Por Vladimir Aras
Não é o que você está pensando.
O Congresso Nacional não está alheio ao debate sobre a lavagem de dinheiro. No dia 25/out, a convite dos deputados federais Mendonça Prado, Fernando Francischini e Protógenes Queiroz, estive na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados para falar sobre medidas necessárias para o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro, na visão do Ministério Público.
Veja a notícia publicada pelo portal da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Depois volto:
Diretor da ANPR debate lavagem de dinheiro na Câmara dos Deputados
O diretor de Assuntos Jurídicos da ANPR, procurador da República Vladimir Aras (PR/BA), participou na tarde desta terça-feira, 25, de audiência pública na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados, em Brasília. Ao lado de juristas e de representantes do Poder Público, Aras debateu as medidas eficazes de combate à corrupção e ao crime de lavagem de dinheiro. O vice-presidente da ANPR, procurador da República José Robalinho (PR/DF), também esteve presente acompanhando o debate. Durante sua apresentação, Aras falou sobre a necessidade de ampliar a tipificação de crimes no Código Penal. “Estamos inseridos num contexto global que exige que a nossa legislação esteja harmonizada com a legislação mundial, voltada à percepção de certos tipos de crimes”, afirmou. Segundo ele, a regulamentação do lobby, o crime de corrupção no setor privado e a obstrução da Justiça são alguns dos exemplos que devem ser incluídos. Aras defende também uma legislação adequada que permita combater esses crimes e chegar até a máfia do crime organizado. Outro ponto fundamental é que o Estado esteja devidamente aparelhado para atuar no combate. “Sem servidores públicos bem capacitados, bem remunerados, nada disso que os senhores criarem em legislação funciona”, defendeu. Em consonância com Aras, o juiz federal do Paraná Sergio Fernando Moro também defendeu a necessidade de revisar as leis. “Estamos carecendo de atualização no arsenal legislativo”, afirmou o juiz. Já o desembargador Fausto de Sanctis, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, falou sobre a impunidade daqueles que praticam o crime de corrupção. “Fico indignado, como cidadão e como juiz, quando vejo que o crime compensa”, lamentou. Na mesma linha, o diretor do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, Ricardo Saadi, apresentou o perfil dos detentos brasileiros. Segundo ele, das 512 mil pessoas presas hoje, só 76 foram por corrupção passiva e nenhuma, exclusivamente, por lavagem de dinheiro. Além disso, desses 512 mil presos, somente 1.854 têm ensino superior, contra 29 mil analfabetos. Por fim, o chefe do Departamento de Prevenção a Ilícitos Financeiros do Banco Central, Ricardo Liao, falou da necessidade de atuar firme no combate aos ilícitos. “A corrupção não é uma questão normal, cotidiana. É, sim, de difícil solução e deve ser combatida”, afirmou Liao, que também representou a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla).
A apresentação que fiz sobre Medidas Eficazes para o Combate à Lavagem de Dinheiro e à Corrupção pode ser lida em pdf neste link.
Por coincidência, no mesmo dia 25/out, a Câmara aprovou o PL 3.443/2008, que trata da nova lei de lavagem de dinheiro.
Este projeto agora volta ao Senado. Há alguns pontos positivos e outros negativos, na versão aprovada pela Câmara dos Deputados.
Eis um apanhado das novidades que serão introduzidas na Lei 9.613/98, se o PL 3.443/2008 for mantido pelo Senado tal como está.
PONTOS POSITIVOS
1.Elimina o rol de crimes antecedentes. Agora qualquer infração penal (inclusive as contravenções penais) pode ser delito produtor, aquele que gera os ativos passíveis de reciclagem (ocultação ou dissimulação, ou lavagem de dinheiro).
2.Permite a imposição de medidas assecuratórias contra bens, direitos ou valores em nome do suspeito/acusado ou de interpostas pessoas (art. 4º). A redação aclara um ponto antes não coberto pela lei, no que se refere aos “laranjas”, agora expressamente mencionados.
3.Possibilita que bens de origem lícita sejam acautelados para a reparação do dano causado pela lavagem de dinheiro ou pela infração antecedente, para pagamento de prestação pecuniária, multa e despesas da investigação e do processo (art. 4º, §2º e §3º).
4.Exige o comparecimento pessoal do suspeito/investigado/acusado ou do “laranja” para a restituição de bens apreendidos ou tornados indisponíveis (art. 4º, §3º).
5.Elimina a proibição da imposição de fiança em casos de lavagem de capitais. Revoga o atual art. 3º da Lei 9.61398. Isto harmoniza o crime de lavagem, de cunho econômico, com os demais delitos desta espécie e mantém a congruência do sistema processual penal, após a revitalização da fiança pela Lei 12.403/2011.
6.Regula a alienação antecipada de bens antes do trânsito em julgado da sentença de mérito na ação penal (arts. 4º, §1º e 4º-A) . Disciplina minuciosamente uma praxe que hoje se baseia na Lei 11.343/06, aplicada aos casos de lavagem de dinheiro, com base no art. 3º do CPP, e por orientação de ato normativo do CNJ e em atenção a recomendação da ENCCLA.
7.Cai o prazo de 120 dias para a vigência das medidas acautelatórias antes da propositura da ação penal, tendo em vista a revogação do atual §1º do art. 4º da lei em vigor.
8.Prevê o perdimento de bens em prol dos Estados (para casos de competência estadual) ou da União (para casos de competência federal) (art .7º, I, da lei, na nova redação). Atualmente, o art. 91, II, do CP só prevê o perdimento criminal em prol da União.
9.Prevê o perdimento de ativos direta ou indiretamente ligados às infrações antecedentes e ao crime de lavagem de dinheiro, inclusive o valor da fiança e os instrumentos lícitos dos delitos (art. 7º, I, da lei). Atualmente, o art. 91, II, ‘a’, do CP só prevê o perdimento de instrumentos do crime, se ilícitos.
10.Prevê a destinação dos ativos apreendidos/confiscados para os órgãos de persecução (art. 7º, §1º). Atualmente, os bens são entregues à União, sem destinação específica. A entrega de certos ativos à Polícia e ao Ministério Público estimula a eficiência administrativa e contibui para o aperfeiçoamento do aparato investigativo.
11.Prevê partilha a 50% de bens, direitos e valores privados (originais ou derivados) nos casos de cooperação penal passiva (art. 8º, §2º), nos quais o Brasil é o Estado requerido. Esta é a regra usual de partilha de ativos (asset sharing) em caso de lavagem transnacional. Porém, quando os ativos são de origem pública, a Convenção de Mérida recomenda a devolução e repatriação integral dos valores apreendidos, suprimidas apenas as despesas processuais.
12.Amplia a lista de sujeitos obrigados no sistema de compliance, mantendo a política de twin-track fight (art 9º, parágrafo único, incisos X e XII a XVIII). Os sistemas de prevenção e repressão à lavagem de dinheiro permanecem associados e novos atores privados do mercado são chamados a cooperar para a imunização do sistema financeiro.
13.Impõe deveres de estruturação de órgãos internos de prevenção à lavagem de dinheiro compatíveis com o porte das entidades obrigadas (art. 10, III). Grandes agentes de mercado devem ter setores ou departamentos de compliance. Sujeitos obrigados de menor porte devem organizar-se de acordo com suas necessidades para o cumprimento dos deveres de registro, acompanhamento e comunicação, na política “conheça o seu cliente” (know your customer).
14.Cria o dever de cadastramento dos sujeitos obrigados perante os órgãos reguladores e o COAF (art. 10, IV). As instituições financeiras e equiparadas sujeitos a registro e controle pelo Bacen, CVM, Susep e SPC (isto já era assim), ao passo que os demais entres obrigados pelos deveres de compliance sujeitam-se a cadastro no COAF (novidade).
15.Desvincula as requisições do COAF da necessidade de intermediação judicial (art. 10, V). O próprio Conselho pode requisitar diretamente as informações, financeiras ou não, de que necessite para sua atividade de inteligência financeira.
16.Impõe prazo de 24 horas para que sujeitos obrigados façam as comunicações devidas ao COAF (art.11, II). Hoje não há prazo estabelecido em lei. A rapidez das comunicações é essencial para a interrupção do iter criminis, ou para a implementação de medidas de persecução em tempo útil.
17.Cria o dever de comunicação negativa (art. 11, III). Os entes obrigados devem informar aos supervisores do seu segmento e ao COAF que seus clientes não realizaram operações suspeitas num dado período.
18.Agrava as sanções administrativas pecuniárias (art. 12, II, a, b e c). São impostas aos sujeitos obrigados em caso de descumprimento dos deveres de compliance e due diligence, a eles impostos na forma da Lei 9.613/98.
19.Prevê a pena administrativa de suspensão da atividade (art. 12, IV). A ser imposta em casos de culpa grave ou dolo, em relação à violação dos deveres de compliance.
20.Corrige a redação do art. 12, §2º, para incluir “culpa” em lugar de “negligência”.
21.Regulariza a composição do COAF (art. 16). Passam a integrar oficialmente o Conselho representantes do Ministérios da Justiça e da Previdência Social.
22.Mantém a possibilidade de utilização da ação controlada específica para retardamento de prisões e execução de cautelares patrimoniais (art. 4º-B). A ação controlada é uma técnica especial de investigação. É prevista no art. 2º da Lei 9.034/95 e no art. 4º, §4º da Lei 9.613/98.
23.Nas quebras de sigilo, passa a exigir que os dados sejam fornecidos pelo detentor em arquivos digitais migráveis (art. 17-B). Incorpora dever de prestação de informações de quebra de sigilo fiscal e bancário em meio eletrônico. Com isto, fortalece o modelo SIMBA, criado pela ASSPA/PGR, e o futuro ARGUS, em desenvolvimento pelo MPM.
24.Autoriza o afastamento cautelar de funcionários públicos “indiciados” (art.17-C), mantendo sua remuneração. Porém, a redação é equivocada e parece admitir o afastamento automático, pelo só fato do “indiciamento” (sic) do servidor suspeito de lavagem de dinheiro.
25.Estabelece prazo de guarda de dados fiscais por no mínimo 5 anos (art.17-D). Aprovado o projeto, a RFB deverá guardar tais informações por pelo menos um quinquênio. Esta medida auxiliará à preservação de dados para futura e eventual ação penal.
26.Foi mantida a escala pena atual do crime de lavagem de dinheiro (3 a 10 anos, e multa). Numa das versões anteriores do projeto, pretendeu-se elevá-la para o intervalo entre 3 e 18 anos, e multa.
PONTOS NEGATIVOS
1.Disciplina tímida da delação premiada (art. 1º, §5º): pouco muda o instituto atual, que carece de elucidação normativa do procedimento a ser adotado pelas partes para a implantação da colaboração.
2.Caiu o artigo que tipificava o crime de financiamento ao terrorismo (art. 1º-A). Esta era uma exigência do GAFI. Não resistiu à resistência do Poder Executivo, que via na redação a possibilidade – muitíssimo remota – de criminalização de certos movimentos sociais como entes “terroristas”.
3.Caiu o artigo que permitia o acesso direto da Polícia e do Ministério Público a dados cadastrais dos investigados, como permitia a antiga redação do art. 17-B. Entendeu-se, ao meu ver erradamente, que esses dados estão cobertos pela cláusula de reserva de jurisdição.
4.Caiu o artigo que modificava a pena do crime de favorecimento real (art. 349, CP), que é de 1 a 6 anos, e multa. Este delito é aparentado ao crime de lavagem de dinheiro, tal como o é a receptação (art. 180 do CP). São formas de ocultação ou “encobrimento”, com motivações e consequências distintas. Porém, o crime do art. 349 do CP é uma infração penal de menor potencial ofensivo, o que representa tutela penal insuficiente para o bem jurídico em jogo, que é a administração da Justiça.
5.Impede a aplicação do art. 366 do CPP e cria a possibilidade de julgamento a revelia no processo penal (art. 2º, §2º). O artigo 366 do CPP é uma norma equilibrada, verdadeiramente garantista, pois considera os interesses do acusado (não ser processado à revelia) e da sociedade (suspende o curso do prazo prescricional). O artigo proposto pelo projeto é um passo atrás e seguramente, se aprovado, será declarado inconstitucional pelo STF, por ofensa ao contraditório e à ampla defesa.
6.Redação errônea do art. 17-C sobre o afastamento cautelar do “indiciado”, invertendo a lógica das cautelares. É como se o afastamento fosse automático, com o só fato do “indicamento”, que é um ato de natureza policial, sem consequências processuais. Além disso, o afastamento só cessa mediante decisão fundamentada do juiz, mas o dispositivo não exige tal decisão para a suspensão da atividade do servidor, o que viola o devido processo legal e o art. 93, IX, da Constituição.
7.O projeto nada diz sobre a participação do MPF no COAF. Se não integrar o Conselho como membro efetivo, ao menos o Parquet federal deveria ser observador com direito a voz, tal como ocorre no CADE.
8.O projeto silencia sobre a responsabilidade criminal das pessoas jurídicas, obrigação que está nas Convenções de Palermo (art. 10) e Mérida. No Brasil, por força da Lei 9.605/98 pessoas jurídicas podem responder criminalmente por delitos ambientais. Porém, o art. 173, §5º, da Constituição permite que se adote o mesmo modelo para a responsabilização de pessoas jurídicas por crimes contra a ordem econômico-financeira e a economia popular.
9.Suprimiu-se o crime de estruturação de operações financeiras para fins de lavagem, que estava prevista numa das versões anteriores do projeto. Esta tipologia de lavagem de dinheiro (“estruturação”) é muito comum e pode ser camuflada sob práticas de blindagem patrimonial, ou em se manifestar por meio de fracionamento de transações financeiras, para escapar aos avisos de risco (red flags).
10.Não previu um tipo autônomo para o crime de não comunicação de operação suspeita pelos entes obrigados. Hoje, a não comunicação dolosa pode ser punida com base no art. 13, §2º, do CP, pela teoria da relevância causal da omissão, imputável ao agente de compliance que descumpriu o dever legal de comunicação resultante da Lei 9.613/98, pois atua como garante. Isto pode levar a penas muito altas para tais servidores. Porém, a punição das omissões culposas acabam restritas à esfera administrativa, o que é insuficiente para a tutela do sistema de prevenção. O ideal seria a criação de um tipo autônomo, o que não foi feito pelo legislador.
11.Não prevê prazo para guarda de dados de compliance. Os sujeitos obrigados devem manter registros completos e atualizados sobre seus clientes (política know your customer) e sobre suas operações financeiras. Porém, a lei não estabeleceu o prazo de manutenção de tais registros. Esta disciplina fica relegada a atos normativos infralegais baixados pelos supervisores de mercado, como o Bacen e a Susep.
12.Não prevê vacatio legis (art. 5º do projeto). Se aprovada, a lei entrará em vigor na data de sua publicação. Esta disposição não é consentânea com a complexidade da norma, que melhor se acomodaria no ordenamento jurídico com um prazo de vacância razoável (entre 60 e 90 dias), nos termos do art. 8º, caput, a Lei Complementar 95/98.