Uma mula nem sempre é uma mula. Alguns muares e seus primos os jegues merecem proteção do direito ambiental. Outros bichos merecem o tratamento do direito penal.
Aurélio, o pai dos burros, diz que mula é um “animal mamífero, perissodáctilo, híbrido e estéril, resultante do cruzamento de jumento com égua, ou de cavalo com jumenta”.
Antigamente, as mulas eram só isto. Carregavam mercadorias para locais longínquos e acidentados. Caixeiros-viajantes e comerciantes de todo o tipo conduziam suas tropas por esse Brasil, levando produtos lícitos e outros ilícitos.
Agora a palavra mula identifica também outra espécie de mamíferos, mas estes são bípedes. Resultam do cruzamento da ganância com a necessidade. Transportam entorpecentes daqui para ali, em malas e bagagens e estômagos. Muitas mulas carregam drogas dentro de seus próprios organismos. Esses poderiam enquadrar-se na honrosa categoria dos jumentos.
Assim, de acordo com o direito penal veterinário, podemos distinguir as mulas, como animas de sela e montaria, das outras mulas, seres vivos que buscam uma cela na prisão.
Toco no assunto asinino-muar, porque o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ e ES), num caso concreto, teve de fazer a classificação para fins penais de um desses espécimes.
Em 2008, um rapaz de 26 anos trouxe da Holanda uma carga valiosíssima. Desembarcou no Aeroporto do Galeão com cerca de R$ 4 milhões em drogas sintéticas: 290 g de ácido lisérgico (LSD) e 11 kg de ecstasy (MDMA), além de 302 g de skank, uma maconha mais potente que um coice.
Esta discussão é o maior barato. Só sai caro para quem não usa. Em 2011, o INSS concedeu 125 mil auxílios-doença a dependentes químicos, o que onerou a União em mais de 107 milhões de reais. Isso sem falar no SUS, que atendeu mais de 3 milhões de drogaditos em 2011, e nos acidentes de trabalho provocados por uso de drogas, como o crack, a cocaína, anfetaminas e a maconha.
Nesse caso do Rio de Janeiro, a Polícia Federal pegou o cabra em flagrante, e o MPF denunciou-o à Justiça por narcotráfico internacional (art. 33, da Lei 11.343/2006 c/c o art. 40, I, da mesma lei). O procurador pediu a punição do sujeito e o juiz condenou-o à pena de 3 anos, 8 meses e 10 dias de reclusão em regime aberto.
Desde 2006, a pena mínima para narcotráfico vai de 5 a 15 anos de reclusão. Quando a droga vem do exterior ou vai para lá, a pena pode ser aumentada de 1/6 a 2/3, segundo o art. 40, inciso I, da Lei 11.343/06, em razão da internacionalidade da conduta.
A quantidade da droga importa na fixação da pena. O réu transportara 40 mil comprimidos de ecstasy e uns 17 mil pontos de LSD. Só uma “mula-sem-cabeça” faria uma loucura dessas. Diz o art. 42 da Lei do Narcotráfico:
Art. 42. O juiz, na fixação das penas, considerará, com preponderância sobre o previsto no art. 59 do Código Penal, a natureza e a quantidade da substância ou do produto, a personalidade e a conduta social do agente.
Como, então, a pena final desse réu pôde ser tão baixa? A questão era saber se o acusado era uma simples mula, ou não. Coisa de taxonomia penal. Mero gado, boi de piranha, ou cavalo de raça num esquema maior? O juiz entendeu que era aplicável ao acusado a causa especial de diminuição de pena prevista no art. 33, §4º, da Lei 11.343/2006, que beneficia as mulas que sejam primárias e que não integrem organizações criminosas. Por isto, sua pena foi reduzida no grau máximo, em 2/3 (dois terços).
§4º. Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.
O Ministério Público Federal recorreu, e o TRF-2, por maioria de 2 x 1, deu razão à acusação. Ao prover a apelação criminal do MPF, o TRF aumentou a pena do acusado para 12 anos e 3 meses de reclusão em regime inicial fechado. Eis um trecho do acórdão, relatado pelo competente desembargador Abel Gomes:
III – Na causa de aumento do art. 40 da Lei nº 11.343/2006, a incidência da fração de aumento deriva do número de causas presentes. Não é aplicável ao caso concreto a causa de diminuição do art. 33, §4º da Lei n. 11.343/06. A quantidade de unidades de drogas, somada ao valor estimado da carga – milhões de reais – revela que o acusado seria pessoa de confiança para figurar no foco de transporte de carga tão vultosa, cujo conteúdo, só poderia ser manipulado por uma organização criminosa especializada na comercialização de drogas sintéticas no país. (TRF-2, 1ª Turma Especializada, rel. Des. Abel Gomes, autos 0490115-52.2008.4.02.5101, j. 27/01/2010).
Uma pena dessas é para picar a mula, dar no pé. Mas o acusado que era mula mas não era besta, ficou e recorreu por meio de embargos infringentes. Este tipo de medida é mais uma das maravilhas do sistema recursal brasileiro, uma benesse criada pelo legislador, que passa a mão na cabeça do réu, num adorável cafuné processual. Esses embargos só podem ser opostos em favor do réu para, num colegiado ampliado, fazer valer o voto minoritário (vencido) proferido em turma ou câmara criminal, quando apreciada a apelação, nos termos do art. 609, parágrafo único, do CPP:
Art. 609. […]
Parágrafo único. Quando não for unânime a decisão de segunda instância, desfavorável ao réu, admitem-se embargos infringentes e de nulidade, que poderão ser opostos dentro de 10 (dez) dias, a contar da publicação de acórdão, na forma do art.613. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto de divergência.
Em tais embargos, julgados em dez/2011, a seção especializada do TRF-2 inverteu o julgado e fez prevalecer o voto vencido, o que levou a redução da sanção em 1/6 (um sexto), e não em 2/3 (dois terços) como preconizou o juiz da causa. Isto equivale à pena de 11 anos e 1 mês de reclusão reduzida de um sexto.
Aplicando a equação exp(z) = ez = ex+iy = exeiy = ex[cos(y)+i.sen(y)] chegamos facilmente à pena final da mula.
Viu aí? Pensou que estudar Direito ia te livrar da Matemática, não é? A fórmula não é essa, é claro, mas agora faça a conta que estou sem tempo.