por Vladimir Aras
A Lei 12.403/2011, que alterou o Código de Processo Penal, pode ter muitos defeitos, mas a disciplina da fiança não é um deles. Vozes agourentas vaticinavam que a lei produziria uma catástrofe em termos de segurança pública, que não ocorreu e acho que não ocorrerá. Convenhamos… Pior do que está é difícil ficar.
Com a nova lei, que entrou em vigor em 4/jul, muitos temiam a soltura de dezenas de milhares de criminosos perigosos em todo o Brasil, tendo em vista o maior rigor para a decretação ou manutenção de prisões preventivas, que são prisões cautelares determinadas pelos juízes antes do julgamento da causa. Servem para garantia da ordem pública, da ordem econômica, para assegurar a aplicação da lei penal ou por conveniência da instrução criminal (art. 312, CPP). Agora também pode-se decretar a prisão preventiva em caso de descumprimento das novas medidas cautelares pessoais (art. 282, §4º, CPP).
A reformulação da prisão preventiva é inovação que considero constitucional e razoável. Este tipo de prisão deve ser mesmo uma medida excepcional, reservada para casos graves, para situações de recalcitrância do réu ou de ofensa a interesses processuais relevantes. A preventiva não é paliativo para a morosidade da Justiça criminal e não serve para antecipar a punição de culpados. Se a Polícia, o Ministério Público e o Judiciário agissem – ou tivessem condições de agir – de forma mais célere e se não houvesse tantos abusos propiciados por recursos defensivos que não acabam nunca, as decisões finais, condenatórias ou não, chegariam a tempo de atender às legítimas aspirações da sociedade, da vítima e de seus familiares. Mas tudo demora tanto, às vezes décadas, que a prisão preventiva passou a ser usada por alguns como antecipação da punição penal, o que não é o seu propósito.
Além de tocar neste ponto relevante, a reforma processual de jul/2011 trouxe uma série de novas medidas cautelares penais. Algumas não são tão novas assim, já sendo previstas, com outra formatação ou finalidade, na Lei das Execuções Penais (Lei 7.210/84) ou na Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95). Outras são antigas como as múmias do Egito, mas, como estas, estavam mortinhas da silva.
É o caso da fiança. Revigorada pelo art. 319, inciso VIII, do CPP, a fiança agora serve “para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial“. Segundo o §1º do art. 319, esta garantia pode ser cumulada com outras medidas cautelares.
A volta da fiança ao lugar que lhe pertencia (e que foi perdendo paulatinamente a partir da Lei 6.416/1977) já pode ser vista no cotidiano forense, inclusive num caso bastante triste. No sábado, 9/jul, um acidente de trânsito em São Paulo tirou a vida da advogada Carolina Cintra Santos. Carolina foi minha aluna por dois semestres no Centro Universitário Jorge Amado, aqui em Salvador.
A vítima dirigia seu carro no bairro do Itaim, na capital paulista, quando teria ultrapassado devagar um sinal vermelho, coisa que quase todo mundo faz ao volante, para evitar assaltos na noite das violentas cidades brasileiras. Era madrugada e a vítima estava sozinha. Subitamente, seu veículo foi colhido por um bólido. A estimados 150 km/h, um Porsche pilotado pelo engenheiro M. M. A. L., atingiu o carro da vítima, destruindo-o e matando-a.
A Polícia Civil de São Paulo o indiciou por homicídio com dolo eventual (art. 121 do CP). Entendeu que, ao conduzir um carro àquela velocidade, em zona urbana, o motorista assumiu o risco de produzir a morte de alguém. A pena para este crime é de 6 a 20 anos de reclusão. A alternativa seria a realização do flagrante pelo crime de homicídio culposo no trânsito, cuja sanção é de meros 2 a 4 anos de detenção (art. 302 do Código de Trânsito). Caberá à Promotoria de Justiça imputar ao motorista um ou outro delito. Eventual culpa concorrente da vítima, não impede a persecução criminal.
Mais do que depressa, a defesa ingressou com pedido de liberdade provisória. Antes da Lei 12.403/11, é muito provável que o causador do acidente saísse livre, sem garantia alguma (antigo art. 310, parágrafo único). Agora não. A juíza Ana Carolina Della Latta Camargo Belmudes estipulou fiança de 300 mil reais e proibiu o engenheiro M.M.A.L. de frequentar bares e casas noturnas (suspeita-se que estava bêbado ao volante) e de deixar a cidade sem autorização judicial. A magistrada também impôs a medida de recolhimento domiciliar noturno e lhe proibiu viagens para fora do País.
Todas essas medidas cautelares estão previstas na nova lei e já integram os arts. 319 e 320 do CPP:
a) proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações (art. 319, inciso II)
b) proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução (inciso IV)
c) recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos (inciso V)
d) proibição de ausentar-se do País, com entrega do passaporte (art. 320)
Isto só foi possível porque o CPP – modificado pela Lei 12.403/11 – deu nova força à fiança, tornou-a medida cautelar autônoma e atualizou os seus valores, que eram irrisórios e inaplicáveis. Só para comparar, quando foi preso sob suspeita de estupro, o ex-diretor do FMI, Dominique Strauss-Kahn pagou fiança de US$ 1 milhão. Quando acusado de pedofilia, o cantor Michael Jackson foi solto após pagar fiança de US$3 milhões. Isto era impensável no Brasil, devido à falha legislativa de 1977, ao equívoco do constituinte de 1988 e à leniência dos tribunais.
Agora, os juízes brasileiros podem arbitrar fiança entre 1/3 do salário mínimo e 200.000 salários mínimos, o que estabelece uma faixa de valores que hoje vai de 181,66 reais a 109 milhões de reais, dependendo da gravidade objetiva do crime, da situação econômica do acusado, de sua vida pregressa e periculosidade. Se pode ser aumentada até a casa dos milhões, a fiança também pode ser dispensada em caso de miserabilidade. Pode ser aplicada isolada ou cumulativamente. Pode substituir a prisão ou por ela ser substituída.
Assim postos os limites do instituto, vemos que o valor estabelecido pela juíza paulistana foi até baixo. Mas sua conjugação com outras medidas cautelares parece reparar esta aparente falha de estimativa. O fato é que, rapidamente, o suspeito pagou a fiança e poderá defender-se livre, da denúncia que vier a ser formulada pelo Ministério Público de São Paulo, ficando resguardada até o final a sua presunção de inocência.
A nova lei não será capaz de diminuir os índices de criminalidade, nem de reduzir a dor da família de Carolina Cintra Santos e de outras tantas vítimas deste tipo e de outros tipos de violência. Pelo menos, esta nova minirreforma (a quarta desde 2008) aperfeiçoa o processo penal de 1941, restabelece uma importante ferramenta de garantias bilaterais e cria algumas – nem todas – alternativas eficazes à prisão provisória, a exemplo do monitoramento eletrônico e da suspensão do exercício de função ou atividade.
Enfim, a liberdade provisória com fiança está de volta ao tabuleiro processual. Esperemos que a confiança na Justiça comece a voltar também.