informação considerados conteúdos ilegais não devem “afetar indevidamente a liberdade de expressão e de informação dos destinatários do serviço“, cabendo às autoridades e aos prestadores de serviços digitais observar o princípio da proporcionalidade.
Quando o DSA estiver em vigor, as VLOPs deverão analisar quatro espécies de riscos sistêmicos fundamentais que decorrem do uso ou do abuso dos seus serviços digitais. Os consideranda 80 a 83 os descrevem. A primeira categoria é a dos riscos inerentes à difusão de conteúdos ilegais, como material pedopornográfico, incitação ao ódio e o comércio ilegal, que, usualmente, correspondem a crimes conforme o direito interno dos Estados Partes e os tratados internacionais.
A segunda categoria de riscos, segundo o DSA, engloba o impacto real ou potencial desses serviços digitais sobre o exercício dos direitos fundamentais protegidos pela Carta da União Europeia do ano 2000, entre os quais se incluem o direito à dignidade da pessoa humana, a liberdade de expressão, o direito à vida privada e o direito à não discriminação.
A terceira categoria de riscos derivados da operação das VLOPs “diz respeito aos efeitos negativos reais ou previsíveis nos processos democráticos, no discurso cívico e nos processos eleitorais, bem como na segurança pública”. É inegável os danos que os abusos da publicação e da distribuição de conteúdos antidemocráticos podem causar aos Estados Democráticos de Direito.
A quarta categoria de riscos envolve, entre outros aspectos, a manipulação da população sobre políticas públicas, com consequências concretas ou potenciais sobre a proteção da saúde pública. Foi o que se viu em várias partes do mundo durante a pandemia de Covid-19, com a disseminação de peças de desinformação capazes de abalar as convicções de um monge.
O terceiro e o quarto tópicos têm muita relevância no Brasil contemporâneo e em países de democratização tardia.
Stuart Mill e os justices norte-americanos de 1969 que decidiram o caso Brandenburg não conheceram a Internet, as redes sociais, os algoritmos nem o enorme potencial que as plataformas digitais têm para espalhar desinformação (fake news) e conteúdo ilegal, com potencial de pôr em risco valores da democracia e o gozo dos direitos humanos.
A tardia condenação cível do radialista conspiracionista Alex Jones nos Estados Unidos, o que só ocorreu em 2022, é um “excelente” exemplo do terrível mal com que as sociedades da era da informação têm de lidar. Em sua Inforwars, Jones alegava em seus programas ouvidos por milhões de pessoas que o massacre ocorrido em 2012 na escola de Sandy Hook, em Connnecticut, teria sido uma encenação com atores. As famílias das 20 pequenas vítimas tiveram suas vidas destroçadas uma primeira vez pelos tiros disparados dentro da escola e muitas outras vezes pelas ondas do programa de rádio de Jones, que incitou comportamentos viciosos, ofensas e assédios horrendos contra essas pessoas.
Tudo o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil?
Já vem de alguns anos o clamor de certos segmentos radicais da sociedade brasileira em prol de uma intervenção militar “constitucional”, supostamente autorizada pelo art. 142 da Carta de 1988. Ives Gandra da Silva Martins é o autor dessa exótica tese, empregada por movimentos autoritários contra o Estado Democrático de Direito no Brasil.
Por meses, durante o ano de 2022, graças a desinformação massivamente despejada nos lares sob o manto de “liberdade de expressão”, brasileiros passaram a desconfiar das urnas eletrônicas, do processo eleitoral e do resultado do pleito presidencial. A bolha midiática facilitada pela atual arquitetura tecnológica da Internet – e por seus algoritmos viciados – mobilizou protestos às portas de quarteis do Exército em várias cidades do País, nos quais os participantes exigiam uma ingerência (indevida, é óbvio) do poder militar sobre o poder civil.
Em 8 de janeiro de 2023 (o 8/1), essas palavras e discursos digitalmente inflamados – que em grande parte equivaliam a incitações a delitos contra o Estado Democrático de Direito – se transformaram em ações, e cerca de 4 mil pessoas invadiram os palácios do Planalto e do Supremo Tribunal Federal e os edifícios do Congresso Nacional para vandalizá-los e exigir a mudança do resultado das eleições presidenciais de 2022. Foi uma tentativa de golpe e assim o Ministério Público Federal e o sistema de justiça criminal o vem tratando.
Na análise do fenômeno, de um lado, estavam aqueles que não viam em tais manifestações pré-8/1 nada mais do que o exercício da liberdade de expressão, enquanto, de outro lado, havia aqueles, como eu, que enxergavam em tais condutas de exortação a um golpe uma violação direta à cláusula constitucional democrática e incursão de tais pessoas no art. 286, parágrafo único, do Código Penal.
Incitação ao crime
Art. 286 – Incitar, publicamente, a prática de crime:
Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade.
Na Europa, a Corte de Estrasburgo se debruçou sobre a incompatibilidade de tal tipo de protesto com os valores fundamentais da Convenção de 1950. Não é difícil chegar à mesma conclusão aqui, tendo como parâmetros de aferição a Constituição de 1988 (arts. 1º e 2º) e os arts. 15 e 32 da CADH. Este dispositivo determina que “os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, numa sociedade democrática.” Vale dizer, a tônica dos direitos humanos é a convivência de todos numa sociedade constituída sobre bases democráticas. O Estado de Direito é o fator necessário e suficiente para o reconhecimento, a garantia e o gozo de direitos fundamentais.
Ao cuidar das ameaças à ordem democrática no contexto da liberdade de expressão, a antiga Comissão Europeia de Direitos Humanos afirmou e também a Corte Europeia tem declarado válida a restrição da difusão de ideias inspiradas em doutrinas totalitárias ou que expressem ideais que representam uma ameaça à ordem democrática e ao Estado de Direito ou que possam levar à instituição de uma ditadura ou à ruptura do regime democrático. A expressão e a propagação de tais doutrinas é considerada incompatível com o espirito da Convenção Europeia.
Pode-se citar o importante precedente firmado em 1957 pela Comissão Europeia de Direitos Humanos, ao decidir o caso do Partido Comunista da Alemanha vs. República Federal da Alemanha. Também vale mencionar a série de pronunciamentos do sistema regional europeu sobre a inadmissibilidade de processos contra a Áustria, como o caso B.H, M.W, H.P e G.K. vs. Áustria, objeto de decisão da Comissão em 1989; o caso Nachtmann vs. Áustria, decidido pela Comissão, em 1998; e o caso Schimanek vs. Áustria, considerado inadmissível pela Corte Europeia, no ano 2000.
Conforme a Corte Europeia no caso Eğitim ve Bilim Emekçileri Sendikası vs. Turquia, de 2012, em uma sociedade democrática baseada no estado de direito, “ideias políticas que desafiem a ordem existente e cuja realização seja defendida por meios pacíficos devem ter uma oportunidade adequada de expressão”.
Como se lê no §47 da sentença proferida pelo TEDH em Partido Socialista e Outros vs. Turquia, de 1998, o pluralismo político é da essência da democracia, o que enseja o debate público de diferentes propostas e visões de mundo, “mesmo daquelas que questionam a atual forma de organização de um Estado, desde que elas não prejudiquem a própria democracia.” Essa abordagem tem-se repetido no Tribunal de Estrasburgo ao longo dos anos, como se vê neste caso contra a Itália:
Caso Centro Europa 7 SRL e Di Stefano vs. Italia (2012)
A Corte considera oportuno, desde já, recapitular os princípios gerais estabelecidos em sua jurisprudência sobre o pluralismo nos meios audiovisuais. Como muitas vezes observou, não pode haver democracia sem pluralismo. A democracia prospera na liberdade de expressão. É da essência da democracia permitir que sejam propostos e debatidos diversos programas políticos, mesmo aqueles que põem em causa a forma como um Estado está atualmente organizado, desde que não prejudiquem a própria democracia.
Deste modo, movimentos ou doutrinas que defendam a ruína da democracia, a ruptura da ordem democrática, a supressão de direitos de certos grupos ou a destruição do Estado de Direito não são compatíveis com os tratados de direitos humanos e ofendem diretamente a ordem constitucional das democracias liberais. Este é, sem dúvida, o caso daqueles que, saudosos de uma ditadura, clamam pela eclosão de um novo regime, mediante um golpe de Estado. Definitivamente, neste sentido, discursos antidemocráticos não devem ser tolerados pelas democracias.
[1] Segundo o art. 17 da CEDH, “Nenhuma das disposições da presente Convenção se pode interpretar no sentido de implicar para um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de se dedicar a atividade ou praticar atos em ordem à destruição dos direitos ou liberdades reconhecidos na presente Convenção ou a maiores limitações de tais direitos e liberdades do que as previstas na Convenção.”
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