Vladimir Aras

O julgamento das Juntas Militares Argentinas em 1985

Com vistas a reprimir “a subversão” e atos terroristas, os réus cometeram um grande número de delitos de privação ilegal da liberdade.

Foto: Pixabay
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O filme “Argentina, 1985”, dirigido por Santiago Mitre e disponível na plataforma Amazon Prime, é um retrato claro e potente de um período de dor e horror da história argentina e que teve similares no Chile, na Bolívia, no Uruguai e no Brasil. Ao tempo de suas respectivas ditaduras, os regimes desses países se coordenaram por meio da Operação Condor (Plan Cóndor).

Em “Argentina, 1985” se conta uma parte do julgamento dos nove integrantes das três primeiras Juntas Militares argentinas responsáveis por crimes contra a humanidade, tortura, sequestros, estupros, subtração de incapazes, homicídios, desaparecimentos forçados e outros delitos graves, que foram cometidos durante o violento regime de exceção que durou de março de 1976 a dezembro de 1983, durante o chamado Proceso de Reorganización Nacional. Centros clandestinos de detenção e tortura foram espalhados pelo país, e um dos mais terríveis funcionava na Escola de Mecânica da Marinha (ESMA).

De transcendência internacional, tal persecução penal foi viabilizada pelo Decreto 158/1983, firmado pelo presidente Raúl Alfonsín (1983-1989) em 13 de dezembro de 1983, que ordenou levar a julgamento os nove oficiais das Forças Armadas que integraram as Juntas Militares responsáveis pela ditadura instaurada em 24 de março de 1976, após o golpe de Estado que derrubou a presidente Maria Estela (Isabelita) Martínez de Perón.

Referido ato normativo possibilitou a imediata realização de um Juicio Sumario ante el Consejo Supremo de las Fuerzas Armadas, tendo como réus os integrantes das juntas. Aplicavam-se, então, os arts. 122 e 502 do Código de Justiça Militar, de 1951, revogado após a redemocratização do país. O decreto assinado por Alfonsín, o primeiro presidente eleito após o golpe de 1976, foi publicado cinco dias após sua posse no governo argentino. Sua aplicação pelas Forças Armadas levou à instauração da famosa Causa 13/84, perante o foro especial militar. Ordenava o decreto:

Art. 1

Sométase a juicio sumario ante el Consejo Supremo de las Fuerzas Armadas a los integrantes de la Junta Militar que usurpó el gobierno de la Nación el 24 de marzo de 1976 y a los integrantes de las dos juntas militares subsiguientes, Teniente General Jorge R. Videla, Brigadier General Orlando R. Agosti, Almirante Emilio A. Massera, Teniente General Roberto E. Viola, Brigadier General Omar D. R. Graffigna, Almirante Armando J. Lambruschini, Teniente General Leopoldo F. Galtieri, Brigadier General Basilio Lami Dozo y Almirante Jorge I. Anaya.

Art. 2

Ese enjuiciamiento se referirá a los delitos de homicidio, privación ilegal de la libertad y aplicación de tormentos a los detenidos, sin perjuicio de los demás de que resulten autores inmediatos o mediatos, instigadores o cómplices los oficiales superiores mencionados en el art.1.

Art. 3

La sentencia del tribunal militar será apelable ante la Cámara Federal en los términos de las modificaciones al Código de Justicia Militar una vez sancionadas por el H. Congreso de la Nación el proyecto remitido en el día de la fecha.[1]

O processo penal militar contra os oficiais mencionados no art. 1º do Decreto iniciou-se em 28 de dezembro de 1983. Naquele momento, militares só podiam ser julgados pela Justiça castrense, qualquer que fosse o delito. No entanto, em 13 de fevereiro do ano seguinte, o Congresso Nacional argentino aprovou a Lei 23.049/1984, que, modificando o Código de Justiça Militar, restringiu a competência da justiça castrense apenas para o julgamento de crimes militares próprios (essencialmente militares), como deserção, insubordinação e abandono de posto. A partir de então, todos os demais crimes, ainda que cometidos por militares, estariam sujeitos à justiça comum (civil).

Diante da inércia da Justiça castrense argentina em concluir o julgamento e tendo em conta o princípio da razoável duração do processo, em 4 de outubro de 1984, a Causa 13 foi avocada pela Justiça Federal bonaerense (Cámara Nacional de Apelaciones en lo Criminal y Correccional Federal), com base no art. 10 da Lei 23.049/1984, segundo o qual “Se a Câmara verificar uma demora injustificada ou negligência na tramitação da ação, assumirá o conhecimento do processo qualquer que seja o estado em que se encontrem os autos”.

Com a chegada do processo à justiça comum, iniciou-se imediatamente a investigação pelo Ministério Público Fiscal do país, que se valeu de importantes provas coligidas pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), que foram reunidas e examinadas no seu famoso relatório “Nunca Más”, que havia sido publicado em 20 de setembro de 1984.

A instrução criminal iniciou-se em 22 de abril de 1985 perante os seis juízes da Câmara Nacional de Apelações em Matéria Penal e Correcional Federal da Capital argentina, tendo-se encerrado em 14 de agosto do mesmo ano, após a tomada dos depoimentos de 833 pessoas, todos filmados para memória e a justiça histórica. Tais declarações revelaram o horror resultante do plano sistemático de perseguição, prisões ilegais e homicídios praticados pelo regime contra “subversivos” e supostos opositores do regime.

A sustentação oral do promotor (fiscal) argentino Julio Cesar Strassera (1933-2015) teve lugar em Buenos Aires no dia 18 de setembro de 1985. É, sem dúvida, um dos momentos marcantes do Juicio a las Juntas, e é uma peça que entrou para a história forense mundial. No filme, Ricardo Darín interpreta Strassera.

A defesa dos nove militares pôde manifestar-se em seguida. Ao final do julgamento, com a leitura da sentença em 9 de dezembro de 1985, o tenente-general do Exército Jorge Rafael Videla e o almirante da Marinha Emilio Eduardo Massera, que compuseram a primeira junta militar, foram condenados a prisão perpétua e à perda de suas patentes. Roberto Viola foi sentenciado a 17 anos de prisão; Armando Lambruschini a 8 anos; e o brigadeiro Orlando Ramón Agosti, que também integrou a primeira junta, pegou 4 anos e meio. Todos perderam suas insígnias. Os outros quatro militares foram absolvidos, entre eles o general Leopoldo Galtieri.

O tribunal que processou a causa em primeiro grau constatou que, com vistas a reprimir “a subversão” e atos terroristas, os réus cometeram um grande número de delitos de privação ilegal da liberdade, torturas e homicídios e o crime contra a humanidade de desparecimento forçado, que hoje é objeto da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, firmada em Belém do Pará, em 1994, e da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, concluída em Nova York em 2006.

O Juicio a las Juntas foi a primeira vez que um tribunal civil, um colegiado formado por seis juízes da justiça comum, julgou oficiais militares por crimes de lesa-humanidade. Comparável aos julgamentos do Tribunal de Nuremberg que, todavia, era uma corte militar, a Causa 13/84 teve enorme importância para a proteção dos direitos humanos e a descoberta da verdade, mediante um processo de justiça de transição.

Infelizmente, em inaceitável retrocesso, em dezembro de 1990, o presidente Carlos Menem (1930-2021), valendo do art. 86 da Constituição Nacional de 1853, então vigente, concedeu indulto individual a todos os condenados no caso das Juntas. O Decreto 2.741/90 indultou Jorge Rafael Videla, Emilio Massera, Orlando Ramón Agosti, Roberto Viola e Armando Lambruschini. Estaria extinta a punibilidade dos condenados.

Essa decisão presidencial foi posteriormente questionada perante tribunais locais, primeiramente perante a Câmara Nacional de Apelação em Matéria Penal e Correcional Federal, da capital argentina, que, em 2007, declarou inconstitucionais os indultos que beneficiaram os chefes militares da última ditadura argentina.

Tal decisão foi confirmada pela Câmara Nacional de Cassação Penal (Cámara Nacional de Casación Penal), tendo então chegado, mediante recurso extraordinário dos réus, à Suprema Corte de Justiça da Nação Argentina (SCJN).

Em 2010, o tribunal máximo do país considerou inconstitucional o decreto de indulto expedido por Menem. No seu julgado, a SCJN citou o caso do Presídio Miguel Castro Castro vs. Peru (2006) e o caso dos Trabalhadores Demitidos do Congresso (Aguado Alfaro e Outros) vs. Peru (2006), relativos a graves violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura de Alberto Fujimori, em 1992, nos quais se acentuou a importância do controle de convencionalidade dos atos estatais.

Abramos um parêntese sobre o contexto peruano. Em 2017, o próprio Alberto Fujimori, condenado por crimes contra a humanidade, foi indultado, por razões humanitárias, por meio de um decreto firmado pelo presidente Pedro Pablo Kuczynski, em 24 de dezembro de 2017. Este decreto foi invalidado pela Corte Suprema peruana e depois revalidado pelo Tribunal Constitucional do Peru em 17 de março de 2022. Logo depois, em abril de 2022, este acórdão foi objeto de medidas cautelares proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) nos procedimentos de supervisão de cumprimento das sentenças proferidas nos casos Barrios Altos vs. Peru (2001) e La Cantuta vs. Peru (2006). A Corte IDH viu no referido indulto potencial violação aos dever internacional de punir, de maneira efetiva, as graves violações de direitos humanos verificadas nos dois episódios ocorridos no governo Fujimori.

Voltando à Argentina do ano de 2010, vemos que, ao fundamentar sua decisão, a Suprema Corte de Justiça da Nação recordou que a jurisprudência da Corte IDH é uma incontornável pauta interpretativa para os poderes constituídos no âmbito de suas competências. Disso decorre, em conformidade com os julgados interamericanos desde o precedente Almonacid Arellano vs. Chile (2006), o dever para o Poder Judiciário de exercer, não apenas um controle de constitucionalidade, mas também o de realizar, de ofício, o controle de convencionalidade das normas jurídicas internas em relação à Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), tendo em conta ainda a interpretação que dela faz a Corte IDH, como intérprete última da CADH.

A Suprema Corte argentina também invocou sua própria jurisprudência para invalidar o indulto concedido por Menem aos condenados na Causa 13/84. Referindo-se a sua decisão no caso Mazzeo, de 13 de julho de 2007, especialmente o seu item 31 (p. 24), o tribunal assentou que “Os crimes que implicam violação aos princípios mais elementares da convivência humana civilizada, estão infensos a decisões discricionárias de qualquer dos poderes do Estado que diluam os recursos efetivos que o Estado deve ter para obter sua punição”. Ali também se afirmou que:

Qualquer que seja a amplitude do instituto do indulto, trata-se de uma faculdade inaplicável a esse tipo de processo, pois, caso fossem indultados réus envolvidos na prática de crimes contra a humanidade, isso implicaria descumprir o dever internacional do Estado de investigar e estabelecer responsabilidades e punições; da mesma forma, tratando-se de indultos para condenados, também é violado o dever do Estado de aplicar sanções adequadas à natureza de tais crimes.

Para evitar repetições de episódios como o de Menem, o art. 36 da Constituição da Argentina de 1994, que substituiu a de 1853, passou a impedir expressamente a concessão de indulto a atos atentatórios ao Estado Democrático de Direito.

Artículo 36.- Esta Constitución mantendrá su imperio aun cuando se interrumpiere su observancia por actos de fuerza contra el orden institucional y el sistema democrático. Estos actos serán insanablemente nulos.

Sus autores serán pasibles de la sanción prevista en el Artículo 29, inhabilitados a perpetuidad para ocupar cargos públicos y excluidos de los beneficios del indulto y la conmutación de penas.

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