Por Vladimir Aras
Qual a relação entre um sequestro extorsivo em São Paulo e sequestros qualificados cometidos durante a ditadura militar argentina?
Aparentemente nenhuma. Mas a correta classificação de tais delitos quanto ao seu momento consumativo permitiu três soluções judiciais em prol da persecução criminal, asseguradoras do direito fundamental à segurança pública e à atuação da justiça criminal.
Um sequestro em São Paulo
Examino primeiramente o caso de um sequestro cometido no interior de São Paulo. Quando a privação da liberdade da vítima começou, um dos agentes era um adolescente infrator (quem está entre os 12 anos completos e os 18 anos incompletos). Pessoas dessa faixa etária estão sujeitas a medidas sócio-educativas e são sempre julgadas pela Justiça da Infância e da Juventude – antigo Juizado de Menores –, conforme a Lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Porém, há casos em que a prática de um crime cuja execução se inicie antes dos 18 anos pode redundar em imputação penal ordinária, a ser julgada pela Justiça criminal comum. A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou um caso assim em 28/fevereiro/2012. Cerca de oito anos antes, na cidade de Taboão da Serra, Fulaninho de Tal, o “Dimenor”, tomou parte de um sequestro. A vítima foi privada de sua liberdade em 22 de setembro de 2004, quando Fulaninho tinha 17 anos.
Fulaninho e seus cúmplices queriam um milhão de reais em troca da libertação da vítima. A família pagou 29 mil reais, e o ex-”dimenor” pegou 26 anos de reclusão pelo crime de extorsão mediante sequestro, que está previsto no art. 159, §1º, do CP.
Como isto é possível se ele era menor na data em que se iniciou o crime? O sequestro durou 47 dias e só cessou em 9 de novembro de 2004. Fulaninho de Tal completara 18 anos no dia 3 de outubro de 2004 (maioridade penal), ainda no curso da ação delituosa. Por isto veio sua condenação.
A defesa alegou em habeas corpus (HC) que o rapaz era inimputável (art. 228 da Constituição – cláusula pétrea), o que anularia a sentença condenatória. O caso subiu ao STJ.
O HC foi relatado no STJ pelo ministro Marco Aurélio Bellizze, que rechaçou a tese sustentada pela Defensoria Pública na impetração, porque o delito de extorsão mediante sequestro é de natureza permanente. Sua execução se prolonga no tempo, como num maldito gerundismo desse tipo que se tornou uma praga por aí: “a vítima estará sendo sequestrada pelo réu”. Quando Fulaninho de Tal tornou-se adulto, o crime ainda estava em execução. Denegado o HC, “Fulaninho” continuou na prisão. Já não era “dimenor” (sic).
Crimes permanentes e ditadura argentina
Esta solução judicial, baseada na classificação do sequestro extorsivo como crime permanente, é a mesma que foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em duas ocasiões para conceder a extradição de réus acusados da prática de crimes durante a ditadura militar na Argentina, especialmente o “desaparecimento forçado” de opositores.
Nesses dois importantíssimos precedentes, o STF deferiu os pedidos de extradição do major Manuel Juan Cordero Piacentini (Extradição 974, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 6/ago/2009) e do major Norberto Raúl Tozzo (Extradição 1150, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 19/maio/2011), para a República Argentina.
Manuel Cordero, um militar uruguaio, foi extraditado para a Argentina, para responder pelo sequestro (art. 148 , §1º, do CP) de um menor durante a Operação Condor, uma articulação dos governos militares do Cone Sul, para perseguir os “subversivos” de então, nos conturbados anos 1970.
Por sua vez, o major Tozzo foi acusado de envolvimento no Massacre de Margarita Belén, ocorrido em 13 de dezembro de 1976, na província do Chaco, durante o governo Videla. Dos 22 jovens peronistas, opositores ao regime vigente, presos e executados na época, quatro não foram encontrados até hoje: Fernando Gabriel Pierola, Julio Andres Pereira, Roberto Horacio Yedro e Reynaldo Amalio Zapata Soñez.
Pela decisão do STF, Tozzo acabou extraditado para a Argentina para ser julgado pelo crime de sequestro qualificado desses quatro jovens (art. 148, §1º, inciso III, do CP).
Cada uma a seu modo, as defesas de Cordero e Tozzo alegaram que suas extradições não poderiam ser deferidas pelo STF porque o crime de desaparecimento forçado era atípico no Brasil e os homicídios já haviam sido atingidos pela prescrição da pretensão punitiva.
Tais teses de defesa processual costumam ser muito eficientes no procedimento extradicional. Segundo o art. 77 da Lei 6.815/890 (Estatuto do Estrangeiro), a extradição não pode ser concedida pelo Brasil se não houver a dupla tipicidade ou dupla incriminação e se o fato estiver prescrito, segundo a lei mais favorável.
Art. 77. Não se concederá a extradição quando:
[…]
II – o fato que motivar o pedido não for considerado crime no Brasil ou no Estado requerente;
[…]
VI – estiver extinta a punibilidade pela prescrição segundo a lei brasileira ou a do Estado requerente; […]”.
Quem é capaz de advinhar qual das leis penais é a mais boazinha em termos prescricionais? A Argentina ou a brasileira? Não revelo nem sob tortura que é a do Brasil.
Assim, crimes de homicídio cometidos durante os anos de chumbo na nação do Prata podiam ser objeto de ações penais na origem, mas estavam irremediavelmente prescritos segundo a lei brasileira. No Brasil, o homicídio é atingido por tal fenômeno extintivo da punibilidade em 20 anos, e a ação penal correspondente vai ao cemitério ao encontro da vítima (art. 109, inciso I, CP).
Por outro lado, aparentemente tinha razão a defesa de tais militares na alegação de que não existe formalmente no Brasil o tipo penal de “desaparecimento forçado” de pessoas. Este delito, da categoria dos crimes contra a humanidade, está previsto em vários tratados de diretos humanos e foi introduzido na legislação de diversos países, muitos deles na América Latina. Na Argentina, o crime de “desaparición forzada” pode ser punido até com prisão perpétua, segundo os artigos 142-bis e 142-ter do CP argentino.
Nós ainda não criminalizamos tal conduta, embora o Estado brasileiro tenha-se obrigado a fazê-lo quando ratificou a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas (Convenção de Belém do Pará, de 1994), já aprovada pelo Congresso (Decreto Legislativo 127/2011). Segundo o art. 2º do tratado:
[…] entende-se por desaparecimento forçado a privação de liberdade de uma pessoa ou mais pessoas, seja de que forma for, praticada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que atuem com autorização, apoio ou consentimento do Estado, seguida de falta de informação ou da recusa a reconhecer a privação de liberdade ou a informar sobre o paradeiro da pessoa, impedindo assim o exercício dos recursos legais e das garantias processuais pertinentes.
Então, pode parecer que o STF não poderia mesmo extraditar Cordero nem Tozzo. Os homicídios estavam prescritos e os desaparecimentos forçados seriam atípicos de acordo com a lei brasileira.
Contudo, o STF saiu dessa roda de suplícios dogmáticos com uma solução muito inteligente, já adotada, por exemplo, para o crime de conspiração, equiparado pela Corte ao delito de quadrilha. Seguindo a mesma técnica que vai ao núcleo da conduta e despreza o nomen juris do delito, o STF entendeu que o desaparecimento forçado no contexto daqueles autos equiparava-se ao crime de sequestro, do artigo 148 do CP brasileiro.
As vítimas desapareceram; seus corpos não foram encontrados. É lícito presumir pro societate que tenham sido sequestradas e que a privação de suas liberdades continue até hoje. Como o sequestro é um crime permanente, não ocorreu ainda a prescrição da pretensão punitiva em abstrato, pois o termo inicial de tal contagem é justamente a cessação da permanência, isto é, a libertação da vítima (art. 111, III, do CP):
Art. 111 – A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr:
III – nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência;
Por tais razões, ambas as extradições foram deferidas em parte, permitindo que o Ministerio Público Fiscal da República Argentina promovesse as ações penais contra Tozzo e Cordero Piacentini pelos delitos de lesa-humanidade cometidos ao longo do regime de exceção da década de 1970.
Esta tese é a mesma que permite que o Ministério Público Federal brasileiro dê início a ações penais para a punição dos responsáveis pelo desaparecimento de várias pessoas durante a ditadura militar brasileira (1964-1985).
Falei deste tema neste Blog quando comentei a Sentença de 24 de Novembro de 2010 (aqui a decisão), proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), com sede na Costa Rica. Este tribunal internacional condenou o Brasil a iniciar a persecução dos delitos cometidos na região do Araguaia (caso Gomes Lund e outros versus Brasil), onde desapareceram algumas dezenas de militantes de esquerda. Leia aqui o post (“Mais uma batalha do Araguaia”).
A CIDH determinou, de forma inequívoca, que o Estado brasileiro adote as providências punitivas cabíveis, o que reclama a atuação do Ministério Público Federal, contra as autoridades e servidores da União responsáveis pelos desaparecimentos, nos termos do art. 129, inciso I, combinado com o art. 109, inciso IV, da Constituição. Na ocasião, assim decidiram os juízes interamericanos:
O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 256 e 257 da presente Sentença (item 325 da sentença, §9)
Embora a Lei de Anistia de 1979 tenha sido declarada constitucional pelo STF na ADPF 153, a execução de tais crimes de sequestro (art. 148, CP) e de ocultação de cadáver (art. 211, CP), por suas naturezas permanentes, perdura no tempo e se prolonga até hoje, em 2012. A permanência dessas condutas só cessará quando tais pessoas forem libertadas, se vivas, ou quando seus corpos forem localizados.
Além disso, a Corte Interamericana declarou inconvencional a Lei de Anistia (Lei 6.683/79), o que significa que tal texto, validado pelo STF, ofende a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, da qual o Brasil é signatário. Eis o item 174 da Sentença no caso Gomes Lund:
174. Dada sua manifesta incompatibilidade com a Convenção Americana, as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos carecem de efeitos jurídicos. Em consequência, não podem continuar a representar um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, nem podem ter igual ou similar impacto sobre outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.
Enquanto esses túmulos não forem cerrados, o tema da Justiça de Transição continuará a ser um cadáver insepulto e incômodo na sala de visitas da democracia brasileira. Esses crimes são permanentes e as dores por eles provocadas não passarão.