A Lei Imperial de 11 de agosto de 1827, rubricada à época pela Vossa Majestade dom Pedro I, aclamado pelos povos e pela Graça de Deus como Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, abriu legalmente o caminho para a fundação de dois cursos de ciências jurídicas e sociais em nosso país – um na então provinciana e pacata cidade de São Paulo, situada na região do Largo São Francisco, outro na região de Olinda (posteriormente Recife), na região do mosteiro de São Bento.
Até o ano de 1827, e ainda durante considerável período de nossa história imperial (que é estendida até o ano de 1889 – quando líderes militares e membros da elite civil depõem dom Pedro II através de um golpe de Estado sob o argumento de fundação de um governo de forma republicana orientado ao sistema presidencialista), as faculdades de Direito brasileiras representaram importantes instituições de vanguarda para a formação de uma elite intelectual juridicamente descolonizada do estilo de ensino vigente nas universidades de Coimbra e Paris.
É verdade que, muito embora o “sentido” (o bem interno) próprio e original daquelas instituições (o ensino e produção de pesquisa e conhecimento acadêmico) tenha sido mal versado por uma cultura “bacharelesca” seduzida pelas oportunidades políticas abertas em um país ainda em formação, uma nova e autônoma consciência nacional foi lentamente formando-se e voltando-se ao exame, reflexão e resolução de questões locais de modo sintonizado com o pensamento jurídico e as teorias científicas correntes no “mundo” (Europa e Estados Unidos).
Deste modo, embora o dia “onze de agosto” seja celebrado em nosso tempo como o “dia do advogado”, é preciso que a data seja rememorada como um evento menos “localizado” e mais abrangente em razão de importantes repercussões materiais e simbólicas que as faculdades de direito introduziram nas paisagens urbanas brasileiras e na formação de nossa identidade.
Seja em São Paulo ou em Olinda/Recife, os novos centros de ensino produziram uma dinamização na rotina das cidades ao indiretamente estimularem a expansão das “repúblicas” (pensionatos) e do pequeno comércio que davam suporte às necessidades vitais dos estudantes; ao fundarem revistas acadêmicas especializadas que difundiam o conhecimento científico; ao indiretamente despertarem a produção jornalística do período; ao edificarem as primeiras bibliotecas públicas; ao dialogarem não apenas juristas, mas homens e mulheres da literatura e outros segmentos culturais – casos de Álvares de Azevedo, Castro Alves, Raul Pompéia, José Lins do Rego, Monteiro Lobato, Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst,-; ao abrigarem importantes movimentos político-sociais e figuras nacionais de expressão como Joaquim Nabuco, Luiz Gama, Rui Barbosa, Ulysses Guimarães.
Não é sem razão, portanto, que as faculdades de direito brasileiras representaram – em grande parte das vezes – centros de irradiação de esclarecimento contra tendências conservadoras de uma sociedade e um Estado ainda consideravelmente inclinados a tendências autoritárias e cultos personalistas. Não é sem razão, portanto, que as faculdades de direito e seus “produtos” (seus intelectuais e o saber produzido em seu interior) ainda sejam alvos de cortes orçamentários e ataques verborrágicos difamatórios por parte de representantes que criminosamente desrespeitam e liturgia da função pública que desempenham.
No dia onze de agosto do ano de 2022, reunidos no pátio das arcadas da faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (e em diversas outras instituições legais públicas e privadas do país), membros dos setores jurídico, econômico, artístico, científico e sociedade civil estarão reunidos para a leitura da “Carta às brasileiras e brasileiros em defesa do Estado democrático de direito”, manifesto que conta com a adesão de mais de 800 mil assinaturas verificadas e que repete evento semelhante ocorrido em agosto de 1977, quando Goffredo da Silva Telles Júnior denunciava a ilegitimidade do governo militar conclamando nova constituinte e o reestabelecimento do Estado Democrático de Direito.
Transcorridos quase cinquenta anos, estimulados por devaneios conspiracionistas e até mesmo promoção de desinformação institucionalizada acerca da confiabilidade das urnas eletrônicas e de nosso sistema eleitoral, voltamos à sombra de um novo golpismo, de uma nova tentativa de fazer crer que a sociedade é incapaz de tutelar seus próprios interesses e escolher os seus representantes. Mas contra o retrocesso as faculdades de direito mais uma vez resistem e resistirão fazendo lembrar que o onze de agosto não é apenas o dia da classe dos “advogados”, mas um dia pertencente a história da cultura jurídica do país, um dia que pertence a todos os brasileiros como um patrimônio coletivo, assim como pertencem a nós o direito de ver preservados o Estado Democrático de Direito – independente do representante eleito.
Gabriel Andrade de Salles Maia, Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Professor de Direito pelas faculdades UniNassau e Estácio, Assessor Jurídico no Hospital Geral Clériston Andrade na cidade de Feira de Santana-BA.
Siga o Acorda Cidade no Google Notícias e receba os principais destaques do dia. Participe também dos nossos grupos no WhatsApp e Telegram