Competência

Navegar é preciso; 'navio' é impreciso

Apesar de tudo isto, no caso dos pequenos holandeses abandonados na costa carioca, se crime houver, a ação penal deverá ter curso na Justiça Federal do Rio de Janeiro.

Por Vladimir Aras

Toda hora uma novidade. Vocês viram que anteontem, 26/jul, três crianças holandesas foram encontradas sozinhas em um barco ancorado no litoral do Rio de Janeiro? Incrível e bizarro. Este caso é um bom gancho para falarmos sobre competência criminal. Eis a história.

Era noite e atentos pescadores avistaram o barco com as três crianças. Ali estavam um bebê, uma menina de 2 anos e um garoto de 4 anos. Alarmados, os homens do mar alertaram o grupamento marítimo do Corpo de Bombeiros. Os pais das crianças teriam deixado os três no barco e teriam ido jantar noutra embarcação.

Como ensina a Lei de Murphy, se uma coisa pode dar errado, dará… O barco estava na Baía da Guanabara a 300 m do Iate Clube quando o pesqueiro passou e ouviu o choro das crianças. Ao serem resgatados pelos bombeiros, os menores estavam desesperados. Os pais, ao revés, aparentavam tranquilidade. A Polícia Civil apura o caso. Segundo O Globo, o casal pagou fiança de mil reais (?) e foi liberado.

O que dizer disso? Nem falarei dos pais, pois faltam-me palavras educadas para descrever essa situação absurda. Não quero afugentar meus 3,5 milhões de leitores (:-) com adjetivos impublicáveis; é o que posso dizer desses %$&*#@.

Então, fiquemos apenas com a questão processual. Assumo a hipótese de um possível crime de abandono de incapaz majorado (art. 133, §3°, II, do CP), com pena de 8 meses a 4 anos de detenção. Não digo que houve. É uma teoria.

Art. 133 – Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono:

Pena – detenção, de seis meses a três anos.

Aumento de pena

§ 3º – As penas cominadas neste artigo aumentam-se de um terço:

II – se o agente é ascendente ou descendente, cônjuge, irmão, tutor ou curador da vítima.

A quem cabe processar e julgar tal infração? Normalmente, este delito é de competência da Justiça Estadual. Contudo, nas circunstâncias em que ocorreu, o caso é de competência federal. É simples. Trata-se de delito cometido a bordo de “navio”. Não importa se o barco estava fundeado ou ancorado ou à deriva. Não importa se a navegação é marítima, fluvial ou lacustre.

Mas o que é “navio” para fins processuais penais? O CPP não responde. A Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (Convenção de Montego Bay, 1982) também silencia. O Código Penal Militar (CPM) tenta, mas não ajuda. Segundo o art. 7º, §3º, do Decreto-lei 1001/69, “considera-se navio toda embarcação sob comando militar“. Ficamos na mesma.

O art. 11 da Lei 2.180/54 – que institui o Tribunal Marítimo – tampouco tem grande serventia, pois conceitua “embarcação” de forma muito ampla: “Considera-se embarcação mercante toda construção utilizada como meio de transporte por água, e destinada à indústria da navegação, quaisquer que sejam as suas características e lugar de tráfego.”

Vejamos o precedente do caso Blake. Em dez/2001, o navegador neozelandês Peter Blake foi vítima de latrocínio. Cinco piratas invadiram o seu veleiro Seamaster, de bandeira inglesa, que estava atracado num porto do Rio Amazonas, no Estado do Amapá. Nos termos do art. 109, IX, da Constituição, a ação penal por latrocínio correu na Justiça Federal, resultando na condenação dos réus a penas de até 28 anos de reclusão (STJ, HC 57.140/AP e RESP 623.836, 6ª Turma, rel. Paulo Medina, e TRF-1, Apelação 2001.31.00.001416-7/AP, 3ª Turma, rel. des. Plauto Ribeiro). Embora sem enfrentar o tema da competência e sem definir o que é “navio”, o STF manteve a condenação ao julgar o HC 90.017/AP (STF, 1ª Turma, rel. Ricardo Lewandowski).

Noutro caso, um conflito de competência julgado em 2005 (STJ, 3ª Seção, CC 43.4094/SP, rel. min. Arnaldo Esteves de Lima), o STJ deu-nos o conceito de navio: “1. A expressão “a bordo de navio”, constante do art. 109, inciso IX, da CF/88, significa interior de embarcação de grande porte. 2. Realizando-se uma interpretação teleológica da locução, tem-se que a norma visa abranger as hipóteses em que tripulantes e passageiros, pelo potencial marítimo do navio, possam ser deslocados para águas territoriais internacionais. 3. Se à vitima não é implementado este potencial de deslocamento internacional, inexistindo o efetivo ingresso no navio, resta afastada a competência da Justiça Federal.“.

Na jurisprudência do extinto Tribunal Federal de Recursos, este entendimento também prevalecia: “Competência. Crimes a bordo de navios. Constituição, art. 125, IX, segundo a renumeração da Emenda Constitucional n. 7, de 13/04/77. A regra constitucional não abrange as embarcações de pequeno porte, ainda que admitidas ao registro do Tribunal Marítimo na forma do art. 81 e §1°, da Lei 2.180, de 05/02/54, ou suscetíveis de hipoteca, nos termos dos regulamentos a que se refere o art. 825 do Código Civil. A Constituição, ao usar a palavra navio, não se refere a embarcação qualquer, mas àquelas a que assim designa a linguagem comum, isto é, embarcações de tamanho e autonomia consideráveis. No caso dos autos, trata-se de embarcação de pesca no litoral, construído de madeira o casco, tendo dois tripulantes e os quinze demais exercendo os trabalhos de pesca. Competência da Justiça estadual” (TFR, CC 2998/SP, rel. min. Décio Miranda, j. 20/10/77).

É a linguagem comum que dá o conceito jurídico de “navio”? Essa não! Afora a imprecisão de “pequeno porte” dessas premissas, tudo bem. Mas o que é um nau de “tamanho e autonomia consideráveis”? E por que o casco de madeira faria diferença na fixação da competência? Por acaso os portugueses não chegaram aqui em 1500 nuns navios chamados “caravelas”? Pobre Cabral…

Portanto, para nossos tribunais, não entram no conceito de navio as embarcações de pequeno porte (STJ, 3ª Seção, CC 22.249/ES, rel. min. Gilson Dipp) ou pequeno calado, impróprias para navegação em alto-mar, como lanchas, botes, catraias, jetskis, jangadas, pranchas de surf, caiaques e “câmaras de ar para trator”  . Teoricamente, estes artefatos não têm grande autonomia. Nem ferry-boat escapa (TFR, CC 3.333/RJ, rel. min. Lauro Leitão). Nada disso é “navio”, porque nenhuma dessas embarcações singra os 7 mares. É o que pensam os tribunais. Por isto, não me perguntem sobre o Kon-Tik, a jangada do navegador norueguês Thor Heyerdahl, que em 1947, cruzou o Oceano Pacífico, desde a costa do Peru até as Ilhas Tuamotu na Polinésia, numa distância de mais de 4.300 milhas náuticas. Era pequeno, mas fez longo curso em alto-mar. Era navio?

Diante desses julgados, também não sei dizer se o veleiro Paratii, do explorador brasileiro Amyr Klink, entraria no conceito de navio, pois, embora tenha autonomia (foi da Antártica ao Ártico!), não é grande. E pensar que, em 1984, o mesmo Klink atravessou o Atlântico num bote de madeira de 5,6m, que apelidou de “Lâmpada Flutuante”. Saindo da Namíbia, chegou a Salvador após navegar por mais de 7 mil km. A remo. Era navio?

Menos ainda saberei esclarecer se as embarcações improvisadas utilizadas pelos balseros para fazer a travessia de Cuba até a Flórida seriam “navios”, de acordo com os tribunais brasileiros. Que dizer então da jangada construída por Tom Hanks, em “Náufrago” (Cast Away, 2000)? Definitivamente, aquilo não é um navio. Pobre “Wilson”…

Apesar de tudo isto, no caso dos pequenos holandeses abandonados na costa carioca, se crime houver, a ação penal deverá ter curso na Justiça Federal do Rio de Janeiro. Tal como o Seamaster de Blake, o barco em questão, batizado Duty Free, era desses capazes de realizar viagens transoceânicas. O veleiro realizava uma circunavegação desde a Holanda. As últimas paradas ocorreriam no Brasil. Tal embarcação me parece um “navio” para os fins do art. 109, IX, da Constituição.

Está aí. A questão fica ao sabor dos ventos. É a competência à deriva. Em suma, embora algo inexata, esta é a orientação jurisprudencial vigente quanto à definição de “navio”. Se “Navegar é preciso”, o conceito de “navio” ainda não é preciso.

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