Arquivamento

Palocci entre as PEPs

Um ministro de pasta tão importante não pode alegar sigilos ou segredos disto ou daquilo para evitar uma explicação decente à sociedade.

por Vladimir Aras

Uma cigana-espírita-vidente não ganharia tanto em consultas quanto o ex-ministro Antonio Palocci. Bom em conselhos, o ex-ministro Palloci vem-se livrando das acusações criminais que lançam contra ele. Primeiro foi a história da violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa. Em 2009, a denúncia apresentada pelo Procurador-Geral da República (PGR) foi rejeitada pelo STF por 5 votos a 4. Agora o milagre da multiplicação dos reais.

Pode-se dizer que Palloci está entre os PEPs ou “Políticos Envolvidos em Problemas“. Sua casa caiu com o escândalo da República de Ribeirão, quando deixou o ministério da Fazenda, e ele agora perdeu seu lugar na Casa Civil. Mas, do ponto de vista criminal, o ex-ministro continua inocente, como manda a presunção prevista na Constituição.

Essas coisas da alta Administração Pública têm de ser transparentes. Um ministro de pasta tão importante não pode alegar sigilos ou segredos disto ou daquilo para evitar uma explicação decente à sociedade. É preciso lembrar a famosa expressão que eternizou um episódio da vida privada de Pompeia Sula, a segunda mulher de Júlio César. Foi no ano de 62 a.C, mas até hoje se diz que não basta ser honesto, também é preciso parecer honesto, tal como a “mulher de César”.

Quanto a Palocci, agora um cidadão comum, a discussão (e me limito ao que saiu publicado na imprensa) é se há ou não há crime na conduta de quem parece ter enriquecido a uma velocidade espantosa. Normalmente, o Ministério Público, o Conselho de Controle de Atividades Finaceiras (COAF), a Receita Federal e a Polícia consideram a incompatibilidade entre a renda e o patrimônio pessoal de um suspeito como um indício de crime. As perguntas de praxe são: de onde veio o dinheiro? Pode ter sido do trabalho honesto. Se foi, deve ter sido declarado e tributado. Ou pode ter vindo do “trabalho” desonesto. Neste caso, qual teria sido o crime-produtor? As alegadas consultorias foram realmente prestadas? A que se destinaram? E por aí vai.

Grandes valores em trânsito em contas bancárias de uma autoridade podem ser indícios de lavagem de dinheiro, de tráfico de influência, ou de mero crime tributário. Curioso que no escândalo que envolveu o caseiro Francenildo, tenha havido uma rápida mobilização para a quebra do seu sigilo bancário. Ao final da exposição midiática de um inocente, descobriu-se que o moço recebera dinheiro de seu próprio pai. Mesmo assim Palocci livrou-se.

Agora, o mesmo político esteve de novo na berlinda. Bastou o MPF no Distrito Federal iniciar uma apuração de improbidade administrativa e já lançaram pedras no procurador da República que instaurou o inquérito civil. Seu objetivo é apurar suposta ofensa ao art. 9º da Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), que considera enriquecimento ilícito “auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade” em certas entidades públicas. Esta é uma investigação cível, pois a criminal foi prematuramente encerrada por decisão do Procurador-Geral da República ( leia-a aqui).

Diferentemente do que ocorre com os membros do Ministério Público em geral, as decisões de arquivamento pronunciadas pelo Procurador-Geral da República são definitivas e não estão sujeitas a revisão (art. 62, IV, da Lei Complementar 75/93). Quando um procurador da República decide encerrar um caso, seu pronunciamento fica sujeito a controle judicial (art. 28 do CPP) e a correção pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão (2ª CCR), órgão do MPF com sede em Brasília. Para o PGR, este controle não existe.

Creio que o caso de Palocci exigia investigação rigorosa e atenção redobrada porque se trata de uma pessoa politicamente exposta. Ministros como ele estão na lista das Politically Exposed Persons ou PEPs. Aí também entram prefeitos, governadores, deputados, senadores, juízes e membros do Ministério Público etc. Portanto, PEPs não significa “Políticos Envolvidos em Problemas“.

Segundo o art. 52, §2º, letra ‘a’, da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida) – promulgada no Brasil pelo Decreto n. 5.687/06) – e a Recomendação n. 6 do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), as Pessoas Politicamente Expostas estão sujeitas a um exame mais cuidadoso de suas atividades financeiras, tanto as que realizam em nome pessoal quanto as que consumam por intermédio de pessoas jurídicas.

Genericamente, as PEPs são indivíduos que desempenham, ou desempenharam, nos últimos cinco anos, no Brasil ou em países ou territórios estrangeiros, funções públicas relevantes, assim como seus familiares e outras pessoas de seu relacionamento próximo. A norma geral brasileira que trata das PEPs está no art. 2º, inciso II, alínea ‘b’, da Resolução COAF n. 16/2007, mas o Banco Central do Brasil (BCB), a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e a Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) baixaram seus próprios regulamentos setoriais.

Em relação às PEPs, as instituições financeiras e empresas não-financeiras com as quais o agente público se relacione devem adotar medidas especiais de escrutínio, sempre mais rigorosas, para prevenir a lavagem de dinheiro. Este papel também cabe aos investigadores. A meta é conferir a adequação de seus negócios e atividades às normas legais de prevenção à lavagem de ativos. É o que se chama de customer due diligence (devoir de vigilance, em francês), ideia que se condensa no comando know your customer, isto é, “conheça o seu cliente”.

Além do cuidado objetivo ordinário próprio da atividade de compliance, os bancos onde as PEPs mantêm negócios devem adotar medidas adequadas para determinar a origem do patrimônio dos seus clientes ou a fonte dos recursos que movimentam. Se algo estiver errado, os sujeitos obrigados devem comunicar o fato aos órgãos de controle e à unidade de inteligência financeira, o COAF. Será que isto aconteceu com Palocci?

Portanto, para as PEPs exige-se mais rigor em tudo. Talvez por isto muitos brasileiros tenham ficado surpresos com o arquivamento promovido pelo Procurador-Geral da República. É confortável examinar o cenário de longe, mas, se o caso fosse meu, optaria por investigá-lo a fundo. Como era ministro, Palocci só estava sujeito a apuração criminal por iniciativa do PGR, o que acabou não ocorrendo. É certo, porém, que no Brasil ainda não há o crime de enriquecimento ilícito e isto torna tudo mais difícil. Embora a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida) tenha sido promulgada em 2006, o Congresso Nacional ainda não cumpriu a obrigação que está no seu art. 20:

Artigo 20 – Enriquecimento ilícito

Com sujeição a sua constituição e aos princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, cada Estado Parte considerará a possibilidade de adotar as medidas legislativas e de outras índoles que sejam necessárias para qualificar como delito, quando cometido intencionalmente, o enriquecimento ilícito, ou seja, o incremento significativo do patrimônio de um funcionário público relativos aos seus ingressos legítimos que não podem ser razoavelmente justificados por ele.

O art. 9º da Convenção Interamericana contra a Corrupção (Convenção de Caracas), promulgada no Brasil pelo Decreto n. 4.410/2002, tem previsão muito semelhante:

Artigo IX – Enriquecimento ilícito

Sem prejuízo de sua Constituição e dos princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, os Estados Partes que ainda não o tenham feito adotarão as medidas necessárias para tipificar como delito em sua legislação o aumento do patrimônio de um funcionário público que exceda de modo significativo sua renda legítima durante o exercício de suas funções e que não possa justificar razoavelmente.

Entre os Estados Partes que tenham tipificado o delito de enriquecimento ilícito, este será considerado um ato de corrupção para os propósitos desta Convenção.

Esses dois tratados obrigam os Estados-Partes a tipificar a conduta de enriquecer ilicitamente como crime autônomo e a estabelecer uma obrigação para o servidor estatal, a de transparência. O agente público sempre deverá justificar seus ganhos de forma apropriada, especialmente quando houver incompatibilidade entre sua atividade e seu patrimônio. Se estivesse em vigência hoje, esta regra poderia ajudar a resolver o caso Palocci no plano criminal.

O art. 13 da Lei 8.429/92 em vigor cumpre em parte o papel de dificultar atos de improbidade por enriquecimento ilícito, mas é insuficiente para impedir a corrupção na Administração Pública. Desde a posse no emprego, cargo, função ou mandato e a cada ano, os agentes públicos devem apresentar declaração de bens e valores que compõem o seu patrimônio privado. A declaração compreende imóveis, móveis, semoventes, dinheiro, títulos, ações, e qualquer outra espécie de bens e valores patrimoniais, localizado no País ou no exterior, e, quando for o caso, deve abranger os bens e valores patrimoniais do cônjuge ou companheiro, dos filhos e de outras pessoas que vivam sob a dependência econômica do declarante. Segundo o §3º do referido artigo, “será punido com a pena de demissão, a bem do serviço público, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, o agente público que se recusar a prestar declaração dos bens, dentro do prazo determinado, ou que a prestar falsa.”.

Para fortalecer os sistemas de controle sobre os agentes públicos, a Meta 15 da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA) pretendia dar cumprimento ao art. 20 da Convenção de Mérida e ao art. 9º da Convenção de Caracas. Graças a tal meta, foi apresentado na Câmara dos Deputados o projeto de Lei 5.586/2005, que visa a tipificar o crime de enriquecimento ilícito, mediante a inclusão de um novo art. 317-A no Código Penal. A sanção seria de 3 a 8 anos de reclusão, e multa. Este projeto nunca tramitou de verdade. Em fevereiro/2011, o deputado Protógenes Queiroz apresentou proposta semelhante: o PL 21/2011.

O texto original do PL 5.586/05 prevê:
 

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